O porto de Santarém sintetiza o intenso embate que se desdobra por toda a bacia do Tapajós: a resistência de populações locais ao avanço dos grandes complexos logísticos de escoamento de soja e outros grãos.
Já não se vê a bela praia urbana de Vera Paz, local usado, principalmente, pela população pobre da cidade. O sítio arqueológico, que continha ali registros de mais de 10 mil anos de ocupação humana, também foi perdido.
Na orla da cidade, são constantes as chegadas e partidas de canoas e pequenos barcos que viajam para as muitas comunidades próximas e barcos fluviais de três andares repletos de passageiros descansando em redes.
A cidade de Santarém fica exatamente em frente ao encontro das águas esverdeadas do rio Tapajós com as barrentas do rio Amazonas, que correm paralelas por várias quilômetros até finalmente se misturarem já na foz do Tapajós. O porto de Santarém sintetiza o intenso embate que se desdobra por toda a bacia do Tapajós: a resistência de populações locais ao avanço dos grandes complexos logísticos de escoamento de soja e outros grãos.
Na orla da cidade, são constantes as chegadas e partidas de canoas e pequenos barcos que viajam para as muitas comunidades próximas e barcos fluviais de três andares repletos de passageiros descansando em redes. Também é possível ver o mercado a beira-rio com peixes, especiarias, remédios caseiros e artesanato indígena e ribeirinho, uma dinâmica em que o povo ocupava a cidade.
Entretanto, já não se vê a bela praia urbana de Vera Paz, local usado, principalmente, pela população pobre da cidade. O sítio arqueológico, que continha ali registros de mais de 10 mil anos de ocupação humana, também foi perdido.
Em 2003, o espaço, até então utilizado por ribeirinhos e citadinos, foi invadido pela construção, que depois se revelou ilegal, de um grande terminal graneleiro da empresa Cargill, a maior trading de grãos norte-americana.
Partindo do Mato Grosso, o agronegócio demarcava o que seria o ponto de chegada do corredor de soja que rasgaria ao meio a Amazônia alguns anos depois.
O agronegócio exige passagem
À medida em que a soja se tornava a estrela da economia brasileira, a explosão da produção no norte mato-grossense precisava encontrar novas vias de escoamento. A urgência da viabilização de uma malha logística era óbvia para o analista Jorge Baldo há muito tempo. Entrevistamos o autodidata e ferrenho nacionalista em seu escritório em Sorriso (MT). Sentado diante de um brasão militar, ele contou que, em 1994, o setor agropecuário na região amargava os efeitos de uma grave crise nacional. O Banco do Brasil estava disposto a negociar a dívida dos agricultores. Baldo percebeu que não seria suficiente: “Os produtores precisavam de insumos. Não tínhamos estrada! Demorava uma semana para qualquer coisa vir de Cuiabá!”, relata.
Baldo começou, então, a pensar seriamente na pavimentação da BR-163 – idéia que, naquela época, era considerada “uma utopia total”. “A gente foi juntando um, juntando outro, criamos o Comitê pró BR-163 [um lobby para pavimentar a rodovia] e começamos as reivindicações”, explicou Baldo. Em 2007, o trecho da BR-163 até Cuiabá foi recuperado, possibilitando que Sorriso se tornasse a “capital do agronegócio brasileiro”.
Entretanto, esse asfalto rumo ao sul permitia o escoamento da produção apenas pelos portos de Santos (SP) ou Paranaguá (PR). Ou seja, os grãos viajavam 2,2 mil quilômetros, onde embarcavam em transatlânticos para navegar 2,2 mil quilômetros de volta ao norte até alcançar a mesma latitude onde foram colhidos. Dali, rumavam ao leste para chegar aos portos europeus ou atravessavam o canal do Panamá para atender ao pujante mercado chinês.
Além das distâncias, havia péssima condição das estradas e a defasagem operacional dos portos. Os caminhões chegavam a esperar até 60 dias para serem descarregados.
Os custos que o agronegócio pagava por essa peregrinação doíam ainda mais no bolso quando os latifundiários pensavam que, se pudessem rodar rumo a Santarém pela mesma BR-163, em menos da metade dessa distância, embarcariam a produção já no rio Amazonas. Porém, para o norte a estrada era inviável: praticamente todo o trecho paraense da rodovia era de terra e, no chuvoso inverno amazônico, intransitável.
Cortando caminho — e terra indígena
Naquele tempo, a soja do norte de Mato Grosso acabava sendo escoada pelo rio Madeira. Aliás, tal possibilidade existia, em grande medida, por conta dos interesses pessoais de Blairo Maggi. Boa parte de sua produção está em Sapezal, cidade fundada por seu pai, André Maggi, na década de 1990, onde fica uma das 20 fazendas do atual ministro. Só esse imóvel tem 44,5 mil hectares.
A controversa rodovia estadual MT-235, que liga Campo Novo do Parecis à Sapezal, foi implantada por Maggi e atravessou a Terra Indígena Utiariti, fazendo a conexão necessária até o complexo hidroviário Porto Velho-Itaquatiara. Conhecida como Rodovia do Índio, a rota atendia bem às colheitas de Maggi em Sapezal. Porém, os grãos colhidos no norte do estado continuavam ziguezagueando, como se corressem os dois lados de um triângulo: um a nordeste até Porto Velho e outro, a noroeste, até Santarém.
A Rodovia do Índio não foi a única implementada por Maggi. Durante sua gestão como governador, de 2003 a 2010, ele promoveu a pavimentação de muitas estradas estaduais, ajuda reconhecida pelos produtores que encontramos ao longo de nossa jornada. Geraldino Dal’Mazo, ex-prefeito da cidade de Sinop, nos disse: “Blairo Maggi é uma pessoa muito inteligente. Ele sempre ajudou a região. (…) A estrada que ele abriu para os produtos dele todo mundo usa. Então, por que reclamar?”
Em 2003, o governo Lula anunciou o asfaltamento do trecho norte da BR-163, que hoje está quase finalizado. As multinacionais da soja, então, se apressaram a instalar terminais portuários.
A norte-americana Bunge foi a primeira a construir um terminal de transbordo no porto de Miritituba, à margem direita do rio Tapajós. Os caminhões rodavam mil quilômetros a menos e faziam o transbordo para balsas que seguiam ao norte, descendo o trecho baixo e plano do Tapajós até o Amazonas, por onde chegavam até os complexos de Barcarena, perto de Belém, ou de Santana, perto de Macapá (Amapá), onde havia um segundo transbordo para navios graneleiros de longo curso.
Em 2016, a Bunge vendeu metade do seu complexo Miritituba-Barcarena para a Amaggi, empresa da família do ministro Blairo Maggi, aumentando dramaticamente seu papel no negócio de exportação, onde grande parte dos lucros se acumulam. “Este novo passo reforça a nossa presença na região e também contribui para o crescimento de uma rota de logística chave“, disse Waldemir Loto, o executivo-chefe da Amaggi.
Se o acordo foi bom para o grupo Amaggi, foi ainda melhor para a Bunge, que passou a ter o então governador Blairo Maggi defendendo seus interesses no jogo do direcionamento de políticas públicas e projetos logísticos do Mato Grosso.
Desde 2003, era público o interesse do grupo Amaggi na construção de um porto em Miritituba. Em 2004, anuncia-se que o asfaltamento da BR-163 iria apenas até Miritituba. Por pressão de Maggi, o projeto de pavimentação excluía 172 km, isolando Santarém e o porto da Cargill e direcionando o fluxo da soja para Miritituba. Na época, o então governador do Pará, Simão Jatene, protestou: “A maior cidade do Baixo Amazonas não pode ser excluída do asfaltamento da BR-163”. Até hoje o asfaltamento da rodovia segue em obras no sentido Santarém.
Hoje, a Cargill também investe em Miritituba, considerando o local “um entreposto óbvio de interligação rodo-hidroviária, é um curinga. De lá podemos ir a qualquer porto grande da Região Norte. O projeto abre uma matriz de alternativas logísticas”, de acordo com Clythio Buggenhout, diretor do novo porto da Cargill em Miritituba.
Resistência quilombola
Entretanto, o agronegócio ainda não desistiu da opção de implantar um grande complexo portuário em Santarém. O fato só não se consumou até agora por conta da resistência de famílias quilombolas da região.
A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) tinha a pretensão de instalar um grande terminal graneleiro no lago do Maicá, às margens do rio Amazonas, próximo à zona urbana de Santarém. Os estudos de impacto do empreendimento ignoraram a existência das comunidades tradicionais, afirmando “não existir nenhum território quilombola na área diretamente afetada pelo empreendimento”. Porém, sete comunidades quilombolas vivem a menos de 5 km do local onde se pretendiam as obras.
Mobilizado, o grupo recorreu ao Ministério Público Federal reivindicando seu direito de consulta prévia sobre o empreendimento. Em abril de 2016, MPF e MPE ingressaram com ação na Justiça Federal, que ordenou a suspensão do licenciamento. Segundo a ação judicial, o projeto tem um “discurso carregado de uma visão colonialista e ultrapassada.” O pedido foi aceito em 12 de abril de 2016 e o processo da obra está parado desde então.
Para além de Maicá, as multinacionais da soja e o governo estadual do Pará têm planos ambiciosos. De acordo com previsões recentes da Setran (Secretaria de Transportes do Pará), até 2026, o terminal de Miritituba será capaz de movimentar 32 milhões de toneladas de grãos por ano, o que corresponde a mais do que a atual produção de soja de todo estado de Mato Grosso.
“No caso da soja, a partir das atuais 28 milhões de toneladas produzidas, chegar até 68 milhões de toneladas é fácil, desde que haja avanços que nos deem condições de competitividade”, disse Carlos Henrique Fávaro, vice-governador do Mato Grosso e fazendeiro de soja em Lucas do Rio Verde, na entrevista recente. “Mato Grosso é um Estado pujante e muito forte, mas que está adormecido nas suas potencialidades”.
Logística de impacto socioambiental
Entretanto, a otimização logística teve um custo alto para a floresta. Em 2004, ano seguinte ao anúncio do asfaltamento da BR-163 por Lula, o desmatamento explode, e a região sob influência da rodovia tem protagonismo nos índices. Como analisa Juan Doblas, que monitora o desmatamento na região no Laboratório de Geoprocessamento do Instituto Socioambiental (ISA), o dano não parou por aí. “Dez anos depois, o desmatamento acumulado atingiu as piores projeções. A perda de floresta ali está tão fora de controle que entre 2004 e 2013 (exceto 2005), enquanto o desmatamento caía em toda a Amazônia, aumentava na região da BR-163”, explica Doblas.
80% dos casos de desmatamento na Amazônia ocorrem na faixa de 30 km ao longo das estradas pavimentadas.
José Alberto Colares, secretário ambiental do governo do estado do Pará, alertou em 2012 que o governo estava autorizando as tradings da soja a construir grandes portos em Miritituba sem insistir na realização de trabalhos preparativos: “Essa área carece de toda a infraestrutura necessária para enfrentar o impacto vindo do ponto de vista social, econômico e ambiental. Precisa-se de um plano preventivo que envolva ações de toda natureza: engenharia de tráfego para acessibilidade tanto rodoviária quanto hidroviária à zona portuária, transmissão energética, segurança pública, saneamento, saúde, educação, gestão de risco, profissionalização da mão-de-obra local para conter a migração, coleta de lixo, abastecimento de água”. Segundo o secretário, o licenciamento cabia à Sema, e os problemas não podiam ser responsabilidade apenas do Estado, mas dos empreendimentos também.
Pouca atenção tem sido dada ao apelo do secretário, uma vez que estão previstos mais 26 terminais de transbordo de grãos em Miritituba.
Em fevereiro de 2016, o MPF e o Ministério Público Estadual ingressaram com ação pedindo que a Justiça Federal determine a paralisação dos três portos já em funcionamento em Miritituba. Entre as razões, os autores acusam debilidades nos estudos de impactos sociais e ambientais. O caso ainda não foi julgado.
Avalanche de mega-obras
As projeções de nova infraestrutura na região incluem a já anunciada , Ferrogrão, que irá de Sinop (MT) até Miritituba (PA). Trata-se de um projeto de ferrovia de 933 km, com custo estimado de R$ 12,9 bilhões e capacidade para escoar, em média, 36 milhões de toneladas de grãos ao ano. Se concluída, pretensamente em 2024, a ferrovia fornecerá frete mais barato, retirando parte do tráfego de caminhões da BR-163, que, em poucos anos, vai ficar muito congestionada nos momentos de pico das safras.
A obra da Ferrogrão sequer foi licenciada e já é tratada como favas contadas. O governo do presidente Michel Temer, inclusive, reduziu um Parque Nacional para facilitar a instalação da ferrovia.
E não para por aí mais. O lobby do agronegócio pretende transformar os rios Juruena, Teles Pires e Tapajós em uma hidrovia 1500 km de extensão, o que permitiria que a soja do Mato Grosso seja colocada em contêineres e transportada por barcaças para o norte. Em vários pontos de transbordo, já no rio Amazonas, os contêineres seriam então transferidos das barcaças para os vastos navios Panamax, cada um capaz de armazenar 45 mil toneladas de soja. Esses navios, então, transportariam a soja para Europa, China e outros mercados asiáticos.
A viabilidade desta hidrovia depende de desvios e aprofundamento dos leitos dos rios, explosão de pedrais e outras grandes obras de alto impacto. As cachoeiras – sagradas para os povos indígenas da região – seriam explodidas ou submersas, o que desencadearia um processo etnocida, como abordado em matéria anterior.
Rumo ao abismo climático
O renomado cientista da Amazônia, Tom Lovejoy, entrevistado em agosto de 2016 pela Science, a revista da Associação Americana para o Avanço da Ciência, fez um alerta grave. Em resposta a uma pergunta sobre qual ele considerava a maior ameaça à Amazônia, Lovejoy respondeu:
A intersecção entre infraestrutura descoordenada e o ciclo hidrológico. A Amazônia produz metade de sua própria precipitação [por evapotranspiração], e a água se recicla cinco ou seis vezes quando atravessa a bacia. [O desmatamento perturba] o ciclo hidrológico [e] vai ter efeitos sobre o sistema climático. Com as secas de 2005, 2010, e a atual – acho que estamos vendo indícios de um ponto de colapso sem retorno.”
Uma vez que o desmatamento da Amazônia ultrapasse o ponto de inflexão da mudança climática, os chamados “pulmões do mundo” não mais funcionariam como um sumidouro de carbono – onde grandes quantidades de gases de efeito estufa são armazenados. Ao contrário, a floresta tropical moribunda poderia se tornar uma fonte de emissões de carbono retroalimentando as mudanças climáticas.
Embora seja difícil precisar o limite de inflexão da floresta amazônica – entre 20% e 40% de desmatamento, de acordo com cientistas como Lovejoy – a perda florestal decorrente da construção de dezenas de barragens e obras de infraestrutura na Bacia do Tapajós certamente vai acelerar a ultrapassagem desse ponto de colapso, com consequências potencialmente desastrosas para todo o planeta.
Esta matéria é da série exclusiva “Tapajós sob Ataque”, escrita pela jornalista Sue Branford e pelo cientista social Mauricio Torres, que percorrem a bacia Tapajós. A série é produzida em colaboração com The Intercept Brasil. Leia a versão em inglês.