Maior golfinho de água doce do mundo, o boto-cor-de-rosa vinha sendo caçado em níveis alarmantes na Amazônia até 2015. Para conter a matança, o governo Dilma Rousseff decretou uma moratória de cinco anos sobre a pesca da piracatinga.
É costume entre os pescadores usar a gordura do boto como isca para capturar esse peixe, um tipo de bagre muito apreciado como alimento na Bacia Amazônica.
A moratória foi agora prorrogada até junho de 2021, mas pesquisadores argumentam que outros cinco anos são necessários para que dados suficientes sobre o status de conservação do boto sejam levantados.
TEFÉ, Amazonas – Desde 2018 classificado como “em perigo” na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), o boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis) ganhou novo fôlego em sua jornada de sobrevivência nos rios da Amazônia.
Até 2015, era costume entre os pescadores usar de forma irrestrita a gordura do boto como isca para a captura da piracatinga (Calophysus macropterus), um tipo de bagre bastante apreciado como alimento na região Norte. Em janeiro daquele ano, diante de alertas crescentes de pesquisadores e conservacionistas, o governo Dilma Rousseff decretou uma moratória de cinco anos sobre a pesca da piracatinga.
A moratória expirou em janeiro deste ano. Depois de meses de impasse, a Secretaria de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura prorrogou, em junho, a medida por mais um ano. A decisão vale em todo o Brasil e vai permitir avaliar a recuperação das espécies usadas como isca da piracatinga. Além do boto-cor-de-rosa, eram vítimas também o boto tucuxi (Sotalia fluviatilis) e algumas espécies de jacarés.
É um alívio – ainda que, mais uma vez, com prazo de validade. Especialistas vinham alertando que deixar de prorrogar a moratória poderia levar à extinção do maior golfinho de água doce do mundo – destino que se abateu em 2007 sobre o golfinho-lacustre-chinês, ou baiji (Lipotes vexillifer), do Rio Yangtzé, vítima da sobrepesca, da poluição e da degradação de seu habitat.
“Nem todos os objetivos da moratória foram cumpridos”, adverte Vera da Silva, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que estuda os botos-cor-de-rosa há mais de 30 anos. “Precisamos de melhores informações sobre as práticas de pesca. As leis não são fortes o suficiente para obrigar os pescadores a relatar o que capturam.”
Uma pesquisa de Vera, publicada em 2017, constatou que a gravidez de um boto costuma durar 13 meses. Depois disso, a mãe amamenta o filhote debaixo d’água por dois anos. Por causa desse longo tempo de gestação e amamentação, as fêmeas se reproduzem em períodos de três a cinco anos. “A espécie se reproduz muito lentamente”, observa ela. “Se a remoção for muito alta, a espécie não tem a capacidade de se substituir”.
Outras conclusões da pesquisadora, publicadas em 2018, revelaram que a população de botos-cor-de-rosa no Brasil está diminuindo pela metade a cada década. Mesmo com a moratória, os botos-cor-de-rosa ainda correm grandes riscos: “Muitos botos são pescados em redes, como captura acidental”, diz Marcelo Oliveira, especialista em conservação do WWF-Brasil. “Além disso, a mineração de ouro na Amazônia levou ao envenenamento da água com mercúrio. E a construção de usinas hidrelétricas reduziu seu habitat e seu pool genético.”
Estima-se que existam poucas dezenas de milhares deles na natureza, embora seja difícil fazer estimativas populacionais precisas nos rios de águas escuras da Amazônia. Para isso, o WWF-Brasil tem inovado ao usar drones que voam sobre faixas de 2,5 quilômetros de rio gravando imagens. “É muito mais barato e mais eficiente” do que fazer observações de barco, diz Oliveira. Atualmente, a ONG tem parcerias com universidades britânicas para usar inteligência artificial na análise dos resultados obtidos pelos drones.
Oliveira acredita que a conservação dos botos deve visar também um melhor envolvimento das comunidades com o animal, em toda a Bacia Amazônica. Seria um esforço para sensibilizar os pescadores, em uma região cuja população já ultrapassou 34 milhões de habitantes.
“Prorrogar a moratória pode ser uma maneira de proteger os botos, já que é possível usar outras iscas. Precisamos ter um equilíbrio entre desenvolvimento e conservação da biodiversidade”, comenta o especialista da WWF-Brasil. “Não se trata de um conflito entre as duas coisas. Se as comunidades se envolverem na conservação, os botos estarão mais seguros.”
Para Fernando Trujillo, diretor científico da Fundação Omacha, ONG com sede na Colômbia especializada na proteção de botos, a conservação deve ser tratada em nível internacional. “Precisamos trabalhar em conjunto com todos os países em termos de políticas, chegando a um acordo sobre critérios e legislação, principalmente quando se trata de monitorar as fronteiras.” A Colômbia tem um grande mercado consumidor da carne da piracatinga.
Trujillo defende que a moratória brasileira seja prorrogada por mais cinco anos. “Por muitas razões, essa é uma espécie que precisamos conservar e salvar”, diz ele. “Vivos, os botos podem gerar mais dinheiro para as comunidades locais, com o ecoturismo, do que mortos.”
O boto cor-de-rosa – também chamado de boto-vermelho – já foi abundante nas bacias dos rios Amazonas e Orinoco, que ocupam a metade norte do continente sul-americano. Habilidoso caçador de dentes afiados, costuma atingir mais de 1,80 metro de comprimento e pode viver até 50 anos. E, como outros golfinhos de água doce, usa diversos sons para se comunicar.
Pesquisadores veem o boto-cor-de-rosa como o principal predador dos ecossistemas aquáticos da Amazônia – no topo da cadeia alimentar, o cetáceo seria a “onça do rio”. Em períodos de cheia, eles usam a ecolocalização em meio a raízes submersas para rastrear suas presas, que incluem dezenas de espécies de peixes, tartarugas e caranguejos de água doce.
Imagem do banner: Joachim S. Müller/CC BY-NC-SA.
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