A rodovia pelo TIPNIS, da Bolívia, que teria cortado ao meio um parque nacional e terras indígenas remotas, foi em grande parte financiada pelo BNDES. No entanto, o projeto foi alvo de intensos protestos de grupos indígenas e ambienatlistas, e foi abandonado.
O projeto da rodovia foi cancelado em 2011, antes de receber qualquer financiamento do BNDES, mas depois de a construção já haver começado.
Neste ano, três organizações não governamentais enviaram uma queixa em conjunto ao BNDES, alegando que o banco não levou em consideração adequadamente os impactos ambientais e sobre direitos humanos da rodovia.
As ONGs dizem que o processo de investimento do BNDES não teve transparência, não cumpriu critérios sociais e ambientais nem disponibilizou qualquer mecanismo de resposta a reclamações, concluindo que o banco precisa melhorar seus critérios para projetos futuros. O banco refuta as acusações.
A rodovia do TIPBIS boliviana – derrotada por protestos massivos por parte de grupos indígenas e ambientalistas – é considerado um dos mais controversos projetos de construção na América Latina nos últimos anos. O papel desempenhado nessa questão pelo BNDES, o gigantesco banco de desenvolvimento do Brasil, ainda requer uma reavaliação, segundo denúncia apresentada por três grupos da sociedade civil neste ano.
O BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social brasileiro, tornou a rodovia possível fiscalmente em 2009, ao concordar em financiar 80% do custo do projeto – uma enorme estrada de mais de 300 km de comprimento, passando por alguns dos territórios mais selvagens da Bolívia.
Em setembro de 2013, o banco assinou discretamente um acordo cancelando o compromisso.
O início dos protestos
Quando foi proposta em 2010, a rodovia – que se estenderia desde a bem conectada cidade de Villa Tunari até a cidade de San Ignacio de Moxos, na Amazônia boliviana – agradou muito aos governos de Bolívia e do Brasil.
Para o Brasil, ela seria um meio de exercer poder brando e demonstrar dominância regional, além de, na esfera pragmática, uma maneira de melhorar a infraestrutura de transporte ligando o território brasileiro aos portos da Bolívia no Pacífico, o que facilitaria as exportações para a Ásia.
Para a Bolívia, a rodovia trazia a promessa de ligar a historicamente isolada região amazônica aos movimentados centros urbanos costeiros. O vice-presidente boliviano Alvaro García chegou a reivindicar um precedente, dizendo que uma estrada seguindo essa rota estratégica já estava planejada desde a época da independência do país, em 1825, ou até mesmo antes, no tempo do império espanhol.
O acordo estabelecido entre os dois países parecia bom demais para ser verdade: o Brasil financiaria a maior parte da construção e a Bolívia se beneficiaria dos empregos gerados, enquanto comunidades rurais isoladas ganhariam acesso inédito a serviços e comércio.
Mas ambientalistas e povos indígenas não estavam tão empolgados.
A enorme rodovia atravessaria o coração de uma reserva indígena e de proteção ambiental de 13.700 quilômetros quadrados na Amazônia, conhecida como Parque Nacional TIPNIS. A área é o lar de muitas espécies ameaçadas, como a lontra gigange (Pteronura brasiliensis), e é uma das áreas biodiversas e também uma das mais socioeconomicamente pobres da América Latina.
Em agosto de 2011, quando já estava em andamento a construção de dois trechos da estrada que passavam fora do território indígena, índios e ambientalistas organizaram uma marcha de 65 dias para atravessar 600 quilômetros desde a cidade de Trinidad até a capital da Bolívia, La Paz.
Na marcha, os manifestantes acusavam o governo boliviano de violar leis nacionais e internacionais ao não consultar as comunidades indígenas locais em relação à rodovia.
O protesto inflamou o imaginário nacional e obteve amplo apoio, ocorrendo apenas seis anos após a eleição de Evo Morales, o primeiro presidente indígena do país, e dois anos depois da aprovação de uma nova constituição revolucionária que valorizava a proteção ambiental e dos direitos dos povos
indígenas.
A oposição à rodovia aumentou depois que a polícia tentou reprimir a marcha de forma violenta.
O grupo de indígenas e ativistas ambientais chegava a milhares de pessoas quando a manifestação chegou à capital. Lá, muitos simpatizantes se aglomeravam para receber os manifestantes. A imprensa internacional, incluindo grupos midiáticos que geralmente ignoram a Bolívia, perceberam
que se tratava de uma boa história e cobriram o evento.
A estrada nunca foi construída: o governo boliviano, constrangido, emitiu uma lei em 2011 tornando intocável o território TIPNIS.
Pouco depois, o BNDES anunciou que iria retirar o empréstimo de 33 milhões de dólares para o projeto. No final, o banco nunca chegou a liberar qualquer financiamento para a construção da rodovia.
Por que a rodovia do TIPNIS continua relevante
No entanto, o caso ainda não está encerrado. Restam questões sobre como o projeto da rodovia chegou tão longe. Um grupo de líderes da sociedade civil argumenta que ele nunca deveria ter sido aprovado, e que o BNDES foi negligente ao aceitar financiá-lo.
Em março deste ano, três organizações da sociedade civil apresentaram queixa ao BNDES, argumentando que o banco não levou em consideração de forma adequada os impactos ambientais e sobre os direitos humanos causados pela rodovia TIPNIS.
Os grupos dizem que, mesmo que a rodovia não tenha sido construída, a questão do envolvimento do banco no caso ainda é relevante. O BNDES é o maior banco de desenvolvimento das Américas, e suas políticas e ações continuam a ter repercussão em toda a América Latina. O Mongabay já escreveu extensamente sobre como decisões do banco em relação a seleção de projetos, escolha de localização, impactos ambientais e critérios sobre direitos humanos têm consequências de longo alcance no presente e no futuro.
A queixa das ONGs alega que o BNDES violou leis internacionais sobre o direito dos povos indígenas de ser consultados sobre qualquer projeto que possa vir a afetar suas comunidades. A decisão do banco de se candidatar ao contrato, a assinatura do contrato e o início da construção
ocorreram antes de que os grupos indígenas que habitavam o território TIPNIS fossem adequadamente consultados.
“A licitação aconteceu em 2008. Mas muitos anos antes as comuindades vinham reclamando de não terem sido consultadas sobre o plano de se construir uma estrada em suas terras”, diz Chris Moye do Global Witness – uma organização sem fins lucrativos com sede em Londres voltada para conflitos por recursos naturais – e coautora da queixa.
Comunidades indígenas expressaram a preocupação de que a rodovia poderia causar dano ambiental e permitir a invasão de suas terras por fazendeiros locais que produzem coca, o principal ingrediente da cocaína, e que, na Bolívia, é consumido legalmente em sua forma não processada.
Interesses corporativos de grande escala também estiveram envolvidos, de acordo com outro coautor da queixa. “No TIPNIS, interesses de empresas petrolíferas convergiram com interesses do agronegócio, extração ilegal de madeira e interesses de produtores de coca”, diz Silvia Molina, do
Centro de Estudos e Documentação Latino-Americanos na Bolívia(CEDLA).
O direito à consulta
Durante os estágios de planejamento, a estrada TIPNIS foi dividida em três partes. Os trechos menores ficavam fora do parque nacional, mas o mais longo e controverso deles cortava o parque ao meio. Avaliações ambientais separadas foram feitas para cada um dos três trechos.
A decisão de dividir o projeto em partes – o que a denúncia das ONGs chama de “altamente preocupante” – criou uma brecha legal que permitia que a construção começasse pelos trechos
externos ao parque antes que uma avaliação ambiental com comunidades locais fossem concluídas para o trecho controverso interno ao parque.
De acordo com o BNDES, a decisão foi tomada por autoridades bolivianas devido às diferentes características ambientais e sociais encontradas ao longo dos três trechos da rodovia.
A questão de quando deveriam ter sido realizadas as consultas e a avaliação ambiental para o trecho central da rodovia está no âmago do debate.
De acordo com a lei internacional – Indigenous and Tribal Peoples Convention, 169 — comunidades
indígenas têm o direito de ser consultadas sempre que estejam em consideração medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-las diretamente. Embora as leis de exigência de consulta não deem às comunidades indígenas poder de veto, a Convenção 169 assegura que essas comunidades tenham voz no processo e que sejam feitos esforços no sentido de conseguir o consentimento delas antes de que projetos potencialmente disruptivos e destrutivos sejam iniciados.
“A consulta deveria ter acontecido no momento em que [os governos] decidiram que era do interesse nacional da Bolívia que a estrada fosse construída”, diz Moye.
Grupos indígenas que marcharam em protesto contra a rodovia concordam. “A construção da rodovia foi aprovada sem respeitar o direito de consulta dos povos indígenas Mojeños, Chimanes e Yacares”, declara uma resolução de 2011 de uma das maiores organizações indígenas das planícies da Bolívia.
Grupos indígenas levantam questões sobre quão justos e abertos seriam quaisquer estudos de impacto ou consulta subsquentes, se o projeto já tivesse sido aprovado e a construção tivesse se iniciado na parte de fora do parque.
A resposta do BNDES
Em e-mail ao Mongabay, o BNDES diz que cumpriu as leis locais e internacionais, tendo requerido avaliação ambiental e legal no projeto do contrato. “A alegação de que o banco falhou em suas diligências é incorreta”, segundo representante do banco.
“Em relação ao trecho central [da rodovia pela reserva TIPNIS], o governo boliviano [ainda] não havia definido o traçado da estrada, e os estudos de impacto ambiental estavam em estágio inicial, o que impediu, à época, as devidas diligências e a consulta pública por consultores independentes”, disse o representante do BNDES. O banco também disse ao Mongabay que havia estipulado que o
financiamento do trecho central da rodovia sempre foi visto como dependente da conclusão de uma avaliação ambiental e do cumprimento de requerimentos legais, incluindo mitigação de riscos.
Os três grupos civis também expressaram temor de que as avaliações ambientais dos impactos da estrada fossem inadequados. Em sua queixa, eles alegam que, assim como a consulta aos povos indígenas, a avaliação ambiental para o trecho central deveria ter ocorrido antes da abertura de
licitação para o contrato.
As ONGs ainda aopntam deficiências nas avaliações ambientais que foram feitas para as outras duas partes da estrada, que passam fora do parque, incluindo falhas na estimativa de futuras taxas de desmatamento. Historicamente, a construção de estradas provendo acesso a florestas tropicais na
América Latina tem tornado esses ambientes vulneráveis ao aumento de taxas de extração legal e ilegal de madeira.
O representante do banco negou ter havido problemas nas diligências conduzidas para os trechos norte e sul da estrada: “na análise feita pela equipe técnica do BNDES, verificou-se que os trechos norte e sul já tinham estudos de impacto ambiental e licenças ambientais emitidas pelas autoridades bolivianas competentes”. O BNDES também afirma ter procurado análises independentes do impacto social e ambiental desses trechos da rodovia (incluindo consulta à população), não tendo encontrado qualquer ‘inconformidade'”.
Outra questão levantada na queixa diz respeito a um relatório de 2010 da Controladoria Geral da Bolívia apontando irregularidades no financiamento do projeto. De acordo com o relatório, a construtura brasileira OAS – que recentemente abriu pedido de recuperação judicial após ser
implicada em vários casos de corrupção – superfaturou o custo da rodovia. No Brasil, investigadores federais descobriram que estimativas de grandes projetos de infraestrutura são frequentemente infladas para garantir desvios de dinheiro para as empresas e políticos.
Embora o BNDES não seja responsável pela contratação de empresas de construção terceirizadas, a queixa alega que o banco deveria ter sido mais transparente e levado em conta o relatório da Controladoria boliviana em sua análise de risco. O BNDES disse ao Mongabay que uma consulta independente não identificou irregularidades no projeto e que o relatório da Controladoria fugia do escopo da análise de risco.
Avanços futuros
Os autores da queixa discordam: “quando não existe consulta nem diálogo entre governo e os diferentes atores – [incluindo] o banco que financia o projeto, a construtora, [e] as comunidades locais -, quando não há informação nem mecanismo para ouvir as queixas, [então] surge o conflito”,
diz Caio Borges, da CONECTAS, uma organização brasileira sem fins lucrativos, e coautor da queixa. A CONECTAS vem estudando investimentos do BNDES fora do Brasil.
Borges recomenda uma série de mudanças-chave para melhorar a fiscalização do banco e a administração de projetos no futuro. Ele diz que o BNDES deve trabalhar para aumentar a
transparência e esclarecer critérios sociais e ambientais, além de criar um mecanismo para ouvir reclamações por parte das pessoas que possam sofrer impacto direto de grandes projetos de infraestrutura.
Ele aponta que o BNDES tem mostrado progresso ao expressar preocupação com a transparência nos últimos anos, mas diz que o banco ainda precisa embarcar em reformas sérias a fim de evitar que situações como a da rodovia do TIPNIS – com suas violações aos direitos humanos e ambientais – aconteçam de novo no futuro.