Projeto de Lei quer reabrir a antiga Estrada do Colono, trecho de 17 km que corta o Parque Nacional do Iguaçu ao meio; a via está fechada desde 2001.
A estrada é uma séria ameaça às onças-pintadas, cujo número vem crescendo de modo consistente na região – um terço da população da espécie que resta na Mata Atlântica está aqui.
A reabertura não só aumentará o risco de atropelamento como também facilitará a entrada de caçadores ilegais, principal ameaça às onças.
A reabertura da rodovia pode ainda causar impactos como poluição sonora e atmosférica, degradação do solo e alteração no microclima da região.
Em meados de julho, as armadilhas fotográficas do Projeto Onças do Iguaçu, no Paraná, flagraram imagens de dois novos filhotes de onça-pintada (Panthera onca). Em julho do ano passado, as câmeras instaladas na mata já tinham registrado também a chegada de outros três filhotes na região do Parque Nacional do Iguaçu, uma Unidade de Conservação de Proteção Integral com 185 mil hectares de área nomeada Patrimônio Mundial Natural pela Unesco em 1986.
Estima-se que restem na Mata Atlântica entre 230 e 300 onças-pintadas. Um terço delas está justamente na área que abrange o parque do Iguaçu e reservas adjacentes do lado argentino. E isso se deve principalmente ao projeto de conservação realizado nas últimas décadas ali. “Esta é a única população da espécie no bioma que cresce”, diz a bióloga Yara Barros, coordenadora do Onças do Iguaçu.
No começo dos anos 2000, notou-se uma grande queda no número de indivíduos naquela região. Em 2009, estimava-se que fossem entre nove e onze. Mas gradativamente, a situação foi melhorando. Em 2014, um censo revelou a presença de 17 onças. Dois anos mais tarde já eram 22, e em 2018 foram contabilizadas 28 delas.
Já no chamado Corredor Verde, que abrange, além do parque brasileiro, o Parque Nacional del Iguazú e o Parque Provincial Urugua-í, ambos na Argentina, outros fragmentos de florestas localizados na província argentina de Misiones e o Parque Estadual do Turvo (Rio Grande do Sul), esse número saltou de 40 indivíduos, em 2005, para 105 em 2018.
Yara explica que 85% do habitat ideal para a espécie na Mata Atlântica já foi perdido. Oito por cento do bioma é considerado “marginalmente adequado”, 6% “medianamente adequado” e apenas 1% de alta qualidade para sua sobrevivência. E ele está exatamente no Corredor Verde que atravessa a fronteira entre Brasil e Argentina. “Por esta razão, é imperativo manter a integridade do parque do Iguaçu”, ressalta.
Uma estrada que rasga o parque ao meio
Mas agora a integridade que a coordenadora do Projeto Onças do Iguaçu considera essencial para recuperar a população do maior felino das Américas está ameaçada por um projeto de lei que tramita na Camâra dos Deputados, em Brasília. O PL 984/2019, de autoria do deputado federal paranaense Nelsi Coguetto Maria, mais conhecido como Vermelho, propõe uma nova categoria de Unidade de Conservação no país, a de Estrada-Parque. E a primeira delas implica justo a reabertura da Estrada do Colono, um trecho de 17,6 km que corta ao meio o Parque Nacional do Iguaçu.
A estrada, construída na década de 1950, liga os municípios de Serranópolis do Iguaçu, com população de aproximadamente 5,5 mil habitantes, a Capanema, com pouco mais de 19 mil moradores.
Em 1986, o fechamento da estrada foi determinado pelo Ministério Público Federal; uma década depois, em 1997, seu acesso foi desbloqueado ilegalmente. Foi só em 2001, por ordem do Superior Tribunal de Justiça e resultado de uma ação conjunta entre Ibama, Exército e Polícia Federal, que o trecho foi finalmente desativado. Na época, a decisão judicial destacava que a Estrada do Colono “ameaçava a integridade do Parque Nacional do Iguaçu e a segurança nacional pela proximidade com a tríplice fronteira”. Um dos motivos para sua desativação era por ser usada como rota de contrabando entre Brasil, Paraguai e Argentina.
No texto do Projeto de Lei, Vermelho alega que a estrada irá restaurar as relações socioeconômicas e turísticas nas regiões Oeste e Sudoeste do Paraná. “A reabertura corrige essa histórica injustiça que foi o fechamento da Estrada do Colono e atende ao clamor social de décadas do povo paranaense, resgatando a história e as relações socioeconômicas, ambientais e turísticas da região”, afirma.
Para Agustín Paviolo, coordenador do Proyecto Yaguareté, que trabalha pela preservação da onça-pintada no lado argentino, a possível reabertura da estrada é um erro. “É sem dúvida um retrocesso para a conservação da espécie. A estrada não só aumentará o risco de atropelamento, mas também facilitará a entrada de caçadores ilegais, que são a principal ameaça à espécie. Uma das áreas mais importantes para a conservação da Mata Atlântica no mundo será impactada”.
Além do PL 984/2019, há ainda um segundo projeto, de 2010, de outro deputado paranaense, Assis Couto, que também defende a reabertura daquele trecho. A proposta foi aprovada na casa e seguiu para o Senado, onde está parada desde 2013.
Conceito de estrada-parque deturpado
Organizações não-governamentais, ambientalistas e especialistas na área de conservação são unânimes em criticar o PL 984/2019, que desde o começo de junho tem sua apreciação na Câmara considerada “urgente” graças a uma votação de 315 contra 138 votos para tal.
“Não há razão lógica para reabrir a estrada. Ela já foi coberta pela mata, não existe mais. Ela corta o coração do parque e está bem no meio da área de ocorrência da onça-pintada”, alerta a bióloga Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação. “É oportunismo político, com interesse eleitoreiro, num momento em que pautas ambientais estão sendo votadas de maneira negativa no Congresso”.
Junto com diversas outras entidades e empresas da região de Foz do Iguaçu, a Rede Pró-UC criou a campanha #EstradaRasgaParqueNão, para a qual foi lançado um site chamando a atenção dos brasileiros e, também, um vídeo (abaixo) em que artistas paranaenses participam, repudiando a proposta e alertando que, caso seja aprovado, o projeto de lei pode estabelecer um precedente para a abertura de estradas em outras unidades de conservação brasileiras.
“O objetivo ali é a mobilidade humana e não a conservação”, afirma Aureo Banhos, professor do Projeto de Ecologia de Estradas da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Além disso, o conceito de “estrada-parque” estaria sendo deturpado. Em sua verdadeira concepção, criada nos Estados Unidos, ela indica uma estrada ou rodovia que margeia belezas cênicas e que não tem como foco o desenvolvimento econômico da região onde está localizada. É o caso, por exemplo, da americana Blue Ridge Parkway, que passa ao longo de cadeias montanhosas, vales, cânions e rios nos estados da Virgínia e da Carolina do Norte.
“Estrada-parque não significa abrir uma estrada no meio de um parque, ainda mais quando há alteração da paisagem e justamente na zona intangível de uma unidade de conservação, onde não se pode ter impacto, pois apresenta o maior grau de primitividade e habitat de melhor qualidade”, diz a diretora-executiva da Rede Pró-UC.
Título de Patrimônio da Unesco em risco
Uma outra preocupação levantada pelos críticos ao projeto é que o Parque Nacional do Iguaçu pode perder o título de Patrimônio Mundial Natural. Dois anos depois que a estrada foi reaberta ilegalmente, em 1999, a Unesco chegou a colocar o parque brasileiro na lista de “sítios em perigo”.
Atualmente, a concessão da exploração para uso turístico da área de uso público, que equivale a 3% da extensão do parque nacional, pertence ao Grupo Cataratas. Em 2019, a área recebeu 1,8 milhão de visitantes, um aumento de 6,5% em relação ao ano anterior. A maioria desses turistas foi até lá para conhecer de perto as maiores quedas d’águas do mundo.
Procurada pela reportagem para dar uma declaração sobre a proposta do deputado Vermelho, a empresa afirmou que “O Grupo Cataratas não tem domínio sobre esta área e poder sobre esta discussão. É uma questão do governo federal, Ministério do Meio Ambiente e ICMbio, responsáveis pela unidade de conservação”.
Também solicitamos uma posição do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão de todas as unidades de conservação do país e, consequentemente, pelos seus planos de manejo, mas não obtivemos resposta. O deputado Vermelho também foi procurado, mas não respondeu a um pedido de entrevista.
Impacto das estradas sobre a vida selvagem
“O problema da abertura de estradas vai muito além dos atropelamentos. Este é apenas o mais visível”, alerta Aureo Banhos, da Ufes. Vários estudos internacionais já comprovaram que rodovias são vetores para a perda da biodiversidade. Um artigo científico publicado em 2016 na revista Nature aponta que todos os impactos das estradas chegam a pelo menos 1 km de suas bordas e 14% deles se estendem a até 5 km de distância.
Além da colisão de animais com veículos, há também a questão da poluição, não apenas sonora, mas do ar, a degradação do solo e a alteração do microclima da região, com possível aumento da temperatura local, sobretudo próximo à faixa de rolamento.
Banhos diz que só o processo para a reabertura do trecho já trará um impacto enorme sobre a área, que não abriga unicamente a onça-pintada, mas uma enorme variedade de outras espécies, como gatos-do-mato, jaguatiricas, onças-pardas, tamanduás-bandeiras e antas. A queixada, por exemplo, um mamífero extinto na região durante 20 anos, desde 2016 tem sido observado novamente no Parque Nacional do Iguaçu.
“Medidas de mitigação jamais serão capazes de proteger todas essas espécies. O impacto será inevitável. Talvez minimizado para grandes mamíferos, mas não para aves, répteis ou anfíbios. É inviável de se controlar os atropelamentos que ocorrerão ali”, prevê o professor da Ufes.
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