A Usina Hidrelétrica de Sinop, no Rio Teles Pires, já está em funcionamento há mais de um ano. Até agora, no entanto, a população atingida não foi devidamente reparada pelos impactos ambientais e sociais.
Perícias estimaram o valor da terra na região em cerca de R$ 23 mil por hectare. O consórcio empresarial responsável pela usina, porém, pagou aos moradores um valor seis vezes menor pelas terras perdidas com a criação do reservatório.
Seca no Rio Teles Pires, alta mortandade de peixes e surgimento de focos de malária e leishmaniose comprometem ainda mais a qualidade de vida das famílias na área.
Já faz mais de um ano que a Usina Hidrelétrica de Sinop, no norte de Mato Grosso, iniciou sua operação. Moradores da região, no entanto, afirmam que o consórcio empresarial responsável pelo empreendimento ainda não cumpriu várias de suas responsabilidades sociais e ambientais. A população atingida luta para que a Companhia Energética Sinop (CES), que tem como acionista majoritária a empresa pública Electricité de France (EDF), pague as compensações justas pela perda das suas terras e proteja os recursos naturais da área.
“Até o momento, a empresa empreendedora não iniciou a reconstituição das áreas de preservação permanentes do entorno do lago da usina”, denunciou em setembro o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Isso num contexto em que a paisagem se vê afetada por uma seca que fez diminuir drasticamente o nível de água do reservatório, ao que se somam o deslizamento de uma das encostas do rio como resultado da alteração do lençol freático e os incêndios que consumiram boa parte da escassa floresta que se mantinha em pé às margens do Rio Teles Pires.
A degradação ambiental de um dos rios mais importantes da Bacia Amazônica tem consequências dramáticas para as populações rurais, ribeirinhas e indígenas que dependem do Teles Pires, hoje estrangulado por outros três empreendimentos hidrelétricos.
Peixes mortos e leishmaniose
“Antes da usina era bem melhor para a gente pescar. Agora, não estamos pegando peixe nem para comer nessa época”, relata Irma Vicente Rodrigues, uma das moradoras da Gleba Mercedes atingidas pela construção da barragem. Em troca das várias promessas, muitas pessoas foram desalojadas das suas casas, perderam suas roças e viram secar os cursos d’água dos quais dependiam.
“Hoje eu estou com o meu gado mas eu estou sofrendo”, explica José Moreira, morador do Gleba Mercedes há 23 anos. Ele diz que tinha uma terra com nascente própria e fartura de água, mas que hoje sofre porque não sabe onde levar seus animais para beber. Apontando para a vegetação morta na beira do reservatório, Moreira questiona a ideia de que a paisagem do lago seco, onde aparecem árvores e peixes mortos, possa ser produto de uma “energia limpa” como o consórcio empresarial anuncia. “Sinop pode ser que dê lucro para meia dúzia, mas para nós que é fraco, para nós não.”
A qualidade da água do reservatório tem se tornado também um problema de saúde pública, como mostram os quatro episódios de mortandade de peixes no Rio Teles Pires entre fevereiro de 2019 e agosto de 2020. Da mesma forma, a diminuição do nível do reservatório tem provocado o aumento de focos de criação de mosquitos, alguns deles transmissores de malária e leishmaniose, a apenas 500 metros do assentamento das famílias.
Os resultados dos exames feitos pelos profissionais da saúde alertam para o risco de surto destas doenças. Mais de vinte pessoas da Gleba Mercedes podem estar infectadas com a leishmaniose, segundo aponta João de Deus, biólogo e funcionário do Ministério da Saúde que trabalha há 40 anos na região. Ele afirma que o diagnóstico ainda não é preciso e há algumas pessoas que não estão sendo tratadas por dificuldade de deslocamento até a cidade, o que multiplica a cadeia de transmissão. “O maior desafio agora é implantar um programa de tratamento da leishmaniose e da malária, assim como a uma ação de prevenção de saúde ambiental para prevenir a multiplicação dos focos infectantes.”
População recebeu pela terra valor seis vezes abaixo do estimado
“A Sinop Energia prometeu as mil maravilhas mas não aconteceu nenhuma maravilha das que eles prometeram para a gente”, diz Mauro Freese, membro de uma das 214 famílias do assentamento Gleba Mercedes que foram atingidas pela construção da hidrelétrica. “Foi uma negociação sem opção. Era um sistema autoritário deles, era a proposta deles e ninguém podia fazer uma contraproposta. Te davam uns cinco dias de prazo pra você pensar e se não aceitasse ia sair em juízo.”
Em decorrência disso, o Ministério Público Federal (MPF) propôs uma Ação Civil Pública (ACP) contra a CES em junho de 2018 para exigir nova peritagem das terras e denunciar as diversas irregularidades na definição das indenizações. O consórcio empresarial tinha calculado unilateralmente o valor que deveria ser pago a cada família, sem peritagem das terras e sob pressões coercitivas.
“Eles falavam que se não pegava [o dinheiro que eles ofereciam] íamos ter que ir a juízo e receber só 30% sem saber se ia receber o resto. Isso para a gente foi muito desagradável e hoje a gente ainda continua na esperança de ter um preço justo”, afirma o produtor de leite Carlos Becker, que mora há 17 anos no assentamento.
Três perícias foram feitas para calcular o valor das terras. A primeira foi realizada pelo Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária (Incra) em agosto de 2017, a segunda pelo MPF em 2018 e o terceiro e último, que foi uma perícia judicial resultado da ação pública, concluiu em 2019 que o valor real das terras era de R$ 23.724 em média por hectare, ao invés dos R$ 3.900 em média que a CES pagou às famílias.
A negociação poderia ter sido concluída na audiência de conciliação programada para dezembro de 2019. No entanto, o consórcio empresarial se negou a participar daquele acordo e, no dia 10 de agosto, entrou com o recurso de embargo de declaração contra o perito responsável da última perícia judicial, pois considera que o laudo foi elaborado com parcialidades.
Em resposta, as famílias atingidas publicaram uma carta aberta junto com o MAB em 25 de agosto para solicitar a necessidade de “uma decisão urgente e justa para corrigir e reparar os danos causados”. Na carta, argumentaram que “entendemos que o perito seguiu todas as normas técnicas para chegar ao referido valor, sendo que o valor de mercado das terras na região se encontra acima do valor periciado, tendo em vista que o preço das terras levantado é de dois anos atrás, ou seja, se tiver que fazer alguma correção dos valores que seja acima do valor periciado e não abaixo”.
CES criminaliza a mobilização social dos atingidos
Perante a dificuldade de negociação com a CES, a comunidade da Gleba Mercedes empreendeu um processo de mobilização no início de 2018 com atos nas avenidas da cidade de Sinop, no Ministério Público estadual e federal e em frente ao escritório da empresa. No entanto, a reação da CES foi a solicitação de um interdito proibitório em agosto de 2018 contra seis lideranças da comunidade e do MAB, que as proibe de protestar em frente ao escritório da empresa e às áreas de acesso à usina.
“O tratamento que o consórcio empresarial deu a essas famílias foi o fechamento por completo do diálogo”, disse Jefferson Nascimento, representante do MAB, durante o evento online “Defendendo O Amanhã: Como garantir que empresas europeias respeitem o planeta e aqueles que o protegem”. O evento foi organizado em outubro pela ONG Global Witness, junto com representantes do Parlamento Europeu, para apoiar o projeto preliminar da eurodeputada Lara Wolters que visa regular investimentos de empresas europeias em outros continentes. “Teve um completo descumprimento do que a empresa prometia às comunidades, até os acordos públicos perante o Estado e a Secretaria de Meio Ambiente, e foi isso o que levou as famílias a realmente se organizarem e fazerem os protestos e mobilizações”, acrescentou Nascimento.
Os impactos provocados pela hidrelétrica de Sinop foram apresentados como referência de violação de direitos socioambientais para a solicitação dessa nova regulação de responsabilidade empresarial. “Existe aí uma inversão dos papéis, porque realmente a comunidade está lutando por direitos e ela é criminalizada”, disse Jefferson. No entanto, as famílias atingidas não têm desistido e, junto com várias organizações, desenvolveram uma nova atividade de denúncia em 22 de novembro na cidade de Sinop. “Amazônia em debate – Teles Pires, o rio mais impactado da Amazônia” foi um evento onde os atingidos explicaram as dificuldades pelas quais vêm passando como o objetivo de procurar mecanismos para responsabilizar os empreendedores pelos crimes cometidos. Artistas, como o grafiteiro Jessé de souza, estiveram presentes criando novas formas de denûncia através da arte.
Procurada pela Mongabay, a Companhia Energética Sinop não respondeu aos pedidos de esclarecimento até o fechamento desta reportagem.
Imagem do banner: Usina Hidrelétrica de Sinop. Foto: Sinop Energia/divulgação.
NOTA
A Companhia Empresarial de Sinop (CES) respondeu por via escrita em janeiro, após a publicação da matéria. Justifica ter feito uma comparação com outros imóveis da região para determinar o valor das indenizações pagas pelas terras e que as posteriores perícias não consideram fatores como a falta de titulação pela terra ou o pagamento de benfeitorias. A CES informa que planeja instalar em fevereiro de 2021 uma barreira eletromagnética para impedir a entrada de peixes nas turbinas e evitar impactos à ictiofauna. Afirma também ter começado em novembro de 2020 um programa de recuperação das áreas degradadas no entorno do reservatório e pretende apoiar os pescadores da região com cursos e treinamentos. Em relação ao aumento de mosquitos transmissores de doenças como malária e leishmaniose, a CES defende “que se tratava de um caso de reprodução sazonal e cíclica dos insetos vetores”.