A Mongabay está lançando uma nova edição do livro “Uma Tempestade Perfeita na Amazônia”; a obra está sendo publicada em versão online, por partes e em três idiomas: espanhol, inglês e português.
O autor, Timothy J. Killeen, é um acadêmico e especialista que estuda desde a década de 1980 as florestas tropicais do Brasil e da Bolívia, onde viveu por mais de 35 anos.
Narrando os esforços de nove países amazônicos para conter o desmatamento, esta edição oferece uma visão geral dos temas mais relevantes para a conservação da biodiversidade da região, serviços ecossistêmicos e culturas indígenas, bem como uma descrição dos modelos de desenvolvimento convencional e sustentável que estão competindo por espaço na economia regional.
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Depois das rodovias, os investimentos em instalações hidrelétricas de grande escala são os investimentos em infraestrutura mais controversos na Pan-Amazônia. Os governos buscam a energia hidrelétrica como uma fonte soberana de energia renovável e impulsionadora do crescimento econômico; os oponentes se posicionam em contra devido aos impactos ambientais e sociais associados a projetos de grande escala.
Há elementos de verdade em ambas as afirmações, e o debate em torno da energia hidrelétrica geralmente se concentra nas compensações de custos e benefícios as quais levaram alguns projetos a serem aprovados, outros a serem modificados e alguns a serem cancelados.
Leia aqui o texto em inglês e espanhol
Historicamente, o Brasil tem sido excessivamente dependente da energia hidrelétrica. No final da década de 1990, ela representava notáveis noventa por cento da capacidade de geração instalada, uma situação que provocou a crise de eletricidade de 2001/2002, quando os níveis de água nos reservatórios foram reduzidos por uma seca prolongada em todo o país. O governo reagiu diversificando sua capacidade de geração elétrica em gás natural, biomassa, energia eólica e solar, bem como aumentando a capacidade hidrelétrica em rios amazônicos considerados menos suscetíveis ao risco de secas periódicas.
O Brasil ainda é excessivamente dependente da energia hidrelétrica, como evidenciado pelo racionamento de energia induzido pelo clima que abalou a economia nacional em 2015. Em 2005, os engenheiros civis da agência federal de energia do Brasil estimaram a capacidade hidrelétrica potencial do Brasil em aproximadamente 251 GW, dos quais cerca de metade estava localizada na bacia amazónica. Em 2020, no entanto, eles reduziram essa estimativa para 176 GW, ao mesmo tempo em que informaram que a capacidade instalada havia aumentado de mais de 78 para 108 GW; a maior parte dessa expansão ocorreu na Amazônia, onde a capacidade instalada aumentou de 7 para 43 GW.
A redução na capacidade potencial estimada não se deveu a um declínio nos recursos hidráulicos do Brasil, mas a um recálculo, depois que os planejadores eliminaram projetos que não eram mais considerados viáveis com base em critérios regulatórios.
Essa determinação seguiu uma decisão do governo em 2018 de suspender o futuro desenvolvimento em larga escala de barragens na Amazônia, citando a necessidade de conciliar impactos sociais e ambientais com critérios econômicos e demanda de energía. Essa política foi revertida após a eleição de Jair Bolsonaro, que adotou muitos dos projetos deixados de lado em 2018 e propôs projetos adicionais que não haviam sido incorporados aos planos nacionais de energía.
Os planos atuais estão em andamento, mas o banco de dados de instalações hidrelétricas propostas em consideração na Amazônia brasileira totaliza 112, com uma capacidade instalada potencial de 44 GW. Em 2021, o Brasil passou novamente pelo risco de uma crise de eletricidade e, mais uma vez, o culpado foi o nível de água abaixo da média nos reservatorios.
As nações dos Andes também são altamente dependentes da energia hidrelétrica e buscam aumentar esse compromisso na próxima década. Um estudo recente documentou 142 barragens em operação ou em construção e mais 160 em vários estágios de planejamento. Esse número é o dobro do registrado em 2012 e representaria um aumento de 500% na capacidade de geração instalada.
O Plano Nacional de Energia do Peru 2014-2025 projeta que 54% de seu fornecimento de eletricidade será gerado por energia hidrelétrica; a maior parte virá de represas construídas nas bacias de Ucayali e Marañon. O Equador espera aumentar a proporção de energia hidrelétrica de 50% em 2015 para aproximadamente 90% até 2025, sendo que pelo menos 70% virão de bacias amazónicas.
A Colômbia obtém cerca de sessenta e cinco por cento de sua energia da energia hidrelétrica, embora não seja obtida de um afluente amazônico. A Bolívia reduziu progressivamente sua dependência da energia hidrelétrica nos últimos vinte anos ao explorar os campos de gás natural descobertos na década de 1990; no entanto, os planos futuros dependem quase exclusivamente da energia hidrelétrica. Em 2019, o governo anunciou planos para quadruplicar a capacidade instalada do país, de 1,2 para 5,1 GW, o que aumentaria sua dependência da energia hidrelétrica de trinta para oitenta por cento.
Apesar de suas vantagens econômicas, os atributos físicos da Amazônia e de seus afluentes tornam a energia hidrelétrica problemática para as instalações convencionais de barragens e reservatórios (D&R/Dam and Reservoir/Barragem e Reservatório) preferidas por engenheiros civis e responsáveis pelo gerenciamento de energia. Nas terras baixas, as amplas planícies aluviais limitam o potencial de criação de reservatórios em áreas confinadas que armazenem grandes volumes de água; isso impede a capacidade dos operadores de regular os níveis dos reservatórios para a gestão de energia. Em contrapartida, os vales no sopé dos Andes oferecem condições quase ideais para a criação de grandes reservatórios; no entanto, as altas cargas de sedimentos fazem com que eles percam a capacidade de armazenamento ao longo do tempo, o que limita sua vida útil como ativos económicos.
A retenção de sedimentos também afeta a funcionalidade do ecossistema nos habitats ribeirinhos rio abaixo. Isso é particularmente problemático para represas em “rios de águas brancas” que são ecologicamente definidos por altas cargas de sedimentos. Esses rios, que se originam nos Andes, drenam apenas 12% da superfície da bacia, mas contribuem com mais de 80% dos sedimentos que entram no ecossistema da planície de inundação amazónica.
A proposta de construção de várias barragens nas bacias do Marañon, Ucayali, Madre de Díos e Madeira teria consequências a longo prazo sobre os processos biogeoquímicos nos habitats da planície de inundação ao longo de todo o curso do rio e, eventualmente, impactaria as zonas entremarés do delta e os ecossistemas marinhos localizados acima da plataforma continental na foz do Amazonas.
Outros impactos sociais e ambientais estão associados às instalações de D&R em grande escala. Os grandes reservatórios deslocam as famílias rurais, forçando-as a abandonar as aldeias que habitam há décadas ou até mesmo séculos. Muitas represas são construídas logo abaixo de uma descontinuidade topográfica para maximizar a produção de energia, mas essas localidades geralmente são habitadas por comunidades indígenas que exploram uma concentração natural de peixes ou ocupam uma passagem essencial em torno de corredeiras não navegáveis. Os reservatórios não apenas forçam essas famílias a se mudarem, mas também alteram a função do ecossistema que sustenta a economia local acima e abaixo da barragem.
A operação diária de uma usina de energia hidrelétrica altera os habitats naturais localizados abaixo da barragem porque os responsáveis pela gestão manipulam os fluxos de água para equilibrar a demanda por eletricidade. Esses fluxos são sempre substancialmente diferentes dos regimes naturais de inundação que regulam os ciclos de vida das espécies nos habitats de várzea. Os rios amazônicos são famosos pelo movimento de peixes e outras espécies entre o canal do rio e os habitats de remanso, que são definidos pela extensão e profundidade da inundação sazonal.
O gerenciamento de energia altera os ciclos naturais que sustentam a vida selvagem e, consequentemente, afetam as comunidades humanas que dependem deles. Os impactos mais óbvios ocorrem localmente, mas as alterações nos regimes de inundação podem se estender muito a jusante, enquanto as comunidades a montante sofrem impactos quando as represas bloqueiam a migração de espécies de peixes economicamente importantes.
Alguns impactos são de escala global. As florestas tropicais da Amazônia são caracterizadas por grandes quantidades de biomassa e, se a vegetação em pé não for removida antes da inundação, o reservatório gerará emissões substanciais de metano por meio da decomposição anaeróbica no fundo do reservatório. Essas emissões podem durar décadas e anular qualquer economia potencial de Gases de Efeito Estufa (GEE) associada à energia hidrelétrica como energia renovável.
Uma alternativa para o gerenciamento dos impactos ambientais e sociais é a construção de barragens que empregam um projeto a fio d’água (R-o-R /run-of-the-river/Barragem a fio de água) que minimiza o tamanho do reservatório e a remoção de sedimentos. Essas configurações ainda causam impactos ligados à perda de biodiversidade e à interrupção da pesca comercial. Do ponto de vista da engenharia, as instalações hidrelétricas (R-o-R) são ineficientes porque não armazenam energia em um grande reservatório, o que limita a capacidade dos operadores de compensar a variabilidade sazonal dos fluxos de água. Além disso, a falta de capacidade de armazenamento expõe as instalações (R-o-R), e suas redes elétricas vinculadas, a crises episódicas causadas por secas, um risco que será significativamente maior nas próximas décadas devido às mudanças climáticas.
Os projetos de barragem e túnel (D&T/ Dam and Tunnel/Barragem e Túnel) evitam as armadilhas das configurações D&R e R-o-R, fornecendo água para uma usina de energia localizada várias centenas de metros abaixo da barragem. Essas configurações são populares em áreas montanhosas porque geram grandes quantidades de energia por metro cúbico de água. Sua eficiência superior reduz a necessidade de um grande reservatório, especialmente em regiões geográficas caracterizadas por chuvas abundantes.
A remoção de sedimentos geralmente é próxima de zero porque muitas combinações de D&T estão localizadas no alto da bacia hidrográfica, onde as cargas de sedimentos são naturalmente baixas ou porque os tempos de armazenamento nos reservatórios são curtos. Da mesma forma, seu impacto sobre as populações de peixes é mínimo porque esses tipos de rios são caracterizados por cachoeiras e corredeiras que atuam como barreiras naturais.
Os projetos de grande escala são os preferidos dos engenheiros civis pois resolvem problemas de oferta e demanda ao longo de muitos anos e criam um legado de infraestrutura que agrada o seu orgulho profissional. As empresas de serviços públicos têm preferência por essa modalidade de negócios, que consiste em produzir energia e comercializá-la em centros urbanos e industriais. Também são os preferidas dos políticos porque sua construção gera dezenas de milhares de empregos de baixa qualificação. Os analistas financeiros de instituições multilaterais os aprovam porque podem alocar capital significativo em um setor com fluxo de caixa garantido que evita o risco de investimento.
No entanto, a experiência tem mostrado que alguns projetos na Amazônia são grandes demais ou que as previsões climáticas que sustentam o modelo de energia são imprecisas ou estão desatualizadas. Infelizmente, práticas corruptas mancharam a objetividade dos estudos de viabilidade e ambientais que são usados para avaliar a sustentabilidade econômica, social e ambiental.
Antigamente, a energia hidrelétrica era vista como um sinal de progresso e adotada por um amplo setor da sociedade, mas essa visão mudou nas últimas décadas, pois os defensores do meio ambiente e dos direitos humanos questionaram a sustentabilidade dos modelos de negócios convencionais. Nas economias avançadas, há um consenso emergente de que algumas instalações devem ser desmontadas para restaurar a função do ecossistema.
“Uma tempestade perfeita na Amazônia” é um livro de Timothy Killeen que contém as opiniões e análises do autor. A segunda edição foi publicada pela editora britânica The White Horse em 2021, sob os termos de uma licença Creative Commons (licença CC BY 4.0).