A febre amarela, transferida das pessoas pelos mosquitos, está colocando em risco a recuperação do mico-leão-dourado. Em maio de 2018, a primeira morte de um exemplar da espécie foi registrada no ambiente natural após um surto da doença em todo o Brasil. Preocupantes 32% da população desapareceram no ano seguinte. Segundo especialistas, a doença pode fazer retroceder em trinta anos os esforços de conservação da espécie.
Quase extinto devido à caça ilegal, esse primata endêmico da Mata Atlântica teve sua população reduzida a algumas centenas de indivíduos nos anos 80, resistindo em fragmentos de floresta no estado do Rio de Janeiro. Esforços de conservação intensivos restauraram esse número para 3.700 indivíduos em 2014.
Enquanto isso, pesquisadores brasileiros lideram um projeto pioneiro para a criação de uma possível vacina de febre amarela para o primata. O requerimento de aprovação está sendo analisado pelo governo federal.
Acredita-se que a combinação de mudanças climáticas e desmatamento (que reduz drasticamente o habitat do mico-leão) seja a grande responsável pela recente epidemia de febre amarela no Sudeste brasileiro.
Em abril de 2018, funcionários da Associação Mico-Leão-Dourado, ONG dedicada à proteção da espécie, encontrou um desses primatas ameaçados aparentemente doente e incapaz de subir nas árvores. Estava deitado no chão da mata no município de Aldeia, a cerca de 80 quilômetros da capital do Rio de Janeiro.
No dia seguinte, funcionários de campo procuraram o animal mas não conseguiram encontrá-lo em meio à mata. Mas, no final daquele mês, os corpos de dois outros micos-leões foram descobertos em florestas próximas, em Cambucaes e Imbaú.
Os animais vitimados imediatamente colocaram ambientalistas em alerta.
Em 17 de maio de 2018, seus piores temores se tornaram realidade: a primeira morte confirmada de um mico-leão-dourado por febre amarela foi anunciada pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério do Meio Ambiente.
“Até esse relatório, não sabíamos se os animais eram suscetíveis à doença, mesmo depois de quatro décadas de trabalho com os micos-leões. Mas agora entendemos que eles são ainda mais suscetíveis que os humanos”, explica o Dr. Carlos Ruiz, presidente da Associação Mico-Leão-Dourado.
Uma espécie em risco
Conhecido por sua característica “juba”, semelhante à de um leão, e por sua pelagem alaranjada, o mico-leão-dourado, ou Leontopithecus rosalia, é um macaco endêmico da Mata Atlântica, , bioma que abriga 22 das 77 espécies de primatas do Brasil. Nos anos 80, a espécie estava criticamente ameaçada devido à perda de habitat e a níveis extremamente altos de caça ilegal.
Na época, a população ficou reduzida a apenas algumas centenas de indivíduos que habitavam fragmentos isolados de floresta em torno da bacia do Rio São João, no estado do Rio de Janeiro. Contudo, uma campanha bem-sucedida focada intensivamente em ações de conservação, que contou com a introdução de micos-leões nascidos em zoológicos nas populações selvagens, aumentou o número de micos-leões para 3.700 em 2014.
Então veio o surto de febre amarela, entre o final de 2017 e o começo de 2018. Foi a maior epidemia humana no Brasil desde que a vacinação em massa começou nos anos 1940. A doença transmitida por mosquitos, normalmente encontrada em locais remotos da Amazônia, espalhou-se para os populosos estados do Sudeste, matando centenas de pessoas e infectando milhares.
Os cientistas, alarmados com as primeiras mortes por febre amarela de micos-leões-dourados em 2018, ficaram assombrados com o declínio de 32% da espécie devido à doença, um terrível prejuízo para um animal já classificado como ameaçado pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
Agravando a crise, houve uma reação desinformada de moradores locais ao surto de febre amarela, com uma série de ataques a todas as espécies de macacos, aparentemente baseada na crença falsa de que os micos-leões, e não os mosquitos, eram capazes de transmitir diretamente a doença para os humanos. Alguns primatas foram ilegalmente mortos por envenenamento e outros foram abatidos a tiros.
Mais notícias ruins: uma pesquisa publicada em 2018 por Karen Strier, antropóloga da Universidade de Wisconsin que estuda os macacos da Mata Atlântica desde os anos 1980, e colegas revelou que os números de muriquis também sofreram quedas “catastróficas” na Reserva Particular do Patrimônio Natural da Mata Atlântica devido à febre amarela, caindo 10% e 26% em duas populações separadas.
“O impacto da febre amarela tem sido absolutamente devastador” para esses primatas, especialmente para os micos-leões, diz Ruiz. “Isso pode fazer com que recuemos 30 anos nos esforços de conservação.” Ele relata algumas boas notícias: voluntários estão agora monitorando continuamente as populações sobreviventes de mico-leão, ajudando agentes locais de saúde pública a garantir quase 100% de vacinação das pessoas em áreas afetadas, e a troca regular de informação com órgãos do governo para ajudar a prevenir futuros surtos.
Epidemia isolada ou uma aflição permanente?
Acredita-se que a febre amarela se originou na África e se espalhou para o Brasil como resultado do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. A doença apareceu primeiro em Recife, em 1685, de acordo com registros históricos. Contudo, a febre amarela não é endêmica à maior parte do país e, portanto, a maioria dos macacos não desenvolveram resistência a ela, deixando-os particularmente vulneráveis, de acordo com a Sociedade Brasileira de Primatologia.
Não se sabe como, ou quando, as populações de mico-leão vão se recuperar depois dessa perda significativa.
“O maior problema é como essas espécies se recuperam de colapsos”, diz a antropóloga Strier. “Ou eles se reproduzem dentro do grupo sobrevivente ou precisam recrutar indivíduos de outras populações. Mas quanto mais fragmentada a paisagem, mais difícil é [esse recrutamento].” O problema da reprodução dentro de um único grupo é que “se a população é pequena, isso pode não funcionar, e também produz menor diversidade genética.”
Tragicamente, especialistas em primatas temem que os surtos de febre amarela possam se tornar uma ocorrência regular na Mata Atlântica, e que a doença se transforme numa nova ameaça ao mico-leão-dourado, ao mesmo tempo que o tráfico ilegal permanece uma séria preocupação.
“De tempos em tempos, [a febre amarela] reemerge e pode afetar regiões além da Amazônia se tiver viabilidade de transmissão”, diz um porta-voz da Sociedade Brasileira de Primatologia. “Mas pode se tornar uma doença endêmica também da Mata Atlântica.”
Uma combinação de mudança climática e desmatamento em áreas que servem como zonas-tampão entre a floresta tropical e as áreas urbanas permitiu que a febre amarela se espalhasse. A extração de madeira e a produção de carvão, a agricultura e a urbanização devastaram o habitat do mico-leão-dourado, reduzindo-o a apenas 2% de sua área original de Mata Atlântica.
A promessa de uma vacina
A esperança agora se concentra numa vacina recém-desenvolvida para primatas não-humanos que pode imunizar espécies como o mico-leão-dourado e talvez salvá-las da doença e ajudá-las a evitar a extinção.
Marcos Freire, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, que trabalhou numa equipe que produziu uma vacina para febre amarela em humanos, vem buscando uma alternativa para primatas desde 2017, e acredita que agora tem uma que pode funcionar.
“Gostaríamos de vacinar alguns desses animais e depois transportá-los de volta para áreas onde tem havido mortalidade”, diz ele. “Mas ninguém nunca vacinou uma espécie de macaco antes e há muitos desafios.”
Freire diz que está requerendo permissão do Ministério da Saúde e do Ministério da Agricultura para capturar e imunizar populações selvagens de mico-leão. “No Brasil, até agora nunca houve uma licença para administrar vacinas a primatas não-humanos”, diz ele. “Cães, gatos e vacas, sim – mas não primatas.”
A vacina, que ele inicialmente espera usar em 500 primatas, é baseada numa diluição da vacina de febre amarela administrada aos humanos, e usa um processo e uma fórmula similares. “Aplicamos diferentes quantidades de doses em espécies do nosso centro de primatas no Rio de Janeiro e os resultados foram efetivos”, revela.
Mas desafios práticos persistem: como, por exemplo, “testá-la em animais que estão criticamente ameaçados?”, questiona Strier, que apoia o desenvolvimento da vacina. “E como você a administra a animais na natureza de uma forma eficiente em termos de custo? E o que dizer quanto ao fato de haver humanos que ainda não foram vacinados?”
Mesmo que esses obstáculos sejam superados, a vacinação não eliminará totalmente a doença porque as fêmeas de alguns mosquitos passam o vírus diretamente para seus ovos. Enquanto isso, há outras soluções promissoras, tais como neutralizar os mosquitos através de modificação genética, como foi explorado no caso do zika vírus; ou usando modelos matemáticos para antecipar a chegada do vírus em vários locais para combatê-lo imediatamente.
A vacina, caso se mostre eficaz, pode oferecer um alívio importante a esses primatas ameaçados, mesmo enquanto outros perigos humanos pressionam os ecossistemas no Sudeste.
Independentemente dos resultados, a pesquisa da vacina oferecerá “uma boa oportunidade para aprender com o que acontecerá”, conclui Freire. “Os micos-leões sobrevivem porque são imunes ou não foram infectados? Qualquer tipo de resultado [observado] será importante. Porque, se a cada ano tivermos outro episódio [de febre amarela e falta de resposta efetiva], teríamos que voltar à reprodução em cativeiro.”
Citação:
Dietz, J.M., Hankerson, S.J., Alexandre, B.R. et al. (2019). Yellow fever in Brazil threatens successful recovery of endangered golden lion tamarins. Sci Rep 9, 12926.
Imagem do banner: Andreia Martins.
Mais reportagens da Mongabay sobre fauna brasileira aqui.