Três anos após os assassinatos do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, as ameaças no Vale do Javari, na Amazônia — onde foram mortos — persistem, apesar dos esforços do governo federal para deter a violência na região, segundo o líder indígena Beto Marubo.
“Os fatores que causaram os assassinatos, infelizmente, ainda permanecem os mesmos no Vale do Javari: o narcotráfico e o aumento das invasões na terra indígena”, disse Marubo à Mongabay.
Phillips e Pereira foram mortos enquanto o jornalista britânico investigava a pesca ilegal na região para seu livro; Marubo foi um dos colaboradores que ajudaram a finalizar a obra, lançada em maio.
Marubo se comprometeu a promover o livro para honrar a memória daqueles que perderam suas vidas defendendo a Amazônia: “apesar de todas essas mortes — não somente do Dom e do Bruno, mas também de Chico Mendes, Dorothy Stang e tantos outros que morreram pela proteção do meio-ambiente — [esses crimes] são esquecidos, relegados; são apenas números, registros na nossa história”.
SÃO PAULO E RIO DE JANEIRO — Apesar dos esforços do governo federal para combater a violência na região amazônica onde o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram mortos há três anos, as ameaças no local persistem, segundo o líder indígena Beto Marubo, representante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) em Brasília.
“Infelizmente, posso afirmar que se o Dom e o Bruno estivessem no Vale Javari hoje, seriam mortos de novo”, disse Marubo à Mongabay, referindo-se à falta de presença permanente do poder público na região.
Em 5 de junho de 2022, Phillips e Pereira foram brutalmente assassinados no Vale do Javari, no estado do Amazonas; nenhum dos acusados foi levado a julgamento.
De acordo com Marubo, as autoridades fizeram algumas ações específicas no Javari, como operações e investigações da Polícia Federal e do Ibama, além de abrir canais de diálogo com a comunidade. No entanto, isso não resolveu o problema, acrescentou.
“Infelizmente, não teve aquele interesse que a gente esperava, que toda a repercussão do caso poderia sensibilizar e despertar no poder. Então, os fatores que causaram aquela situação dos assassinatos, infelizmente, ainda permanecem os mesmos no Vale do Javari: o narcotráfico e o aumento das invasões na terra indígena”, disse Marubo à Mongabay em uma entrevista em São Paulo.

Em um comunicado divulgado em junho, o Ministério dos Povos Indígenas disse que o Plano de Proteção Territorial para o Vale do Javari realizou 42 operações na região, resultando em 211 ações de fiscalização, R$ 27 milhões em multas e 97 prisões entre junho de 2023 e março de 2025. “O Plano de Proteção Territorial é uma ação de caráter contínuo, que visa a garantia dos direitos indígenas à posse plena e ao usufruto exclusivo das terras que tradicionalmente ocupam”, diz o documento.
Perto da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, o Vale do Javari é dominado pelo crime organizado, o que inclui narcotraficantes, madeireiros ilegais e caçadores. A região abriga a segunda maior terra indígena do país, com 8,5 milhões de hectares, uma área quase duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro. Estima-se que 17 povos originários isolados ou com pouco contato vivam lá atualmente.
Em agosto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos realizou audiências no Vale do Javari devido ao aumento dos riscos e ameaças na sequência dos assassinatos de Pereira e Phillips.
Um mês antes, a Justiça Federal em Tabatinga, no Amazonas, aceitou a denúncia do Ministério Público Federal contra Rubén Dario da Silva Villar, conhecido como “Colômbia”, suposto mentor do crime. Ele é acusado de pesca e caça ilegal na região e de financiar e armar os criminosos para executar os assassinatos e ocultar os corpos das vítimas.
A defesa de Villar negou as acusações e afirmou que as provas que constam no processo “não são suficientes [para] conclusão que levem a um juízo de culpa”. Em nota à Mongabay, o advogado Ivanilson da Silva Albuquerque disse que “a motivação e autoria já está devidamente definida, tendo inclusive os autores do fato confessado em juízo a prática do crime e que, no curso do processo, restará demonstrado que o Sr. Ruben Dario [Villar] não concorreu de qualquer forma para a prática do delito apurado”.
Desde o início da investigação, outras oito pessoas foram indiciadas. Os casos de três réus — Amarildo da Costa de Oliveira, conhecido como “Pelado”, Jefferson da Silva Lima e Oseney da Costa de Oliveira — foram reunidos em um único processo que determinou o julgamento perante o Tribunal do Júri. Porém, em setembro de 2024, uma decisão judicial aceitou o recurso de Oseney Oliveira e o retirou da ação; o Ministério Público Federal recorreu da decisão.


‘Que pretensão sua!’
Phillips e Pereira foram mortos enquanto o jornalista britânico investigava a pesca ilegal na região para seu livro. Lançada em maio, a obra póstuma Como salvar a Amazônia: Uma busca mortal por respostas, de autoria de Phillips e colaboradores, foi resultado de um esforço de três anos liderado por Jonathan Watts, jornalista britânico radicado no Brasil e amigo íntimo da vítima. Watts coordenou um grupo de escritores para finalizar o livro.
Marubo, também próximo dos dois profissionais assassinados, foi um dos colaboradores. “Para mim foi uma honra colaborar com um projeto em nome do Dom e torná-lo realidade”, disse o líder indígena.
Marubo contou à reportagem que estava super ocupado entre múltiplas viagens à época e que escreveu o texto em um pedaço de papel e o enviou a Watts. Ao saber que o texto estava muito longo, Marubo disse que não tinha tempo para editá-lo, mas aceitou a proposta de Watts: a de que a jornalista Helena Palmquist o ajudasse. “Helena foi quem formatou a versão final do que eu queria escrever”, disse Marubo, destacando o longo processo de edição — ao qual ele não estava acostumado — para ter o texto final aprovado por ele.
Marubo lembrou que, inicialmente, ele riu quando Phillips lhe contou sobre o título do livro Como salvar a Amazônia durante uma conexão no aeroporto de Brasília. “Eu falei: ‘Olha, Dom, você é um ‘gringo’, cara. Você vai salvar a Amazônia? Que pretensão sua!”, disse Marubo. “Dom disse: ‘É essa a reação que eu quero, sobretudo das pessoas que leem sobre a Amazônia, [para ter] uma noção da importância do que ela é.'”

Desde então, seguindo suas promessas à viúva de Phillips, Alessandra Sampaio, Marubo também participou de vários eventos para promover o livro, incluindo seu lançamento em maio no Reino Unido, onde disse ter se emocionado com a grande comoção dos britânicos.
Para ele, essas ocasiões são importantes para dar voz àqueles que perderam suas vidas defendendo a Amazônia. “Apesar de todas essas mortes — não somente do Dom e do Bruno, mas também de Chico Mendes, Dorothy Stang e tantos outros que morreram pela proteção do meio-ambiente — [esses crimes] são esquecidos, relegados; são apenas números, registros na nossa história.”
O livro de Phillips também foi lançado nos Estados Unidos e em várias cidades brasileiras, como São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Niterói, Paraty e Belém.
No Rio, onde Phillips viveu por muitos anos, o lançamento lotou uma sala de cinema com amigos do jornalista na plateia — além de Watts e Sampaio, estiveram presentes os jornalistas Tom Phillips e Andrew Fishman e o fotógrafo João Laet, que acompanhou o jornalista britânico em muitas de suas viagens para a Amazônia.
“Dom virou floresta”, disse Laet durante o lançamento do livro no final de julho.
Sampaio lembrou que um líder indígena do povo Ashaninka foi quem apresentou Phillips a Pereira, destacando que “quem está na linha de frente precisa de aliados”.
Fishman disse que “nenhum de nós gostaria de estar aqui [no palco]” mas que “o sonho do Dom se realizou”.
“Dom ainda está participando desse projeto. Ele está [aqui hoje] no meio de nós”, disse Watts.
Marubo disse que seu sonho é que “a sociedade e o povo brasileiro — e não somente ambientalistas, povos indígenas ou demais que têm lutado pela causa — saibam da importância das florestas para o nosso futuro e do país”.
No terceiro aniversário do assassinato de Phillips e Pereira, o jornal britânico The Guardian lançou o podcast Missing in the Amazon (Perdidos na Amazônia). No mesmo dia, 50 organizações da sociedade civil e jornalistas assinaram um manifesto liderado pela Univaja, pedindo às autoridades brasileiras “mais do que [apenas] promessas”.
Os colaboradores do livro póstumo também pediram aos leitores que avaliem a obra para ajudar nas vendas e na aparição do livro nos sites de vendas no Brasil, nos EUA e no Reino Unido. Os coautores abriram mão dos direitos autorais e toda a receita das vendas será destinada à viúva do jornalista.
Imagem do banner: Beatriz Matos (à esquerda) e Alessandra Sampaio (à direita), viúvas do indígenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, respectivamente, posam para uma foto ao lado de uma faixa com o slogan “Resistir e lutar” durante audiência realizada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Vale do Javari, como parte de um plano devido ao aumento dos riscos e ameaças após os assassinatos de Pereira e Phillips. Foto: União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).
Karla Mendes é repórter investigativa da Mongabay no Brasil e a primeira brasileira vencedora do John B. Oakes Award for Distinguished Environmental Journalism, da Universidade de Columbia, nos EUA. Membro do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center, ela é também a primeira brasileira e latino-americana eleita para a diretoria da Society of Environmental Journalists (SEJ), dos Estados Unidos, onde ela também foi eleita Vice-Presidenta de Diversidade, Equidade e Inclusão. Leia outras matérias publicadas por ela na Mongabay aqui. Encontre-a no Instagram, LinkedIn, Threads, 𝕏 e Bluesky.
Livro póstumo de Dom Phillips propõe esforço coletivo para salvar a Amazônia