A Mongabay está lançando uma nova edição do livro “Uma Tempestade Perfeita na Amazônia”; a obra está sendo publicada em versão online, por partes e em três idiomas: espanhol, inglês e português.
O autor, Timothy J. Killeen, é um acadêmico e especialista que estuda desde a década de 1980 as florestas tropicais do Brasil e da Bolívia, onde viveu por mais de 35 anos.
Narrando os esforços de nove países amazônicos para conter o desmatamento, esta edição oferece uma visão geral dos temas mais relevantes para a conservação da biodiversidade da região, serviços ecossistêmicos e culturas indígenas, bem como uma descrição dos modelos de desenvolvimento convencional e sustentável que estão competindo por espaço na economia regional.
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O sul da Amazônia sofreu um desmatamento maciço, juntamente com a degradação do solo e dos recursos hídricos. As fronteiras florestais nos cantos remotos do sistema rodoviário brasileiro permaneceram isoladas e empobrecidas, mas as fronteiras agrícolas e as paisagens consolidadas do Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Tocantins são relativamente prósperas. Suas economias rurais geram aproximadamente US$ 125 bilhões por ano, representando cerca de cinco por cento da economia brasileira. Essa produção econômica depende da rede rodoviária nacional e regional e criou um forte grupo de apoio ao desenvolvimento de rodovias.
Leia aqui o texto em inglês e espanhol
A mais antiga das rodovias troncais na Pan-Amazônia é a Rodovia Transbrasiliana (BR-010 / BR-153), que foi iniciada na década de 1960 simultaneamente ao estabelecimento da nova capital federal em Brasília. Esse corredor de transporte norte-sul atravessa as paisagens de terras altas entre os rios Araguaia e Tocantins e foi a primeira ligação terrestre permanente entre Belém e o sul do Brasil. Sua construção facilitou a expansão da indústria de gado de corte de Minas Gerais para Goiás e Tocantins e foi ligada ao nordeste do Brasil por um par de rodovias leste-oeste (BR-222 e BR-226) que promoveram a migração em massa da população rural pobre para o leste do Pará.
A melhoria constante dessas rodovias, bem como de suas redes rodoviárias secundárias e terciárias associadas, coincidiu com o desenvolvimento das usinas hidrelétricas de Tucuruí, no rio Tocantins, do complexo de mineração de Carajás e das fundições metalúrgicas de Marabá e São Luís do Maranhão.
Simultaneamente, o governo federal criou a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), uma instituição que gerenciava um sistema de subsídios destinado a promover o desenvolvimento agrícola e a monetização dos recursos minerais da região. Essas políticas foram bem-sucedidas na criação de riqueza e na transformação da paisagem regional. Em 2020, o corredor Carajás-São Luís-Belém tinha menos de 18% de cobertura florestal remanescente, a menor quantidade proporcional na Pan-Amazônia. A paisagem localizada ao sul de Belém manteve uma área maior de floresta, mas também abriga o setor de óleo de palma em expansão no país e vários projetos de colonização, onde famílias de pequenos proprietários buscam uma combinação de agricultura de subsistência e de mercado.
Nas décadas de 1980 e 1990, outro corredor rodoviário norte-sul (BR-155/BR-158) foi construído a cerca de 300 km a oeste, do outro lado do rio Araguaia, conectando os municípios do nordeste do Mato Grosso aos seus homólogos no sudeste do Pará. O desmatamento diminuiu significativamente desde 2010, mas continua relativamente ativo nas paisagens de fronteira adjacentes aos territórios indígenas ao longo do Rio Xingu. O cultivo de soja e milho está substituindo a criação de gado no Mato Grosso, mas ainda predomina no Pará.
Os colonos se mudaram para as paisagens do centro do Pará em seguida à construção da PA-279, uma rodovia regional que liga Xinguara, na BR-155, a São Félix do Xingu, que já foi uma pequena vila no rio, estabelecida durante o boom da borracha no final do século XIX. As paisagens a oeste do Rio Xingu são atravessadas por estradas não pavimentadas que atendem a uma grande área (ocupada por propriedades rurais de grande e média escala que foram incorporadas a uma área protegida de uso múltiplo Área de Proteção Ambiental [APA] Triunfo do Xingu.
A maioria dessas propriedades, estabelecidas durante a corrida pela terra na década de 1980, tem se caracterizado pelo desmatamento lento, mas constante. O município de São Félix do Xingu tem sido constantemente classificado entre os cinco municípios brasileiros com a maior taxa anual de desmatamento na Amazônia brasileira.
Uma das regiões economicamente mais dinâmicas da Amazônia brasileira é sinônimo de outro projeto rodoviário: O Corredor Cuiabá – Santarém. As forças sociais e econômicas que transformaram os corredores rodoviários a leste do Rio Xingu estão sendo reproduzidas ao longo da BR-163, que liga as prósperas paisagens agrícolas do centro de Mato Grosso aos terminais de grãos e portos nos rios Tapajós e Amazonas. Essa rodovia foi criada na década de 1970 durante o Programa de Integração Nacional (PIN), mas o setor norte logo caiu em estado de deterioro. Por aproximadamente 25 anos, foi uma típica paisagem de fronteira dominada por empresas madeireiras que podiam organizar suas operações transportando madeira durante a estação seca, quando a estrada estava transitável.
Os migrantes do sul do Brasil se estabeleceram no setor sul, que foi rapidamente integrado à economia nacional. Os agricultores industrializados ocuparam as paisagens com topografia plana e solos bem drenados, ideais para o cultivo de soja. Os pecuaristas ocuparam terras menos férteis na região montanhosa do centro de Mato Grosso e ao longo da fronteira com o Pará. A fronteira agrícola se expandiu pelo Mato Grosso por meio de uma rede de rodovias estaduais que se estendeu gradualmente. As terras foram concedidas a empresas que as revenderam a famílias organizadas em cooperativas ou desenvolveram operações em escala industrial dedicadas à agricultura ou à produção de carne bovina.
Esse é o coração do complexo agroindustrial de Mato Grosso e conta com uma rede extensa e bem conservada de rodovias estaduais e locais; essas rodovias dão suporte à infraestrutura industrial construída pelo setor privado, incluindo silos de grãos, moinhos e instalações de produção animal. A rede rodoviária secundária e terciária aumentou o valor dos imóveis rurais, ao mesmo tempo em que promoveu a diversificação da economia rural. Não é de se surpreender que seus habitantes representem um poderoso grupo de interesse que faz lobby para melhorar a infraestrutura rodoviária em seus estados, mas também para a melhoria do sistema rodoviário federal, que eles consideram essencial para o crescimento de seu sistema de produção. Como todos os investidores, eles buscam o crescimento de seu sistema econômico; como patriotas, eles veem seus sistemas de produção como um bem público e um ativo nacional estratégico.
A transferência de terras públicas para o setor privado também transferiu cerca de 50 milhões de hectares de terras que antes continham mais de 33 milhões de hectares de floresta, dos quais cerca de metade foi convertida para a produção agrícola e o restante foi distribuído em dezenas de milhares de fragmentos florestais isolados. A floresta contínua está restrita, em grande parte, a territórios indígenas dispostos em dois corredores norte-sul: um ao longo do Rio Xingu e o outro ao longo da fronteira com Rondônia. O último fragmento de floresta pública no estado está localizado na sua porção noroeste, onde empresas madeireiras e especuladores de terras atuam ao longo de uma estrada não melhorada (MT-206/RO-205) entre o assentamento do INCRA de Colniza (Mato Grosso) e a cidade de Arequemes (Rondônia).
No início dos anos 2000, o governo federal criou um corredor de exportação para a indústria de soja que estava em rápida expansão na região central do Mato Grosso, melhorando o leito da estrada e as pontes da seção norte da BR-163. O projeto da rodovia, que ligaria as terras agrícolas da região central do Mato Grosso aos terminais de grãos em Santarém, provocou uma reação intensa dos defensores do meio ambiente em um momento em que o país vivia um debate vigoroso sobre a racionalidade do desenvolvimento da Amazônia. O governo respondeu organizando uma ambiciosa revisão ambiental e social, que levou à criação de várias novas áreas protegidas e ao reconhecimento de reivindicações de terras indígenas.
No entanto, os especuladores de terras já haviam se mudado para a região e estabelecido estradas secundárias que penetravam nas paisagens de ambos os lados da rodovia, incluindo uma que facilitava o acesso à fronteira da corrida do ouro na parte superior da bacia hidrográfica do Crepori. Ao contrário das rodovias regionais em Mato Grosso, essas estradas secundárias não aparecem nos mapas oficiais, indicando que foram estabelecidas sem a participação de órgãos de planejamento estaduais e sem a devida análise ambiental.
Em 2016, o governo de Michel Temer tentou alterar o status de cerca de meio milhão de hectares na Floresta Nacional do Jamanxim, uma medida que teria concedido anistia de fato à apropriação ilegal de terras públicas. Isso levou a uma reação negativa de organizações da sociedade civil e do Ministério Público Ambiental, que questionaram a constitucionalidade da ordem executiva que autorizava a modificação de uma área protegida. O governo foi forçado a retirar a medida em 2017 por uma decisão do Supremo Tribunal Federal, mas nem o governo Bolsonaro nem as autoridades estaduais intercederam para combater a apropriação ilegal de terras nas paisagens ao redor da BR-163.
Apesar do gasto de R$ 1,5 bilhão em melhorias na rodovia entre 2005 e 2015, um trecho de cem quilômetros da BR-163 permaneceu intransitável durante o pico da estação chuvosa. As más condições da estrada causavam enormes congestionamentos entre os 3.000 caminhões que usavam a BR-163 durante a colheita da soja. Essa situação insustentável foi agravada por bloqueios de estradas organizados por colonos que buscavam o reconhecimento legal de suas propriedades. Em 2018, o governo federal destinou mais R$ 175 milhões em recursos emergenciais para o Exército Brasileiro, que concluiu a pavimentação em 2019. Do início ao fim, foram necessários vinte anos para pavimentar um trecho de 800 quilômetros de rodovia considerado um ativo estratégico de vital importância pelo setor agroindustrial.
Os comerciantes de commodities reagiram à melhoria da estrada construindo cinco terminais de grãos no porto de Miritituba (Pará), na margem leste do rio Tapajós, no que é essencialmente seu maior porto navegável. Em 2020, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) iniciou um processo de licitação para uma concessão para administrar a BR-163 entre Sinop (Mato Grosso) e Miritituba. O contrato prevê um investimento adicional de aproximadamente US$ 600 milhões em melhorias que serão financiados por pedágios cobrados dos cerca de 6.000 caminhões que deverão usar a rodovia.
A rodovia mais infame da Amazônia brasileira é a Rodovia BR-364, que foi construída em Rondônia na década de 1970 como parte de um projeto de reassentamento patrocinado pelo Estado e apoiado pelo Banco Mundial. O projeto desencadeou uma onda de desmatamento que foi documentada por imagens de satélite disponíveis recentemente. Uma análise independente revelou que o dano ambiental foi agravado por impactos sociais que ameaçaram as comunidades indígenas e destinaram a maioria dos colonos a uma vida de pobreza rural. A controvérsia resultante catalisou o primeiro debate sério sobre a conservação da Amazônia e os impactos sociais dos paradigmas convencionais de desenvolvimento.
Apesar do início difícil, dezenas de milhares de pequenos proprietários acabaram dominando os desafios tecnológicos da produção agrícola na Amazônia. Embora Rondônia seja amplamente retratada como um estudo de caso de políticas de desenvolvimento equivocadas, ela também fornece um exemplo de uma economia rural bem-sucedida baseada em pequenas propriedades familiares. A chave para esse sucesso foi a criação de uma extensa rede de estradas secundárias que foi aprimorada ao longo de várias décadas. A combinação de uma densa rede de estradas e propriedades de pequeno porte levou à evolução de uma paisagem rural com uma proporção extremamente baixa de floresta remanescente. Na região central de Rondônia, quinze municípios adjacentes mantêm menos de 20% de sua cobertura florestal original e trinta têm menos de 50%, que é a quantidade mínima aproximada permitida pelo Código Florestal de 2012.
As outras grandes rodovias que foram abertas na floresta nas décadas de 1970 e 1980 são ainda mais problemáticas. Elas incluem a seção leste da Rodovia Transamazônica (BR-230), que começa em Marabá (Pará), no rio Tocantins, e se estende para oeste por aproximadamente 1.000 quilômetros até Miritituba, no rio Tapajós. De lá, a seção oeste continua por mais 1.000 quilômetros pelo sul do estado do Amazonas até a cidade de Humaitá, no Rio Madeira. Essa estrada tronco foi originalmente planejada para integrar os três corredores de transporte descritos anteriormente (BR-155/158, BR-163, BR-364), mas nunca foi pavimentada e seu rápido processo de deterioração logo deixou seus colonos isolados e lutando para ganhar a vida.
O uso da terra nas paisagens que circundam a Transamazônica nos estados do Pará e do Amazonas é muito menos intensivo quando comparado à BR-364 em Rondônia, embora todas tenham sido colonizadas aproximadamente na mesma época e dedicadas em grande parte à produção de gado de corte. No entanto, é provável que essa diferença seja transitória. Os sucessivos governos estaduais se comprometeram a melhorar a rodovia, que agora é pavimentada entre Miritituba e Rurópolis, onde se sobrepõe à BR-163, e por mais 350 quilômetros entre Altamira e Marabá. A pavimentação contínua da Transamazônica está incluída no portfólio de investimentos prioritários da IIRSA; quando toda a estrada estiver pavimentada, as paisagens adjacentes à Transamazônica quase certamente se assemelharão às paisagens dos pequenos agricultores de Rondônia.
Outras regiões com uma rodovia principal, mas com níveis relativamente baixos de desmatamento, incluem a BR-174 entre Manaus e Boa Vista, onde a presença da comunidade indígena Waimiri Atroari atuou como uma barreira eficaz para os grileiros de terras. As paisagens ao norte desses territórios indígenas em Roraima foram parceladas para proprietários de terras particulares mas não fizeram a transição para uma fronteira agrícola devido, presumivelmente, ao seu isolamento inerente. Roraima tem grandes extensões de savana natural, que podem se transformar em uma fronteira agrícola se os líderes políticos forem bem-sucedidos em sua busca para replicar o modelo de desenvolvimento agroindustrial exemplificado pelo Mato Grosso. Um componente importante de seu modelo de negócios são as vantagens proporcionadas pela rodovia pavimentada de 750 quilômetros (BR-174) entre Boa Vista e o porto de Manaus, que reduz o custo de transporte da exportação de soja e outros grãos.
A taxa histórica de desmatamento no Acre tem sido relativamente baixa, especialmente ao longo da seção oeste da BR-364 entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul. Esse trecho de 700 quilômetros da rodovia está atualmente sem pavimentação em cerca de 450 quilômetros, mas sua conclusão tem sido uma prioridade política para todos os governos estaduais nos últimos trinta anos. Durante a maior parte desse período, as sucessivas administrações promoveram o uso sustentável dos recursos florestais, como exemplificado pelas reservas agroextrativistas patrocinadas pelo INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Instituto Chico Mendes para la Conservación de la Biodiversidad (ICMBio).
A estrada entre Manaus e Porto Velho (BR-319) é a rodovia nacional mais remota da Amazônia brasileira. Ela foi pavimentada pela primeira vez na década de 1970, mas rapidamente se tornou intransitável. A rodovia foi reconstruída em cerca de dois terços de sua extensão e está programada para ser completamente atualizada até 2025. Foto: Colección PAC en flickr.com.No entanto, extensas propriedades de terra foram distribuídas a pequenos e médios produtores dedicados à pecuária, que contribui quase oito vezes mais para o PIB do Acre do que o setor florestal. Eventualmente, a BR-364 será pavimentada em sua totalidade, o que levará ao aumento do desmatamento ao longo de suas margens e nas estradas secundárias que se propagam a partir de meia dúzia de pequenas cidades.
Ainda mais problemática é a proposta de estender a BR-364 até a fronteira com o Peru, uma das duas propostas recentemente incorporadas ao portfólio da IIRSA. No lado brasileiro, isso inclui o esforço contínuo para concluir a pavimentação entre Rio Branco e Cruzeiro do Sul, um projeto que foi recentemente incluído no subgrupo intitulado Melhoria do Acesso à Hidrovia Ucayali, revelando a intenção de ligar o sistema rodoviário brasileiro ao Peru por meio da BR-364. Ainda mais explícita foi a designação de uma “conexão terrestre” entre Cruzeiro do Sul (Acre) e Pucallpa (Ucayali, Peru). O uso do termo “terrestre” é propositalmente indistinto, pois pode se referir tanto a uma rodovia quanto a uma ferrovia, que vem sendo proposta pelos defensores de uma ferrovia transcontinental. A construção da estrada teve o apoio de Jair Bolsonaro e do governo do Acre, bem como de líderes civis da cidade peruana de Pucallpa.
O Acre aparece com destaque em outra iniciativa de alto nível da IIRSA, chamada pelos meios de comunicação de Corredor Interoceânico, uma proposta emblemática que inclui melhorias nas rodovias do Brasil, Bolívia e Peru. Os esforços para gerenciar os impactos ambientais e sociais desses investimentos levaram à organização da iniciativa MAP, um novo processo de planejamento que coordenou ações entre jurisdições subnacionais. Iniciada no início dos anos 2000, a iniciativa foi vista inicialmente como um processo de planejamento ambiental estratégico que poderia identificar um caminho para uma economia florestal sustentável. No entanto, os esforços para transformar a economia regional tiveram sucesso limitado, e a região do MAP sofre com níveis moderados a altos de desmatamento, uma mudança que é particularmente notável em Madre de Díos (Peru) e Pando (Bolívia), que eram relativamente isolados até a conclusão desses corredores rodoviários patrocinados pela IIRSA.
Um dos projetos rodoviários mais controversos na Amazônia brasileira é o programa em andamento para pavimentar a BR-319, a rodovia federal que liga Manaus (Amazonas) a Porto Velho (Rondônia). Esse corredor de 1.000 quilômetros tem o nível mais baixo de desmatamento de todas as rodovias principais criadas na década de 1970. No entanto, ao contrário da maioria das outras rodovias troncais da época, ela foi completamente pavimentada no contrato de construção original. O trabalho foi mal feito e o leito da estrada rapidamente caiu em um estado de deterioração. Dois trechos foram “reconstruídos” e pavimentados na última década: 200 quilômetros no setor norte perto de Manaus e 165 quilômetros perto de Humaitá. O setor sul corre o risco de ser o próximo foco de desmatamento, devido à confluência de três rodovias principais (BR-319, BR-230 e BR-364), que atrairão colonos e especuladores de terras, principalmente de Rondônia, onde as terras já não são facilmente acessíveis.
Na última década, a “reconstrução” da BR-319 foi promovida por uma organização cívica regional, bem como por autoridades eleitas e funcionários do governo regional. Os defensores da repavimentação da estrada alegam que o setor manufatureiro de Manaus é prejudicado pelos serviços de transporte logisticamente complexos necessários para enviar bens de consumo para o sul do Brasil. A alternativa mais barata é a rota marítima, mas ela envolve o uso de caminhões, docas e armazéns em ambas as extremidades da cadeia de suprimentos. A opção rodoviária, embora vinte por cento mais cara, reduziria o tempo de transporte em pelo menos cinquenta por cento e, talvez mais importante, forneceria serviço porta a porta entre o fabricante e o distribuidor atacadista.
As melhorias planejadas para a BR-319 exigirão a aprovação do Instituto Brasileño del Medio Ambiente y de los Recursos Naturales Renovables (IBAMA), que iniciou uma análise de impacto ambiental (EIA) em 2017 e a publicou em junho de 2020. Entre suas descobertas estava a previsão óbvia de que uma estrada melhorada aumentaria o desmatamento ao longo do corredor rodoviário, mas o estudo também identificou o potencial da estrada para catalisar a demanda da sociedade por desenvolvimento adicional de rodovias, incluindo estradas pré-existentes (AM-174, AM-254, AM-354, AM-364) e aquelas planejadas para o futuro (AM-360, AM-366, BR-174), bem como estradas ilegais construídas por agentes privados. Particularmente problemática seria a construção da AM-366, que impactaria pelo menos dois territórios indígenas e, potencialmente, abriria áreas selvagens da Amazônia ocidental para assentamentos e exploração de petróleo.
O impacto de longo prazo da megafragmentação das florestas da Amazônia Central não é mencionado no EIA. Mesmo uma quantidade limitada de desmatamento ao longo do corredor da rodovia criaria uma barreira para a vida selvagem que isolaria aproximadamente 200.000 quilômetros quadrados de floresta intacta localizada entre a BR-319 e a BR-230. O ex presidente Bolsonaro defendeu a “repavimentação” da BR-319 e, a menos que uma ação judicial impeça o projeto, sua conclusão parece cada vez mais provável.
Outro projeto rodoviário controverso que o governo Bolsonaro estava considerando era a extensão da BR-163 através do rio Amazonas até a fronteira com o Suriname. A rota proposta tem sido mostrada em mapas desde a década de 1970, mas não foi um dos projetos na primeira onda de desenvolvimento de rodovias. A ambiciosa proposta exigiria uma extensão de três quilômetros sobre o principal canal do rio Amazonas em Óbidos (Pará) e mais de cinquenta quilômetros de viaduto para atravessar a planície de inundação. Essa seria uma rodovia completamente nova e abriria uma enorme área para o desenvolvimento.
A proposta sofreria forte oposição de ativistas ambientais e grupos indígenas porque interromperia uma estratégia de conservação montada ao longo de três décadas de planejamento e coordenação. No entanto, a rodovia está em conformidade com a Calha Norte, uma estratégia de longa data adotada pela comunidade de segurança nacional, baseada no objetivo de “ocupar” a fronteira norte do país. O conceito teve origem no governo militar da década de 1970, mas alguma variante dele foi adotada por todos os governos democraticamente eleitos do Brasil, incluindo a administração Cardoso na década de 1990, que incluiu o polo de desenvolvimento do Arco Norte como parte de seus Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (ENID).
Uma motivação para a construção da rodovia é criar um impulso para mudar o status da reserva mineral RENCA, um depósito globalmente significativo de cobre e outros minerais industriais. O trecho norte proposto da BR-163 se conectaria com a PA-254, a rodovia regional que fornece acesso às zonas de assentamento localizadas entre Óbidos e Prainha (Pará). Isso quase certamente aumentaria o valor da terra e poderia facilitar o desenvolvimento da agricultura industrial nos solos aráveis das paisagens de terras altas localizadas entre o Rio Amazonas e a região montanhosa do Escudo das Guianas. Embora não tenha sido melhorada em sua maior parte, a rede rodoviária regional do norte do Pará já está ligada a uma rede de estradas igualmente rústica no oeste do Amapá.
A melhoria dessas estradas existentes criaria uma rodovia ininterrupta de Óbidos (Pará) a Macapá (Amapá) e às províncias costeiras da Guiana Francesa, Suriname e Guiana. Embora essa cadeia de eventos possa parecer improvável, a história demonstra que as estradas existentes atraem colonos que fazem lobby por melhorias junto aos governos locais e regionais, o que pode levar ao seu eventual desenvolvimento em um corredor de transporte.
“Uma tempestade perfeita na Amazônia” é um livro de Timothy Killeen que contém as opiniões e análises do autor. A segunda edição foi publicada pela editora britânica The White Horse em 2021, sob os termos de uma licença Creative Commons (licença CC BY 4.0).