Abandonados pelo governo federal, moradores do Território Quilombola de Jambuaçu, no noroeste do estado, sofrem com alastramento do vírus e poluição de rios, igarapés e várzeas.
A ausência de estruturas de saúde adequadas e a falta de assistência por parte do governo federal fizeram com que a covid-19 se alastrasse por comunidades quilombolas de toda a Amazônia brasileira.
O Território Quilombola de Jambuaçu, formado por 15 comunidades nas quais vivem 728 famílias, teve 80% de sua população infectada pelo novo coronavírus.
As ameaças não existem apenas como resultado direto de doenças, mas decorrem também de preocupações cotidianas sobre a contaminação dos corpos hídricos, causadas por empresas que atuam dentro dos limites do território de Jambuaçu.
“Minha família ficou em isolamento [por] dois meses no território”, diz Sônia Castro, referindo-se ao isolamento social realizado para reduzir a transmissão do novo coronavírus. Mesmo assim, seus filhos adoeceram e ela relata seu sofrimento para conseguir assistência médica. “[Eles estavam] um em cada casa, e depois de trinta dias não havia como eles ficarem mais lá. Foi quando tive que chamar uma ambulância e eles foram transferidos para Belém”.
Sônia fala na frente de sua casa de madeira, pintada de verde e com detalhes brancos, localizada na comunidade da Ribeira, no Território Quilombola de Jambuaçu, no Pará. Quilombolas, como Sônia e seus filhos, vivem em todo o país, incluindo nas vastas extensões da Bacia Amazônica, onde seus antepassados, escravos de origem africana fugitivos, se estabeleceram. Mas mesmo vivendo em localidades mais afastadas na floresta, os quilombolas não encontram sossego: já cercados por atividades de extração e processamento de minérios, além de grandes empreendimentos do agronegócio – que acumulam um histórico de poluição no Pará e em outras partes do Brasil e do mundo –, sua situação foi agravada com a chegada do novo coronavírus.
Sônia conta sua jornada quando precisou levar seus filhos para serem atendidos em Belém, a capital do estado. Saíram da comunidade em uma rabeta – como são chamadas as pequenas canoas motorizadas que cortam os rios da Amazônia – e navegaram por cerca de uma hora pelo Rio Moju até conseguirem uma ambulância que os levasse ao hospital mais próximo de sua comunidade, na cidade que leva o mesmo nome do rio. A logística foi para evitar o contágio de outras pessoas da comunidade, rito muito diferente ao do tratamento solidário e afetuoso que uma comunidade quilombola, como a de Ribeira, estava acostumada a dar aos seus doentes. “Foi desesperador pra mim, porque eu pensei que eu ia perder meus filhos e eu senti, inclusive, até discriminação de algumas pessoas por conta disso, porque não queriam mais ter contato comigo. Gerou um certo comentário: ‘Ah os filhos dela estão mal, vão contaminar outras pessoas’”, relata.
A experiência de Sônia é como a de outras pessoas infectadas com o novo coronavírus, mas a doença é particularmente preocupante em quilombos como o de Ribeira, que está conectado a uma rede de outras 15 comunidades quilombolas que, juntas, formam o Território Quilombola de Jambuaçu. Com 400 quilômetros quadrados de área, o território é quase do tamanho da cidade paranaense de Curitiba; no entanto, embora Jambuaçu tenha sido o abrigo dos quilombolas desde o final do século 19, a região sofre com a falta de assistência à saúde por parte do Estado, algo que tem se mostrado letal durante a pandemia. Ali existe apenas um posto de saúde e uma única ambulância para o atendimento de todos os comunitários. Em meio à pandemia, faltou até mesmo o básico para a prevenção das famílias que vivem no território.
A região já foi lar de prósperos igarapés e de uma rica biodiversidade, marca registrada da Amazônia Oriental. No entanto, esses ecossistemas estão cada vez mais ameaçados pela agressiva exploração de empreendimentos minerários e do agronegócio, trazendo riscos para quem sempre se relacionou de forma sustentável com a floresta. Os quilombolas criticam a ascensão da atividade comercial em grande escala em seus territórios: minerodutos, plantações de dendê e uma série de linhas elétricas cortando centenas de quilômetros de floresta e igarapés. Todos esses fatores trazem seus próprios riscos à saúde ambiental e humana. Mas, com a chegada da pandemia de covid-19, seus efeitos foram potencializados.
Grandes empreendimentos ameaçam o território
Elias Silva, um morador antigo da comunidade de Nossa Senhora das Graças de Jambuaçu, relata a ameaça representada por uma grande empresa que produz e beneficia dendê para a produção de óleo de palma, nas fronteiras do território, a Marborges Agroindústria S.A. Com forte presença no estado do Pará, a operação multimilionária do agronegócio possui quase 7 mil hectares de plantação de dendê, e outros 10 mil hectares para o restante de suas operações. O cultivo industrial dos dendezais é conhecido por seu potencial de desmatamento, mas seu papel na poluição da água também foi destacado nos últimos anos em todo o mundo. Segundo João Santos Nahum e Cleison Bastos dos Santos, autores do estudo “Impactos Socioambientais da Dendeicultura em Comunidades Tradicionais na Amazônia Paraense”, a produção industrial de óleo de palma faz uso intensivo de produtos químicos como fertilizantes, herbicidas, raticidas e inseticidas para o controle das pragas; com a localização das plantações próximas a rios e igarapés, há o alto potencial de contaminação dos corpos hídricos por esses produtos químicos.
“Os igarapés que passam pela empresa Marborges são os mesmos que chegam ao nosso território. Eles lançam seus dejetos, seus venenos pelo caminho e chegam aqui pela água. A água aqui é o nosso sustento, onde pescamos, onde coletamos água potável. E hoje estamos cavando poços porque os igarapés estão contaminados”, diz Elias.
Além da Marborges, também existem outras empresas que impactam diretamente o território quilombola. Parte dos 245 km de minerodutos da transnacional Norsk Hydro cortam toda a extensão territorial de Jambuaçu, transportando o minério de bauxita (matéria-prima do alumínio) desde a cidade de Paragominas, sudeste paraense, que será processado pela refinaria Hydro Alunorte, no Parque Industrial de Barcarena, município do nordeste paraense.
O grupo de origem norueguesa, do qual o governo norueguês é dono de cerca de 35% dos ativos financeiros, acumula processos no Ministério Público Federal por danos ao meio ambiente e à população barcarenense, causados por dois episódios de extravasamento de lama vermelha tóxica do Depósito de Resíduos Sólidos (DRS1), ocorridos nos anos de 2014 e 2018. Os crimes ambientais da Hydro em Barcarena afetaram, sobretudo, as cinco comunidades quilombolas que estão localizadas a jusante do DRS1: Sítio São João, Gibrié de São Lourenço, Sítio Conceição, São Sebastião do Burajuba e Cupuaçu.