Os corpos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips foram encontrados não muito longe de onde a dupla desapareceu em 5 de junho, na região do Vale do Javari, considerada a mais violenta do Brasil, onde grupos criminosos tentam tomar terras ocupadas por indígenas e comunidades tradicionais.
Conflitos semelhantes ocorrem em toda a Amazônia, e alguns grileiros admitem que, se necessário, usam métodos violentos para atingir seus objetivos.
O Senado brasileiro lançou uma investigação sobre o desaparecimento de Pereira e Phillips, mas observadores dizem que é improvável que isso resulte nas mudanças necessárias para combater a violência na região.
Autoridades brasileiras confirmaram que os corpos encontrados na região do Vale do Javari, na Amazônia, são do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, que haviam desaparecido em 5 de junho.
A região do Vale do Javari, que inclui uma imensa reserva indígena de mesmo nome, fica no estado do Amazonas e foi recentemente considerada a mais violenta do país, onde madeireiros e caçadores ilegais e traficantes de drogas lutam para confiscar terras ou pilhar os recursos das comunidades ribeirinhas tradicionais e dos grupos indígenas que ali vivem.
A Terra Indígena do Vale do Javari, segunda maior do Brasil, tem 85 mil quilômetros quadrados e abriga cerca de 6 mil indígenas. Tem também o maior número de grupos indígenas isolados do mundo, acredita-se que em torno de 17, que tiveram pouquíssimo contato com o mundo de fora.
Pereira chefiou a área de povos indígenas isolados da Funai, a Fundação Nacional do Índio. Ele acreditava fortemente que esses grupos deveriam ser contatados apenas em último caso, embora tenha liderado uma expedição para o Vale do Javari em 2019 para aliviar a tensão entre os grupos indígenas, incluindo um grupo isolado, que ameaçava terminar em violência.
A expedição foi realizada nos primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro, antes que o presidente, notório por sua hostilidade contra os povos indígenas, tivesse tempo de reestruturar a Funai. Desde então, ele cortou o orçamento do órgão drasticamente e minou sua autoridade. Pouco depois de seu retorno do Vale do Javari, Pereira foi exonerado do cargo, numa decisão que foi vista por muitos como política.
Mas Pereira continuou ativo na região do Vale do Javari. Em 2011, o governo federal tinha criado um projeto agroextrativista para permitir que 200 famílias ribeirinhas pescassem o pirarucu – peixe gigante de água doce com muita demanda em restaurantes – de forma sustentável. Mas o governo abandonou o projeto depois de alguns anos, e as famílias empobrecidas foram influenciadas por organizações criminosas ansiosas por comprar peixes e caça – algumas vezes retirados ilegalmente da reserva indígena próxima.
Trabalhando na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Pereira tentou ressuscitar o projeto de pesca e ajudar as comunidades indígenas a se defender. Isso teria causado conflito com os grupos criminosos e com alguns moradores locais que trabalham com eles. A polícia diz suspeitar que esse conflito pode ter levado às mortes de Pereira e Phillips.
Dom Phillips, jornalista britânico que no início de sua carreira fazia reportagens sobre a música das raves, tornou-se um defensor apaixonado da floresta Amazônica depois de uma viagem à região. Horrorizado pela devastação, ele viajou bastante, muitas vezes com Pereira, para coletar material de reportagem. Phillips tirou um ano de folga para pesquisar para um livro que estava escrevendo, “Como salvar a Amazônia”. Casado com uma brasileira, ele tinha dois filhos pequenos.
Há uma tensão considerável entre a Funai e a Univaja, que se tornou evidente durante a busca pelos homens desaparecidos. Em 10 de junho, cinco dias depois do desaparecimento de Phillips e Pereira, a Funai emitiu uma nota à imprensa que acusava a Univaja de espalhar “desinformação” e disse que nenhum indivíduo havia sido autorizado a entrar na terra indígena. Em 14 de junho, um dia antes de a polícia confirmar a descoberta dos corpos, um juiz federal do Amazonas ordenou à Funai que retirasse as acusações que fez contra a Univaja e enviasse mais policiais à região para garantir a segurança dos funcionários do governo e dos povos indígenas.
Veja também: A guerra contra jornalistas e ambientalistas na Amazônia continua.
Um caso entre muitos
Conflitos violentos não são um evento isolado na Amazônia. A Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica, publicou recentemente um relatório no qual registrava 1.768 conflitos rurais e 35 assassinatos em 2021. Quase metade (49,9%) dos conflitos ocorreram na região da Amazônia Legal, a vasta região que inclui toda a Amazônia brasileira e partes do Cerrado e do Pantanal. A CPT disse à Mongabay por e-mail que só a região do Vale do Javari foi palco de pelo menos 25 conflitos rurais, sendo que há muitos outros não relatados.
Acredita-se que grupos criminosos locais, organizados por madeireiros ilegais, traficantes de drogas e grileiros, sejam responsáveis por muitos dos conflitos. A Mongabay encontrou um grupo desses em abril de 2017, quando entrevistou Agamenon da Silva Menezes, um conhecido ruralista que desmatou ilegalmente milhares de hectares de floresta no norte do Pará.
A Mongabay falou com Menezes em seu escritório na cidade quente e poeirenta de Novo Progresso, na BR-163, que liga o porto de Santarém no Rio Amazonas a Cuiabá, capital de Mato Grosso, considerado o celeiro do país. À época, ele estava envolvido num conflito com trabalhadores sem-terra que tinham ocupado uma área ao lado da BR-163. Menezes estava interessado em despejar os assentados e admitiu abertamente na entrevista filmada para a Mongabay que planejava usar criminosos contratados para isso.
“Se sair por bem, sai. Se não, sai por mal. Da forma que eles reagirem com a gente, a gente reage contra eles. Se eles vierem de cacete, a gente vai de cacete, se vierem de faca, a gente vai de faca, se vier de cachorro… do jeito que eles reagirem, a gente reage, mas tira a pessoa de lá.”
No dia seguinte, um grupo de seis homens armados atacou o acampamento dos sem-terra, atirando para cima. Ninguém ficou ferido e os sem-terra acreditam que os atiradores só pretendiam intimidá-los. Mas as ameaças escalaram e eventualmente os sem-terra foram despejados. Seu líder, Aloisio Sampaio, conhecido como Alenquer, um sindicalista, continuou a criticar Menezes depois do despejo e foi assassinado em plena luz do dia em sua casa no município de Castelo dos Sonhos em outubro de 2019, poucos dias antes de Bolsonaro vencer a eleição.
Menezes é ruralista. O negócio dele é tomar grandes áreas de floresta e desmatar a vegetação. Ele então vende a terra, agora pronta para plantar capim, para pecuaristas, lucrando bastante. Um pecuarista local disse à Mongabay que “a floresta em pé quase não tem valor. Uma vez que é desmatada, o valor aumenta de 100 a 200 vezes.” Menezes foi processado várias vezes, mas nunca foi preso.
Em outras ocasiões, os grupos criminosos conseguiram expulsar ativistas rurais ameaçando matá-los. Osvalinda Alves Pereira, líder de uma comunidade rural em Trairão, no Pará, trabalhou por dez anos desenvolvendo um projeto de agrofloresta para famílias locais para livrá-las do controle dos madeireiros ilegais. Os madeireiros ameaçaram Pereira, chegando ao ponto de cavar túmulos falsos nos fundos de sua casa. Eventualmente, como Pereira contou à Mongabay em 2020, ela não teve opção a não ser ir embora.
Diferentemente de outras mortes, o assassinato de Pereira e Phillips foi coberto amplamente pela mídia internacional, provavelmente porque Phillips era um jornalista estrangeiro. O Senado brasileiro reagiu rapidamente, criando uma comissão para investigar o que aconteceu com eles e outros casos de violência na Amazônia. Contudo, poucos observadores esperam uma mudança real. O interesse internacional pode levar à instauração de um processo contra os acusados de matar Pereira e Phillips, mas analistas dizem que não alcançará muito mais que isso.
Susanna Bettina Hecht, diretora do Centro de Estudos Brasileiros na Universidade da Califórnia, Los Angeles, disse: “O clamor internacional pode levar à instauração de um processo contra os acusados do assassinato de Pereira e Phillips. No caso de outros mártires, como o seringueiro Chico Mendes e a ativista pelos direitos à terra Dorothy Stang, there were real shifts in policy and politics with the implementation of new land rights anhouve mudanças reais na política com a implementação de novos direitos e proteções à terra. Mas aqueles eram tempos bem diferentes, e no atual turbilhão altamente lucrativo de economias clandestinas, pilhagem de recursos e apropriação de terras no Vale do Javari, é improvável que o governo implemente as mudanças necessárias para acabar com a violência na Amazônia”.
Imagem do banner: O jornalista britânico Dom Phillips entrevista indígenas Ashaninka no Acre como parte de pesquisa para o livro que planejava escrever sobre como salvar a Amazônia. Imagem cortesia de Wewito Ashaninka.
Veja o comentário de Karla Mendes, editora da Mongabay no Brasil, sobre esses acontecimentos e a situação dos jornalistas:
Dom e Bruno: não há trégua na guerra contra os guardiões da Amazônia (opinião)