Um inédito estudo temporal na bacia do Tapajós avalia o nível de degradação dos pequenos rios amazônicos, ameaçados pela expansão do agronegócio.
Mudanças na paisagem pioram a qualidade da água e alteram a biodiversidade, gerando consequências nos rios maiores, já afetados por grandes obras; uma bacia hidrográfica na Amazônia pode ter até 90% de seus corpos d’água compostos por igarapés.
Segundo o Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA), a Bacia do Tapajós tem 40% de suas microbacias altamente impactadas.
O passo é rápido para acompanhar os cientistas e seus guias ribeirinhos dentro da mata. Estamos na estação seca, e o calor sufocante da Floresta Amazônica se impõe. Uma hora e meia depois, entre descidas e subidas – algumas tão íngremes que pedem a mão amiga do colega à frente –, chegamos ao igarapé. Alívio. A água pura e cristalina do pequeno braço de rio é providencial não só para matar a sede depois da caminhada: é o próprio objeto da pesquisa em curso.
Na Floresta Nacional do Tapajós, oeste do Pará, alunos e professores de diferentes universidades avaliam o estado de conservação de igarapés como parte de um projeto de pesquisa que inclui 100 pequenos riachos entre as cidades de Santarém e Paragominas, que foram analisados pela primeira vez em 2010.
O termo para nomear esses riachos vem do tupi-guarani e significa “caminho de canoa”. Os igarapés correm das nascentes em direção a lagos e rios e, como o nome diz, são navegáveis, embora bem mais estreitos e rasos. “Os grandes rios da Amazônia não existiriam sem os igarapés, que são suas cabeceiras”, explica Cecília Gontijo Leal, pesquisadora vinculada à Universidade de Lancaster, na Inglaterra, e à Rede Amazônia Sustentável (RAS). A ecóloga coordena o projeto Understanding and conserving tropical freshwater ecosystems (Entendendo e conservando sistemas aquáticos tropicais).
Agora, ao voltar aos mesmos pontos do estudo anterior, o grupo com 19 professores e alunos busca analisar a série temporal para compreender a evolução dos impactos humanos sobre esses ecossistemas aquáticos e suas comunidades de peixes. O objetivo é encontrar soluções para proteger a biodiversidade amazônica e influenciar políticas de preservação e melhores práticas de uso da terra.
“Não existem muitos estudos temporais na Amazônia, essa é uma lacuna de informação científica. Por isso, decidimos voltar para ver as trajetórias de mudança na paisagem e seus efeitos nos mesmos igarapés ”, diz Leal. A pesquisa é uma avaliação pioneira da mudança na condição dos igarapés ao longo da última década, com uso de métodos modernos que ajudarão a elucidar recentes fatores de estresse no ambiente. O projeto se estende até 2029 e cobre áreas de Santarém, Paragominas, Belterra e Mojuí dos Campos.
É uma região que mudou bastante nesses 13 anos, observa Leal, destacando o desmatamento e a intensificação de atividades, como a conversão de pastos para a agricultura mecanizada. “Os igarapés são impactados por essas mudanças, que pioram a qualidade da água e alteram a fauna e a flora”, diz. As consequências ecoam nos rios maiores, já afetados por grandes obras, refletindo como um todo na bacia hidrográfica, que pode ter até 90% de seus corpos d’água compostos por igarapés. “Temos muito mais extensão de riachos de cabeceira do que rios maiores”, avalia a pesquisadora.
A saúde desse ecossistema está intimamente ligada à biodiversidade aquática, a tal ponto que algumas espécies refletem o seu nível de conservação. São os chamados bioindicadores. As plantas aquáticas macrófitas e as libélulas se destacam. Quanto mais macrófitas, maior é a alteração no ambiente – o igarapé mais exposto pelo desmatamento recebe mais luz, e os vegetais se desenvolvem. Já uma presença menor dessas plantas ou ainda a existência de algumas espécies específicas delas é indício de um ambiente saudável. As libélulas, por sua vez, conhecidas na floresta como jacinas ou jacintas, são insetos sensíveis às mudanças no meio aquático. A subordem Zygoptera geralmente indica ambientes preservados, enquanto que a Anisoptera costuma refletir perturbações, como perda de vegetação.
A alta diversidade de peixes chamou a atenção dos pesquisadores já em 2010, conta Paulo Pompeu, professor de Ecologia e Conservação na Universidade Federal de Lavras (UFLA). Se no Sudeste predomina um padrão de 5 a 15 espécies num riacho, os igarapés na região de Santarém abrigam de 30 a 40. Em um ponto em Paragominas, município com mais de 100 mil habitantes a poucas horas da capital Belém, eles identificaram 48 – uma biodiversidade aquática maior do que a de países inteiros, como a Inglaterra. Segundo os pesquisadores, a variedade de espécies de peixes em igarapés de uma pequena área muitas vezes não se repete em outro ponto da Amazônia. “Como um ambiente tão pequeno consegue sustentar tantas espécies ao mesmo tempo? Queremos compreender como se dá a diversificação local”, diz Pompeu.
Entre as abordagens inéditas do estudo de 2023 está a coleta de água para identificação de DNA ambiental (vestígios deixados por espécies na água). Outra novidade é a coleta de alimentos dos peixes, como algas, insetos terrestres e aquáticos, folhas e frutos de árvores, para descobrir quais são os recursos que sustentam a comunidade de peixes e quais as diferenças das fontes de nutrientes de uma área conservada para uma degradada.
Os cientistas ficarão até quatro anos em laboratório analisando as amostras coletadas. Os resultados irão promover um diagnóstico do estado de saúde dos igarapés no planalto santareno, representando uma amostra do que acontece aos pequenos rios em todo o arco do desmatamento na Amazônia. Ao mesmo tempo, servirão de base para o planejamento de novas ações que minimizem ou até revertam os impactos negativos causados pelas mudanças de uso do solo no bioma.
Tesouro biológico em risco
A bacia do rio Tapajós cobre uma área de 489 mil km², representando 7% de toda a Bacia Hidrográfica Amazônica. Com suas cabeceiras próximas a Cuiabá, no Mato Grosso, o gigante de águas claras avança quase 2 mil km até romper no Amazonas, na altura de Santarém – é o seu quinto maior tributário.
Arqueólogos estimam que a ocupação humana na região da foz remonta a cerca de 7 mil anos. A Santarém atual se formou sobre sítios de povos pré-colombianos, e relatos de pioneiros europeus a explorar a Amazônia – como a expedição de Francisco de Orellana, em junho de 1542 – já mencionavam a existência de uma povoação com milhares de habitantes na confluência dos dois grandes rios.
Os efeitos das ações humanas acumulados nas águas da bacia, principalmente nas últimas décadas, ficam evidentes ao se analisar o Índice de Impacto nas Águas da Amazônia (IIAA), desenvolvido pela Ambiental Media no projeto Aquazônia. Enquanto 20% das microbacias da área brasileira da Bacia Amazônica estão altamente impactadas, na Bacia do Tapajós o percentual é de 40% (veja no mapa acima).
Estradas que fecham caminhos
O impacto das estradas de terra e sua rede de cruzamentos com rios foi um dos fatores que chamou a atenção dos pesquisadores no estudo temporal. As vias que cortam os canais aumentam a carga de sedimentos, causando assoreamento, erosão e mudança na qualidade da água. “A travessia de uma estrada em um igarapé pode parecer um impacto pontual, mas os efeitos negativos acumulados são relevantes”, avalia Leal.
A equipe de cientistas ainda está trabalhando no mapeamento para a região de Santarém, mas os dados existentes para todo o bioma, compilados no Aquazônia, indicam a presença de 9.778 cruzamentos sobre rios (de todos os tamanhos, não só igarapés). É importante considerar, porém, que os números são subestimados devido à dificuldade de mapeamento.
Na entrada norte da Floresta Nacional do Tapajós (Flona do Tapajós), dois igarapés, chamados Jamaraquá e Jaguarari, estão hoje interditados por causa de uma mesma estrada. Entre dezembro de 2004 e março de 2005, de acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Nota Técnica no 6/2020/FLONA Tapajós/ICMBio), órgão federal responsável pela gestão das unidades de conservação, a prefeitura de Belterra abriu a chamada Transtapajós sem autorização, licença ambiental ou estudo prévio.
A construção da rota de 12 km para interligar as comunidades ribeirinhas da Flona estava prevista no plano de manejo, mas a prefeitura não atendeu às recomendações do Batalhão de Engenharia de Construção – braço do Exército Brasileiro responsável pelas obras e pela manutenção de rodovias, ferrovias, barragens e aeroportos – que indicavam outro percurso para a via. A estrada acabou danificando os igarapés. O Ibama emitiu um auto de infração e embargou o trecho. A Justiça Federal condenou o município a apresentar um Plano de Recuperação de Áreas Degradadas para prevenção de erosão, estabilização do solo e desassoreamento dos igarapés.
O embargo foi retirado em 2022 para que a prefeitura pudesse realizar as obras de reparação, mas pouco foi feito até agora, afirma Bruno Delano, analista ambiental do ICMBio. Os montes de erosão foram retirados, assim como uma parte do assoreamento nas águas. Os taludes, porém, ainda não foram revegetados, as margens não foram reflorestadas e a ponte sobre o igarapé Jamaraquá não foi consertada – as madeiras para isso estão lá, aguardando uso enquanto não apodrecem.
A obra, feita à revelia da legislação ambiental, não impactou apenas o ecossistema, mas também a visitação: Jamaraquá é a comunidade mais procurada da Floresta Nacional. “É um prejuízo para a geração de renda local e também para a Flona, que tem dados de visitação para serem monitorados”, avalia Delano. “Enquanto o igarapé estiver degradado, não podemos permitir o acesso a esse trecho.”
Apesar dos impactos sobre esses dois cursos d’água, a Flona cumpre o seu papel de proteger os corpos hídricos. O motivo é simples: as nascentes estão dentro da floresta, e parte das águas segue para o Rio Tapajós, a oeste, e para a bacia do Rio Moju, afluente do Amazonas, a leste. E é nesta última área, onde passa a BR-163 e crescem os campos de monocultura de soja e milho, que os igarapés começam a ser severamente prejudicados.
O trecho Cuiabá-Santarém da rodovia, inaugurado na década de 1970, é uma das principais rotas para escoamento de grãos no país, cujo cultivo avança sem parar em direção ao norte do Pará, na confluência dos rios Amazonas e Tapajós.
Mudanças no uso do solo
Na região amazônica, o ciclo do desmatamento ilegal que leva à abertura de uma área destinada a servir como pastagem ou plantio, segue uma ordem já amplamente conhecida: há extração seletiva de madeira, desmatamento e, depois, o uso do fogo – uma sequência que traz impactos drásticos para os igarapés. “A vegetação é fonte de sombreamento e de matéria orgânica, influenciando toda a dinâmica das águas e das espécies. Se você tira a vegetação ripária [próxima aos corpos d’água], não há entrada desse material”, diz Cecília Leal.
Os peixes são os primeiros a sentir os impactos. Segundo Gabriel Brejão, doutor em Biologia Animal pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do projeto, enquanto vertebrados terrestres suportam cerca de 60% de desmatamento em determinada área para começar a entrar em processo de declínio, algumas espécies de peixe já sofrem quando esse mesmo índice chega a 10%. Por outro lado, quando mais da metade da floresta é derrubada, começa a aumentar a presença de espécies de peixes que prosperam em ambientes alterados.
Nesse cenário, “há uma mudança de um estado de alta diversidade para o de uma fauna muito homogênea, com poucas espécies dominando o local”, explica Brejão. Com a homogeneização, além da redução no número, ocorre a extinção de várias espécies únicas do bioma .
A pesca na aldeia Takuara, às margens do Tapajós, ilustra bem este fenômeno. No final de tarde, navegamos durante meia hora de canoa pela mata de igapó até a beira do rio. A atmosfera é mágica, com a luz se infiltrando pelo dossel e refletindo no espelho d’água as formas retorcidas das árvores. Os pescadores lançam as malhadeiras enquanto aguardamos no barco. A lua crescente já está visível quando voltamos para conferir o saldo da pescaria indígena. Apenas 15 peixes: aracus, pintados, piaus e um único tucunaré.
“Há 30 anos tinha muito tambaqui, pirarucu, tucunaré. A gente nem saía longe para pescar. Colocava espinhel e pegava três ou quatro tambaquis para comer na semana”, conta Leonardo Pereira dos Santos, cacique da aldeia do povo Munduruku, que fica dentro da Flona. “Hoje o pirarucu quase não existe mais.”
A baixa quantidade e variedade de peixes reflete as mudanças de uso do solo rio acima, sobretudo por desmatamento e mineração ilegal, e também a pesca realizada por barcos grandes, as chamadas geleiras. Nas margens do rio, moradores da Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns e da Floresta Nacional do Tapajós tiveram seu modo de vida e sua segurança alimentar afetados por empresas que vêm de outras cidades e estados arrematar toneladas de peixes valiosos no mercado, descartando no caminho aqueles sem valor comercial, que fazem falta na dieta local. “A pesca predatória acaba com o que a gente tem. Daqui a pouco a gente tá comendo frango todo dia, comendo coisas enlatadas que não são legais pra saúde da gente”, lamenta Santos.
Os ribeirinhos, porém, conseguiram meios oficiais de combater a atividade predatória, com um Acordo de Pesca homologado pelo governo do Pará. Coordenado pelo ICMBio desde 2016, em parceria com a sociedade civil, o processo resultou, no fim de 2022, em regras que impõem limites aos grandes barcos. Para avaliar os reflexos do acordo e adotar medidas futuras, o órgão ambiental capacitou monitores na Resex e na Flona. A cada ciclo hidrológico – vazante, seca, enchente e cheia – os pescadores devem anotar uma série de características do pescado, como espécie e tamanho, que vão indicar como as espécies estão reagindo.
“Se a gente não preservar, no futuro nossas crianças não vão conhecer os peixes daqui. Teremos que ir no mercado em Santarém para comprar um peixe para comer. Então a gente precisa se organizar enquanto é tempo ainda”, conta o cacique.
Com receio da contaminação pelo mercúrio utilizado por garimpeiros ilegais, Santos recomenda que as pessoas evitem beber água e se banhar no Tapajós. A cor mais barrenta do rio, naturalmente claro, indica também a alta presença de sedimentos, que são levados pela chuva para dentro dos corpos hídricos a partir de solos expostos após a supressão da vegetação nativa.
“O que se vê no Tapajós é um aumento do material particulado em suspensão por causa de inúmeras atividades de uso da terra”, explica a bióloga Daniele Kasper, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que se dedica a pesquisar o impacto do mercúrio nas águas e solos da Amazônia há 20 anos. As partículas suspensas aglutinam diversos componentes químicos, entre eles o mercúrio.
O metal, que polui e pode alterar a coloração natural dos rios, afeta também os peixes, cujo consumo é a principal via de exposição humana. Um estudo de 2022 – da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e da Fundação Oswaldo Cruz – avaliou 462 moradores de oito áreas ribeirinhas e uma zona urbana do município de Santarém: mais de 75% dos participantes apresentaram concentrações de mercúrio acima do limite seguro de 10 µg/L (micrograma por litro) em seu sangue, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A exposição foi maior na população ribeirinha (90%) do que na urbana (57%). A mesma lógica vale para os peixes, que têm mais ou menos mercúrio dependendo do que comem, “pois o elemento vai se acumulando ao longo da cadeia alimentar”, explica a pesquisadora.
A fonte do mercúrio que chega ao rio não se limita ao garimpo. O elemento é facilmente absorvido pelos organismos quando se encontra na forma química orgânica conhecida como metilmercúrio, que se desenvolve sob condições de pouco oxigênio — em reservatórios de hidrelétricas e áreas alagadas de igapós e várzeas, por exemplo, como revelam as pesquisas de Kasper e de outros cientistas. Assim, qualquer atividade que provoque erosão vai abastecer o sistema aquático com o mercúrio armazenado em determinados solos.
Muitas dessas ações danosas – desmatamento, queimada, abertura de estradas – estão associadas ao agronegócio. Não à toa, de todos os fatores de impacto analisados pelo Índice de Impacto nas Águas da Amazônia, nenhum supera agricultura e pecuária em termos de distribuição espacial: essas atividades impactam 88% do total das 11 mil microbacias que compõem a Amazônia brasileira. “É bem visível ali na região que o grande estrago está sendo o avanço e a intensificação do agronegócio em larga escala, em grandes propriedades”, avalia Cecília Gontijo Leal, coordenadora da pesquisa temporal.
Tais mudanças no uso do solo alteram principalmente o modo de vida das populações ribeirinhas e indígenas. Sufocada pela expansão desenfreada do agro, a realidade idílica do passado virou apenas memória para as pessoas que nasceram e cresceram à beira dessas fontes de água límpida e fresca típicas da Amazônia, usadas tanto para o lazer quanto para as necessidades do dia a dia.
Lucro primeiro, estudos de impacto depois
A arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), trabalha com a identificação da formação das comunidades quilombolas e indígenas na região de Santarém. A pesquisadora parte de relatos, memórias e vestígios de ocupação para reconstruir esse passado e para entender a identidade e a realidade atual.
“Ao longo das últimas três décadas, Santarém e outros municípios do Pará têm facilitado a vinda de empreendimentos relacionados ao plantio da soja. Esse incentivo tem se manifestado de várias maneiras: através de propostas de criação de portos (para soja e combustível) no lago do Maicá; pela alteração do plano diretor da cidade, que aumentou o tamanho das áreas propensas à agricultura; pela liberação de áreas para desmatamento no Planalto Santareno. Essas ações, focadas principalmente no setor econômico, têm sido realizadas sem avaliações prévias do impacto que é e será causado ao ambiente e às comunidades tradicionais”, conta Py-Daniel.
O igarapé Açaizal, que corta a aldeia indígena homônima, é uma amostra desse impacto a partir da virada do século. Desde então, a vazão dos igarapés diminuiu, a cor das águas mudou, lagoas secaram. “Tinha uma riqueza de peixes e muito jacaré”, conta o cacique Josenildo dos Santos Cruz. “O igarapé não presta mais. Os espaços de lazer sumiram; castanheiras, pequizeiros e outras árvores foram derrubadas.”
O impacto ambiental se reflete na própria cultura indígena. “A mata nos fortalece. Quando uma árvore cai, nosso povo adoece espiritualmente.”
Em luta pela natureza, os moradores passaram, a partir de 2009, a fazer denúncias ao Ministério Público Federal, que entrou com uma ação civil pública contra o governo do estado do Pará e o município de Santarém por omissão em fiscalizar, solicitando a recuperação do igarapé assoreado. Ajuizada em 2019, a ação teve, em setembro do ano passado, um parecer favorável da Procuradoria Regional da República.
Trata-se de um passo importante para contextos semelhantes em outros pontos da bacia. As quatro aldeias Munduruku localizadas no Planalto Santareno – Açaizal, Amparador, Ipaupixuna e São Francisco da Cavada – estão cercadas por grandes lavouras. “Entre 2021 e 2022, só na região entre Açaizal e Ipaupixuna, foram 800 hectares desmatados”, diz Daniel. “A soja já está no quintal das pessoas”, continua.
Os campos de soja não afetam somente os povos indígenas, mas também as comunidades de agricultores familiares do planalto. Maria Emília dos Reis Pinto, agricultora e artesã, nos guia por uma estrada de terra que passa sobre alguns trechos de igarapés; em nenhum deles a água é transparente. Na primeira parada, a água está coberta de macrófitas e tem um cheiro estranho. Um pouco adiante, o córrego está verde opaco e tomado por plantas aquáticas bioindicadoras de poluição. O cenário é ainda pior em outro trecho do igarapé, onde a água está marrom. Emília deixou de recorrer ao riacho que cruza seu terreno há seis anos. “As pessoas aqui estão com medo de usar seus poços por causa do agrotóxico.”
O temor tem fundamento. Para avaliar o impacto do agronegócio na zona rural de Santarém, a geóloga Moema Morgado, pesquisadora associada na Universidade Federal do Mato Grosso, analisou amostras de água subterrânea de poços, água superficial de rios, igarapés e de sedimentos de fundo dos córregos. Os resultados indicam a presença de herbicidas, como a atrazina, o glifosato e o metolacloro, além de metais diversos, tanto na água quanto nos sedimentos – onde também foram detectados inseticidas proibidos no Brasil, como DDT e endossulfam.
Assim como o mercúrio, alguns pesticidas têm a característica de se acumular ao longo da cadeia alimentar. Isso acontece porque eles são capazes de formar complexos insolúveis: em vez de volatilizar, eles se fixam nos sedimentos. O glifosato, um dos agrotóxicos mais utilizados no Brasil, se encaixa nessas duas situações. A legislação brasileira permite uma concentração de resíduos de glifosato na água potável 5 mil vezes maior do que na Europa e a substância forma complexos insolúveis em águas ricas em óxidos de alumínio e ferro. “A composição dos sedimentos e do solo da Amazônia é um prato cheio para isso”, ressalta Morgado, que encontrou glifosato em todas as amostras de sedimento analisadas, em comparação com 40% das amostras de água, onde o pesticida se dilui por ser hidrossolúvel.
Um caso chamou a atenção no município de Belterra, vizinho a Santarém. No dia 6 de fevereiro deste ano, 30 pessoas, entre alunos e funcionários da escola Vitalina Motta, foram ao posto de saúde com sintomas como coceira, irritação nos olhos, dor de garganta, náusea, vômito e desmaio. A médica que fez os atendimentos afirmou à equipe de fiscalização do Ibama, dias depois, que os sinais eram de intoxicação por agrotóxico, visto que todos tinham sintomas parecidos e coletivos, com descrição de cheiro forte e sensação de sufocamento.
A professora Heloise Rocha conta que, ao chegar à escola naquela manhã, percebeu um cheiro estranho e, por volta das 9 horas, as crianças começaram a reclamar de ardência nos olhos e dificuldade de respirar.
“Os sojeiros sempre fizeram isso, mas nunca foi tão agressivo. Não sabemos dizer se trocaram o veneno ou aumentaram a quantidade”, relata a professora, que está na região há oito anos. O campo de soja, cultivado com milho na entressafra, fica atrás da escola. Antes de subirem um muro, a plantação de grãos quase se misturava à horta escolar.
Quando as safras do campo em frente à escola, na margem oposta da rodovia, são colhidas, a fuligem suja as paredes e causa alergias e inflamações. “Quem mora aqui tem contato com o veneno de domingo a domingo. A gente não tem certeza se a água está ou não contaminada, mas o agrotóxico é jogado diretamente no solo, e a maioria aqui tem poço, inclusive a escola”, teme.
Os professores fizeram uma denúncia ao Ministério Público Federal, e o Ibama multou o produtor Renato Zambra, proprietário do terreno, em mais de 1 milhão de reais. Cem metros da plantação também precisaram ser retirados a partir do limite da escola, e ali deveria ter sido plantada vegetação nativa. Em agosto, contudo, havia somente uma única fileira de capim crescendo rente ao muro.
Pelo direito de ser igarapé
Desde que as comunidades começaram a relatar problemas de saúde devido ao consumo de água dos igarapés e rios, o projeto Saúde e Alegria vem trabalhando na instalação de microssistemas de abastecimento, movidos a energia solar, e na distribuição de filtros de nanotecnologia. Mais de 6 mil pessoas já foram beneficiadas em cinco municípios do oeste paraense. “Se não há coleta de lixo, nem rede de esgoto, nem estações de tratamento, é evidente que os lençóis freáticos podem estar contaminados nas cidades”, diz Eugênio Scannavino, fundador da ONG.
Na zona urbana de Santarém, a degradação dos igarapés ganha uma nova tonalidade – a cinza. Na ocupação Bela Vista do Juá, à direita de uma avenida que leva ao aeroporto, o cheiro forte de esgoto evidencia os problemas da ineficácia dos sistemas de tratamento de esgoto que vem da margem esquerda, onde foi instalado o Residencial Salvação, projeto do programa federal Minha Casa Minha Vida finalizado em 2016 para abrigar 3.081 famílias.
Do alto de uma voçoroca, um buraco de erosão de 2 metros de altura entulhado de lixo, escorre um fio de água em direção a um riachinho que desemboca no lago do Juá, em frente ao Rio Tapajós, onde uma praia de areia branca se destaca nessa época do ano. O pequeno curso d’água é um igarapé. Seu nome ainda não é oficial porque, para grande parte dos moradores da ocupação, ele nem existia, apesar de estar mapeado pelo IBGE desde 1983 como uma drenagem intermitente (um fluxo de água que surge na estação chuvosa e some na estação seca). Foi a construção do residencial, no outro lado da avenida, que escavou um canal, explica João Paulo de Cortes, geógrafo e professor da Ufopa, que desenvolve um trabalho de reconhecimento do igarapé desde 2018.
Cerca de 100 famílias moram na ocupação, a maior e mais recente da cidade. A discussão acerca do impacto ambiental da moradia irregular é grande, pois as pessoas foram chegando e retirando a vegetação para se estabelecer no local, mais ou menos na mesma época de construção do residencial. Sem infraestrutura adequada, algumas casas estão sob risco de desabamento, o que motivou um relatório para o Ministério Público Federal por parte da universidade.
A instituição faz monitoramento de riscos e desenvolve atividades de educação ambiental com a comunidade. “O que a gente deseja é o reconhecimento formal do igarapé nos instrumentos de planejamento do município. Do igarapé e da bacia”, afirma Cortes. Segundo o professor, a identificação oficial do igarapé é a primeira etapa no processo de tentativa de recuperação do canal a partir do tratamento do esgoto despejado ali.
O poder público segue o que o professor chama de “contraplanejamento urbano”, um gerenciamento a partir de lógicas de uso do espaço público que termina por exaurir os bens hídricos. “Na Amazônia, os igarapés urbanos são muito sensíveis, devido à combinação de chuvas intensas com terrenos pouco consolidados do ponto de vista geológico. As águas drenam para lagos e rios, que têm importante uso social e função ecológica. É preciso não impactar essas drenagens de um jeito que seja irreversível”, avalia Cortes.
Paisagens pré-coloniais: uma chance para o futuro
Séculos depois da chegada dos primeiros europeus, a lógica colonial de exploração de recursos do território segue ameaçando povos originários e degradando a floresta tropical mais biodiversa do planeta – que é sustentada e moldada pela água. O ciclo da chuva enche e esvazia lagos e rios, estabelecendo períodos de seca e cheia que regulam o modo de vida das populações. Nas várzeas e igapós, áreas alagáveis com espécies adaptadas à inundação sazonal, o plantio, a colheita e os meios de locomoção são ditados pelo subir e descer das águas.
Essa dinâmica natural regular e poderosa determina que, no plano ideal, os modelos de desenvolvimento local deveriam partir da água para a terra, e não o contrário.
Para ajudar na restauração ambiental, o biólogo Gabriel Brejão defende a adição de estruturas ao ecossistema aquático. “Se os peixes gostam de se esconder atrás de galhos, troncos e folhas, pode-se introduzir esses elementos para melhorar a diversidade estrutural que permite a circulação de espécies variadas”. Outros arranjos poderiam possibilitar a migração de peixes de um ambiente para outro, em casos nos quais o local foi alterado por uma barragem ou estrada.
A revitalização de ecossistemas, assim como sua destruição, provoca efeitos em cascata no bioma como um todo, pois existem inúmeras conexões dentro de uma bacia hidrográfica. “Cada espécie tem sua função específica no ambiente e está fazendo um serviço”, diz Brejão.
O pesquisador explica que, ao longo do percurso do rio, as cabeceiras fornecem nutrientes para rios maiores. Os igarapés de cabeceira íntegros sustentam, por exemplo, a cadeia de pesca no Rio Tapajós: por meio da produção de frutos e do consumo de alimentos em cadeia, a energia terrestre é transferida para o ambiente aquático – nutrientes que, por sua vez, sustentam grandes peixes consumidos pelas populações humanas. A homogeneização da fauna aquática causada pela degradação em terra gera um desequilíbrio no transporte de nutrientes, o que pode chegar a provocar o colapso de ecossistemas, afetando cadeias produtivas locais. “As cabeceiras preservadas e a diversidade da fauna garantem a atividade econômica e a saúde para as comunidades humanas”, conclui.
Somados, os efeitos da degradação em igarapés e riachos vão refletir, em algum momento, nos grandes rios que cruzam a Amazônia, afetando invariavelmente as pessoas. “Tudo que passa pelos igarapés – fauna e flora, sedimentos, matéria orgânica – vai se acumulando rio abaixo”, analisa Cecília Gontijo Leal.
O caminho de minimização desses impactos passa por melhorar as leis de proteção das águas, considerar aspectos específicos de cada ambiente, investir em divulgação científica e inserir as comunidades tradicionais em tomadas de decisão. “São várias Amazônias dentro de uma grande Amazônia. É preciso trabalhar um pouquinho em cada região para chegar ao todo”, avalia Luciano Montag, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador do projeto de estudo temporal dos igarapés.
Depois de finalizadas todas as análises, que vão gerar dezenas de artigos científicos, as conclusões poderão ajudar órgãos ambientais na gestão dos ecossistemas. “O Pará tem várias metas de restauração, que podem ser feitas de um modo que contemple melhor os ambientes aquáticos”, diz Leal.
Para a cientista, é preciso repensar o paradigma que rege nossa relação com o elemento água: ao invés de um recurso exclusivo de uso humano, é preciso enxergar rios, lagos e igarapés como a fonte da biodiversidade. “Nossa visão habitual é utilitária: as pessoas pensam na quantidade e na qualidade da água. Mas a função das espécies é fundamental. Não existe um rio saudável sem as suas espécies.”
A vida não perdura sem água – é o seu ciclo infinito e poderoso que sustenta e regula a existência não só da Amazônia, mas de todo o planeta.
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2020/01/ong-luta-para-salvar-o-ultimo-igarape-limpo-de-manaus/
Esta reportagem foi originalmente publicada na Ambiental Media.