Na manhã seguinte aos ataques terroristas aos edifícios dos três poderes em Brasília, Mongabay entrevistou a deputada federal indígena Célia Xakriabá, que comparou o ato de vandalismo à destruição da floresta: “É esse o cenário de guerra quando [se] desmata”.
Célia Xakriabá tinha acabado de voltar do Congresso Nacional para averiguar os danos ao edifício. Ela disse que a cena dos invasores no Salão Verde a fizeram relembrar “o cenário de guerra quando acontece a reintegração de posse no território [indígena]”.
Um dos efeitos imediatos do ataque foram a suspensão temporária das cerimônias de posse da ativista Sonia Guajajara como primeira ministra dos povos indígenas e de Anielle Franco como ministra da igualdade racial.
As duas ministras tomaram posse em 11 de janeiro no Palácio do Planalto, apesar da falta de vidros nas paredes, da galeria de fotos de ex-presidentes sem nenhuma foto e de vários rastros de destruição em todo o edifício. “A nossa posse aqui hoje, minha e de Anielle Franco, é o mais legítimo símbolo dessa resistência secular preta e indígena no Brasil!”, disse Sonia Guajajara.
BRASÍLIA — Desde 8 de janeiro, o mundo inteiro tem assistido as cenas dos ataques violentos liderados por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro aos edifícios do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal como um ataque da extrema direita à democracia e uma imitação da invasão do Capitólio nos Estados Unidos por apoiadores do ex-presidente Donald Trump há dois anos.
Mas para os povos indígenas, esse “cenário de guerra” assemelha-se à destruição de florestas e às invasões de seus territórios que foram fortemente encorajadas sob o governo Bolsonaro, muitas vezes chamado de “Trump do Sul”.
“É esse [o] cenário de guerra quando [se] desmata”, Célia Xakriabá, deputada federal indígena eleita disse à Mongabay em Brasília na manhã seguinte aos ataques. “Eu senti ontem, vendo o estado hoje do Congresso Nacional, do Senado e do Palácio, que é como se tivesse desmatado, cortado as árvores, cortado a floresta de algum lugar”.
Célia Xakriabá tinha acabado de voltar do Congresso para averiguar os danos ao edifício. Ela disse que a cena dos invasores no Salão Verde a fizeram relembrar o processo violento de reintegração de posse em terras indígenas.
“E quando estavam ali também no Salão Verde, me fazia relembrar que é esse o cenário de guerra quando acontece a reintegração de posse no território [indígena]. E é esse cenário de guerra também que as pessoas não sabem que os povos indígenas passam quando incendeiam o Pantanal, porque teve uma tentativa de incêndio ali [em Brasília] também”, disse a deputada. “Que progresso é esse que não respeita a ordem dentro do Brasil?”.
Célia Xakriabá também contestou a diferente atuação da polícia na repressão aos ataques terroristas bolsonaristas, quando comparada à violência empregada para conter protestos pacíficos por indígenas na capital.
“Porque quando nós tivemos aqui, mobilizando em prol do [nosso] direito, em prol da demarcação dos territórios indígenas, [para] impedir que a mineração, o garimpo, o mercúrio, contaminassem nossos rios, sempre fomos recebidos com forte repressão policial, com bala de borracha e spray de pimenta”, disse a deputada, ressaltando que manifestantes indígenas nunca invadiram o Congresso.
“Nós, povos indígenas, historicamente sempre tivemos nesse lugar fazendo mobilizações. Mas uma mobilização que não pode ser nem comparada com esse momento, desse ataque terrorista que não deve ser chamado ‘mobilização e nem manifestação’, é um ataque terrorista, é um golpismo essa tentativa de golpe”, acrescentou ela. “A pergunta que tem que se fazer [é] o porque que eles tiveram passe livre?”.
Assista a entrevista no video abaixo.
‘Símbolo dessa resistência secular preta e indígena”
Um dos efeitos imediatos do vandalismo em Brasília foi o atraso da posse oficial de Sonia Guajajara, ativista internacionalmente reconhecida, como a primeira ministra dos povos indígenas da história do Brasil — a cerimônia havia sido agendada para 10 de janeiro. Anielle Franco também viu sua posse como ministra da igualdade racial, agendada para 9 de janeiro, ser temporariamente suspensa por causa dos ataques. Anielle é irmã de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro que foi assassinada em 2018, supostamente por milicianos.
Em 11 de janeiro, as duas ministras tomaram posse no Palácio do Planalto, apesar da falta de vidros nas paredes, da galeria de fotos de ex-presidentes sem nenhuma foto e de vários rastros de destruição em todo o edifício, como testemunhado pela Mongabay. Uma força-tarefa foi criada para realizar a perícia dos danos e limpar os destroços da destruição.
“Estamos aqui, de pé! Para mostrar que não iremos nos render”, disse Sonia Guajajara em seu discurso de posse. “A nossa posse aqui hoje, minha e de Anielle Franco, é o mais legítimo símbolo dessa resistência secular preta e indígena no Brasil!”.
A cerimônia, acompanhada pela Mongabay, foi cheia de simbolismo tanto da cultura indígena quanto da cultura afro-brasileira, como sons de maracás e atabaques. Uma parte do hino nacional foi cantado na língua indígena Tikuna pela cantora indígena Djuena Tikuna e a outra em português pela cantora negra Marina Iris.
“Criamos os ministérios dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial para promovermos políticas com as quais o Brasil tem uma obrigação histórica. Contem comigo, Sonia Guajajara e Anielle Franco, para construirmos um Brasil do futuro com respeito e direitos”, o presidente Lula publicou no Twitter logo após a cerimônia.
Bolsonaro venceu as eleições de 2018 em uma campanha de retórica racista e ofensiva contra os povos indígenas. Durante seu governo, ele se recusou a demarcar quaisquer novos territórios indígenas, cumprindo com sua promessa de campanha. Durante seu mandato, o desmatamento das terras indígenas e a violência contra seus habitantes dispararam, junto com propostas de legislação de abertura de terras indígenas para a mineração e o agronegócio, em clara violação à Constituição Federal.
Bolsonaro também propagou vários discursos racistas contra os afro-brasileiros, inclusive negando a existência dos descendentes de escravos e a dívida histórica que lhes é devida pelos séculos de escravidão de seus antepassados.
Sonia Guajajara parabenizou Lula “pela coragem e ousadia de reconhecer a força e o papel dos povos indígenas” ao criar esse ministério “inédito na história do Brasil” para assegurar os direitos dos povos originários.
“Povos esses que resistem há mais de 500 anos a diários ataques covardes e violentos, tão chocantes e aterrorizantes como vimos nesse último domingo aqui em Brasília, porém sempre menos visibilizados. A partir de agora, essa invisibilidade não pode mais camuflar a nossa realidade”, disse ela.
“Sabemos que não será fácil superar 522 anos em quatro. Mas estamos dispostos a fazer desse momento a grande retomada da força ancestral da alma e espírito brasileiros. Nunca mais um Brasil sem nós!”
O presidente Lula encerrou a cerimônia sancionando a lei que equipara o crime de injuria racial ao crime de racismo, que é inafiançável e imprescritível, sob forte aplauso e gritos: “Sem anistia!”.
Imagem de destaque: Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadem o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto. Imagem cortesia: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
Karla Mendes é editora e repórter investigativa da Mongabay no Brasil. Encontre-a no Twitter: @karlamendes
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