Em entrevista à Mongabay, um dos maiores indigenistas do país conta como ajudou a mudar a política nacional em relação os povos isolados do Brasil, com os quais agora se evita a todo o custo o contato.
Sydney Possuelo, hoje com 83 anos, começou sua carreira como sertanista acompanhando expedições dos irmãos Villas-Bôas, idealizadores do Parque Indígena do Xingu; nos anos 1990, foi presidente da Funai.
Nesta entrevista, ele fala sobre as principais conquistas dos indígenas nos últimos anos, sobre o futuro dos povos isolados no Brasil e sobre por que não concorda com a criação do Ministério dos Povos Indígenas.
Foi ainda na adolescência que Sydney Possuelo aproximou-se de quem ele tinha como heróis nacionais, os irmãos Villas-Bôas, figuras fundamentais na criação do Parque Indígena do Xingu, que aconteceu em 1961, primeira reserva indígena homologada do país. Ele os acompanhou em expedições ao Centro-Oeste do Brasil, também sob a influência do legado do marechal Cândido Rondon, sertanista que esteve à frente do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e entusiasta da fundação do parque no Xingu, que aconteceria poucos anos após a morte do militar.
Naquela mesma década seria criada a Fundação Nacional do Índio (Funai, hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas), em 1967, e para a qual Sydney prestaria serviço também como sertanista, um dos cargos da instituição. Posteriormente, na década de 1990, chegou a atuar como presidente da Funai, período em que ajudou a demarcar mais de cem Terras Indígenas no Brasil.
Durante os 42 anos em que trabalhou na Funai, Sydney Possuelo criou o Departamento dos Índios Isolados, divisão dedicada a proteger povos ainda não contatados — um tema do qual se tornou o maior especialista no país. “A ideia era: vamos buscar esses povos indígenas isolados e fazer contato. Eu tive a oportunidade de conhecer sete grupos saindo da selva pela primeira vez”, ele conta no documentário Sydney Possuelo, uma Vida Amazônica. Com o passar do tempo, no entanto, e depois uma experiência específica — e trágica — com o povo Arara, no Pará, Possuelo percebeu que contatar povos isolados não era a melhor forma de protegê-los.
Essa história ele conta à Mongabay nesta entrevista exclusiva, onde também fala sobre a principais conquistas dos indígenas nos últimos anos, sobre o futuro dos povos isolados no Brasil e sobre por que não concorda com a criação do Ministério dos Povos Indígenas.
Mongabay: Estabelecendo uma linha do tempo, quais foram as principais conquistas dos povos isolados no Brasil?
Sydney Possuelo: Um primeiro momento seria a partir de Rondon, em 1910, quando o Estado brasileiro criou uma entidade para cuidar dos povos indígenas, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Nesse período, houve um momento muito importante, que marca a postura do marechal e do próprio SPI: foi quando ele estava a cavalo próximo à aldeia dos Nhambiquaras e recebeu uma flechada na sua bandoleira. Os oficiais ficaram espantados com aquilo e quiseram reagir, mas a ordem dada pelo militar foi de que isso não acontecesse. Rondon disse que eles eram os invasores e que, nessa circunstância, “morrer se preciso for, matar nunca”, frase que ficou famosa e eu adotei, posteriormente, como lema das nossas operações em selva.
Depois, não só no que diz respeito aos povos isolados, mas aos indígenas em geral, outro momento de grande importância foram os irmãos Villas-Bôas, quando conseguiram fundar o Parque Indígena do Xingu. Ali, diversas tribos se encontraram no centro do Brasil e não deu em morte. Etnias diferentes se ajustaram, acabaram criando uma organização em que cada um falava sua língua, e ficou assim como se tivesse uma Organização das Nações Indígenas.
E um terceiro momento, desculpe mencionar a mim mesmo, mas não vejo outro que não esse, foi aquele em que mudamos a política do fazer contato para a do não fazer contato.
Mongabay: Como foi essa mudança de política?
Sydney Possuelo: Aconteceu depois da expedição Arara. Tinha nove anos que uma frente de contato tentava a aproximação com esse povo, que fica próximo a Altamira, no Pará. Em dezembro de 1979, trabalhadores da Funai na região foram seriamente feridos com flechadas e eu fui convocado para entender e solucionar a situação. Fiquei uma semana sobrevoando a área e fiz algumas propostas de mudanças, que compreendiam, primeiro, a retirada de invasores de lá, vindos com a criação da Transamazônica. Também solicitei equipe médica e helicóptero. O que mais matou índio ao longo da nossa história foram os vírus, então eu precisava oferecer uma estrutura caso eles se contaminassem.
Depois de nove meses, alguns Arara se aproximaram. Inclusive, quiseram conhecer a cidade. E foram. Quando voltaram, parte deles retornou para as malocas na mata e outros ficaram com a gente. Não demorou até que um pequeno grupo começasse a tossir, um sintoma de gripe, então logo a gente aplicou antibiótico. Mas e os que foram para a floresta? Esses não estavam protegidos. Então, organizei alguns grupos de busca e, para a nossa triste surpresa, foram encontrados alguns índios mortos. Viram uma mulher morta e a filha, de uns 5, 6 anos, em cima, tentando mamar nela.
Aquilo ali foi uma resposta terrível para mim. Com toda a parafernália que levei, ainda assim não tivemos sucesso. Eu estava decidido a propor algo diferente. Então, eu falei com o presidente da Funai na época, para a criação de uma política que devesse contemplar a identificação de onde estão esses povos isolados, a delimitação da terra sem fazer contato e a proteção, por meio de dispositivos aéreos ou terrestres, deles e de suas áreas. Foi criado, então, o Departamento de Índios Isolados e seis equipes intituladas Frentes de Proteção Etnoambiental, com o objetivo de protegerem aquelas pessoas e seus territórios. A medida contrariou alguns sertanistas da Funai. Em uma reunião, um deles disse que aquilo tiraria a glória do trabalho, a de justamente descobrir, revelar, povos para o mundo. Eu lhe respondi: “a glória de um sertanista deve ser a de defender um povo que ele nunca vai ver”.
Mongabay: Você foi um dos responsáveis pela demarcação das terras Yanomami. Janeiro deste ano começou com a trágica notícia das mortes em massa naqueles territórios durante o governo Bolsonaro, e uma ida de Lula, presidente recém-eleito, à região, junto da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Passados esses primeiros meses de nova gestão, e considerando o legado do antigo governo, quais ações você considera serem prioritárias, no que diz respeito aos povos indígenas, nesse momento?
Sydney Possuelo: Eu acho que é preciso considerar que o governo Lula encontra grandes dificuldades de se organizar porque foi tudo destruído: a economia, a questão indígena, a questão do meio ambiente. Fora isso, tem o Congresso Nacional, uma parcela que, em sua maioria, não o apoia.
A meu ver, olhando com atenção e com o respeito que eu tenho por ele e pelo Partido dos Trabalhadores, que está tentando fazer o possível, essas circunstâncias que mencionei travam uma ação mais efetiva. Estamos no quinto mês de governo e tenho a impressão de que ele não começou a governar profundamente. Algumas coisas foram feitas, como o que mencionou, a ida aos Yanomami. Inclusive, acho que ele deveria voltar agora, porque há problemas sérios por lá. Mas tudo é muito demorado. Eu entendo, entendo que seja assim, por conta dos desafios que trouxe antes, não o acuso de nada.
Mongabay: O que você achou da criação do Ministério dos Povos Indígenas?
Sydney Possuelo: Olha, sinceramente, se eu estivesse no poder não criaria da forma como ele fez. Eu acho que, primeiramente, todos os esforços deveriam ser concentrados na Funai. Ela já existe, já tem experiência. Ela precisa ser reposta em recursos, em técnicos, porque tudo isso foi desmontado nos últimos anos.
Cada ministério que você cria é um gasto a mais e esse dinheiro poderia ser posto na Funai para que ela faça o que precisa ser feito, que é tirar os invasores das terras Yanomami e delimitar e marcar outras Terras Indígenas.
A Funai tem o respeito do índio, enquanto que o ministério é algo novo. Eu era presidente da instituição e me lembro das muitas vezes em que etnias vieram aqui em Brasília, deram as mãos e fizeram uma corrente ao redor da casa da Funai a protegendo da invasão da polícia, por exemplo. Os indígenas sempre reconheceram o nosso trabalho, apesar dos erros e das falhas cometidas por nós.
As organizações do Estado estão sempre aquém das necessidades. Mas, é importante dizer, que se o Estado quiser muita coisa pode acontecer. No meu primeiro ano [como presidente] na Funai, quando Collor estava na presidência do Brasil, duplicamos a superfície de Terra Indígena no país em um ano. Quando o governo quer fazer ele faz, quando ele não quer fazer ele não faz, como foi com esse tsunami que vivemos nos últimos quatro anos.
Mongabay: Quando foi a última vez que você foi para campo, fez alguma viagem recente?
Sydney Possuelo: Fiz duas viagens bem recentes. A primeira quando se comemorou trinta anos da demarcação dos Yanomami. Naquele momento já encontramos a situação, essa que está aí, de fome, doença, invasão. Estive lá durante cinco ou seis dias, em junho do ano passado
Depois disso, eu fui para o Maranhão, para a área Arariboia, porque lá tem os Guardiões da Floresta. E eu tenho um filho, o Orlando, que era amigo do Bruno Pereira, inclusive, o indigenista morto no ano passado, que trabalha no Vale do Javari. Ele estava pegando os Guardiões da Floresta lá do vale e levando para o Maranhão com o objetivo deles trocarem experiências. Na sequência houve o movimento contrário, com o pessoal do Maranhão indo ao Javari.
Essa circulação é importante porque empodera os índios. Cada vez mais eles têm de estar na linha de frente. É muitas vezes bem difícil, porque vivem em uma outra realidade, e cometem certos erros, mas nós temos que considerar que tem um processo de aprendizagem. E, em comparação com os índios, nós, brancos, cometemos muitas mais estupidezes do que eles.
Mongabay: Você tem alguma viagem programada?
Sydney Possuelo: Tem um pessoal que está fazendo um filme comigo, contando a minha história, já faz dois anos que estamos filmando, e agora tem umas cenas que eles querem fazer no meio dos indígenas. Uma das áreas escolhidas é o Vale do Javari, a outra é lá nos Araras, no Pará, então devemos fazer isso no segundo semestre de 2023.
Mongabay: No documentário Sydney Possuelo, uma Vida Amazônica, tem uma frase sua que diz o seguinte: “O futuro desses povos não depende deles, mas das nossas decisões”. Considerando o presente, como você vê o futuro dos povos isolados no Brasil?
Sydney Possuelo: Eu repetiria essa frase sem medo de errar. Houve um avanço importante com a Joenia Wapichana na Funai, com a ministra dos Povos Indígenas, mas se analisar: tudo o que podem fazer a Funai ou esse novo ministério, vai para onde? A decisão é dos governos, a decisão é nossa. Então, eu acho que os índios continuam dependendo da compreensão ou não que nós tivermos, do sentimento que nós quisermos implementar nas questões que envolvem os povos indígenas.
E eles têm que participar cada vez mais, ir para as universidades – essas vagas que abrem e são muito importantes , participar do Congresso, serem deputados, senadores, para tentarem fazer alguma coisa – esperando que os que assumirem esses postos permaneçam com o coração indígena, não virem brancos ali dentro. Nós poderíamos ter aqui, como em outros países, cadeiras permanentes de senador para povos indígenas. Eles não são eleitos pela população, a própria comunidade indígena os coloca lá, a cada dois anos troca. Seria importante ter essas cadeiras. Para que haja indígenas não só na Funai, no ministério, mas também dentro do Congresso Nacional. O Estado deveria entender isso e propiciar essas condições.
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2023/04/beatriz-matos-viuva-de-bruno-pereira-agora-na-defesa-dos-povos-isolados-estou-sozinha-mas-estou-com-ele/
Imagem do banner: Sydney Possuelo com indígenas Awa-Guajá, no Maranhão. Foto: arquivo pessoal