No primeiro semestre de 2021, um terço do desmatamento na Amazônia ocorreu nas florestas públicas não destinadas – áreas florestais que não tiveram seu uso decretado como unidade de conservação.
Na Amazônia, as florestas públicas não destinadas se estendem por 60 milhões de hectares, o equivalente à soma dos territórios de Espanha e Portugal.
A não destinação tem motivos técnicos, como a necessidade de um plano de manejo, mas também políticos: a floresta em pé é impedimento para o avanço da agropecuária e da mineração.
Mais de 18 milhões de hectares de FPND foram declarados ilegalmente como imóvel particular no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural ; o número de registros é 232% maior em relação a 2016, apontando forte indício de grilagem.
“Poderíamos rapidamente derrubar o desmatamento na Amazônia, eu diria em mais de 30%, se destinássemos uma grande parcela desses quase 60 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas”, diz Paulo Moutinho, pesquisador sênior e um dos fundadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). “Essa dinâmica de destinação muda o modo como a grilagem olha a paisagem e você tem reduções substanciais imediatas das taxas de desmatamento”.
As florestas públicas não destinadas (FPND) são áreas florestais pertencentes aos governos estaduais ou federal, mas que ainda não tiveram seu uso decretado. Na Amazônia, correspondem a 14% da extensão do bioma — o equivalente à soma dos territórios de Espanha e Portugal.
Segundo nota técnica do Ipam, em 2020 as FPND sofreram 32% do desmatamento ilegal ocorrido na Amazônia. No primeiro trimestre de 2021, foram alvo de 33% do desmatamento. Desde 2006 a lei diz que as florestas públicas devem ser destinadas à criação de unidades de conservação, com prioridade a áreas de uso sustentável pelas comunidades. Não é isso que vem ocorrendo e, sem a destinação, áreas de patrimônio público ficam suscetíveis à ação de grileiros.
Segundo Moutinho, são dois os principais motivos que inibem a devida destinação. O primeiro é de teor técnico: quando uma área é destinada, o órgão do estado ou do governo federal tem de tomar posse e isso implica infraestrutura, ações de proteção e manejo. “Com o desmantelamento que vem ocorrendo, não só nos últimos dois anos, mas também nos anos anteriores, do Ibama e principalmente do ICMBio, qualquer destinação é um peso para essas agências que não têm recursos e gente suficiente para dar conta daquela área destinada”, explica.
O segundo motivo que impede a destinação é político. A floresta que permanece em pé é impedimento para o avanço da agropecuária ou da mineração. “A visão da década de 1940 e 50 é muito presente hoje na assembleia e nos governos que são mais conservadores. Portanto, aquilo que está preservado precisa ser reduzido para que avance o tal do ‘progresso’”, analisa o pesquisador do Ipam. O conceito é o mesmo da conhecida expressão “passar a boiada”, consagrada na voz do ex-ministro Ricardo Salles.
Antonio Nobre, pesquisador do Inpe e doutor em Ciências da Terra, já dizia em entrevista para a Mongabay em 2019: “a ideologia que sai da boca dos governantes influencia diretamente o que acontece na floresta”.
CAR: autorregistro é porteira para a ilegalidade
Áreas de FPND declaradas ilegalmente como particulares no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) são indício de grilagem. Criado pelo Código Florestal de 2012 para regularização ambiental, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) deveria ter sido usado por proprietários de terras até 2014. Na sequência, o governo faria a validação, cancelando registros irregulares. Mas o prazo foi prorrogado indefinidamente e o CAR, que é um registro autodeclarado, passou a ser usado indevidamente por grileiros que cadastram terras do patrimônio público como propriedade particular.
A floresta é, então, derrubada — muitas vezes além do limite do Código Florestal — e transformada em pasto para demonstração de posse e produtividade. Na hora de vender as terras, a floresta no chão vale mais do que a floresta em pé. Muitas vezes, a madeira de lei é retirada do local no início da derrubada e vendida para financiar o restante do desmatamento.
O número de registros no CAR cresceu 232% em relação a 2016, apontando forte indício de grilagem. No período de 2016 a 2020, tanto o desmatamento quanto os focos de fogo dentro das florestas públicas não destinadas foram maiores nas áreas com CAR em comparação às áreas sem cadastro. Até o fim de 2020, mais de 18 milhões de hectares de FPND, ou 32% de sua área total na Amazônia, foram declarados ilegalmente como propriedade particular. No mesmo ano, 72% do desmatamento nas FPND ocorreu em áreas com CAR. Já no primeiro trimestre de 2021 o percentual subiu para 79%.
Apesar de não comprovar a titularidade da terra, ter o CAR em mãos facilita a obtenção do financiamento, que acaba viabilizando o desmatamento. O Ministério Público Federal estima que desmatar um hectare custa de R$ 800 a R$ 2 mil. Mais de 40% dos CARs declarados são de grandes propriedades rurais, acima de 15 módulos fiscais – na Amazônia a extensão do módulo fiscal varia de acordo com o município, mas tem em média 76 hectares. De acordo com o Ipam, ao desmatar 269 mil hectares em 2020, a grilagem pode ter movimentado mais de R$ 215 milhões. “As pessoas estão desmatando às vezes 1.500 hectares. Precisa de milhões pra fazer isso. Não é o pequeno produtor, o índio ou mesmo o garimpeiro que está fazendo isso”, afirma Moutinho.
Considerando os altos valores, a grilagem está assumindo novo perfil. “O que você tem hoje é uma interface, uma interligação entre a grilagem, a exploração ilegal de ouro e o tráfico de armas e drogas na região. Essas três coisas estão começando a se conversar e um a financiar o outro”, diz Moutinho. “Ao vender uma terra pública, esse recurso é reinvestido, por exemplo, em garimpo ilegal. O ouro está com o preço lá em cima no mercado internacional”.
Grilagem institucionalizada
Apesar de ilegal e criminosa, a venda de áreas griladas da Floresta Amazônica ocorre à luz do dia ou pela internet. Em viagem de bicicleta pela Transamazônia em 2017, Paulo Moutinho afirma ter visto diversas placas de venda com telefones para contato no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Documentário da BBC mostrou em fevereiro deste ano terras ilegais à venda no Facebook.
Além disso, “a grilagem vem, nos últimos anos, se alimentando dessa esperança de mudança de legislação”, afirma Moutinho. O projeto de lei 510/2021, atualmente em discussão no Senado, é um exemplo de legislação que pode anistiar ocupações criminosas realizadas até 2014. Também o PL 2633/2020 é apontado no estudo do Instituto Socioambiental (ISA) como forma de regularizar o roubo de terras públicas.
Exemplo emblemático de mudança de legislação, como “solução” para resolver conflitos fundiários, é a lei aprovada pelo governo de Rondônia, reduzindo cerca de 220 mil hectares de duas unidades de conservação, a Reserva Extrativista de Jaci-Paraná e o Parque Estadual de Guajará-Mirim. Como uma espécie de compensação, o governo criou outras cinco reservas.
Desafetar duas unidades de conservação, alegando que estão criando outras, não tem lógica na legislação ambiental. Vai desafetar para justificar grilagem lá dentro? Trata-se de localidades diferentes com relevância ambiental distinta”, afirma Edjales de Brito, representante da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. Edjales vê, nas áreas suprimidas, um corredor etnoambiental. “As áreas servem de amortecimento para terras indígenas, inclusive com a presença de povos em isolamento voluntário”.
Além de as novas áreas não compensarem os serviços socioambientais prestados pelas áreas anteriores, elas já sofrem nova ameaça na Assembleia Legislativa de Rondônia com a aprovação de dois projetos de lei: um deles revogando a criação do Parque Estadual Ilha das Flores e o outro reduzindo a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Limoeiro.
O primeiro semestre deste ano foi o pior em desmatamento na Amazônia desde 2016, com 17% a mais de área derrubada do que o mesmo período de 2020. O Sistema de Alerta do Desmatamento (SAD), que monitora a Amazônia Legal via satélite, mostrou que este ano tivemos o pior mês de abril em desmatamento em uma década. Naquele mês ocorreu também a Cúpula de Líderes sobre o Clima, quando o presidente Jair Bolsonaro se comprometeu a acabar com o desmatamento ilegal até 2030. “É uma retórica política contra fatos concretos, o que caracteriza uma esquizofrenia completa do governo”, comentou Paulo Moutinho.