Mongabay revisita relatório da Oakland Institute, publicado no final de 2019, e que descreve casos de privatização de terras em todo o mundo.
Privatização, neste caso, tem a ver com a regulação da transferência de terras públicas para o domínio privado, tema bastante debatido no Brasil recentemente com a “MP da grilagem”, que o presidente Jair Bolsonaro promete reeditar no mês que vem.
Os autores do relatório advertem que privatizar terras, em especial aquelas manejadas coletivamente, pode fazer com que os interesses de comunidades tradicionais sejam ignorados.
Eles citam provas de que governos e agências veem os títulos de propriedade privada não como uma forma de ajudar agricultores pobres por meio da reforma agrária, mas sim de “liberar o potencial econômico da terra”, favorecendo até mesmo a propriedade de terras públicas ocupadas ilegalmente.
Empresas e governos têm insistido na privatização de terras em todo o mundo como forma de obter recursos econômicos valiosos, de acordo com relatório do Oakland Institute, organização sediada na Califórnia (EUA) que pesquisa e analisa políticas públicas.
No entanto, tais medidas podem privar povos tradicionais de seus direitos ao desconsiderar o sustento proporcionado pela terra, diz Frederic Mousseau, principal autor do relatório.
“[Em] muitos lugares do mundo, vemos diversos usos da terra que vão além da noção de valor econômico”, diz Mousseau, que também é diretor de políticas do Oakland Institute. Terras compartilhadas fornecem madeira, remédios, carnes de caça e peixes para esses grupos, explica.
“Quando [os que propõem a privatização] falam em liberar o valor econômico da terra, eles não mencionam esse valor”, acrescenta Mousseau.
O relatório analisa estudos de caso em seis países onde políticos e agências oficiais têm insistido em títulos de propriedade individuais para “despertar o potencial econômico” de terras de posse comunal. Os autores incluem exemplos de como governos contribuem para a grilagem de terras, como as ameaças a reservas indígenas feitas pelo atual governo brasileiro.
“Não tem terra indígena onde não tenham minerais”, disse o presidente Jair Bolsonaro, de acordo com um relatório da Survival International citado pelo Oakland Institute. “Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra pra índio (sic).”
Mas, conforme demonstram os estudos de caso apresentados no relatório do Oakland Institute, grandes projetos de mineração não significam desenvolvimento econômico, pelo contrário: o combate à desigualdade tem ficado em segundo plano na maioria dos casos.
Blockchain e posse da terra
No mesmo relatório, os autores do Oakland Institute descrevem um projeto de larga escala na Zâmbia, país africano, que levanta novas questões sobre posse da terra, uso de tecnologia e desenvolvimento econômico. Liderado pela empresa Medici Land Governance (MLG), o projeto utiliza blockchain, tecnologia usada para registrar transações com criptomoedas como Bitcoin, para registrar propriedade de terras e criar títulos de posse como parte dos planos de desenvolvimento do país. Mousseau e seus colegas relacionam a onda mundial de privatização a esse esforço, que gerou 50 mil títulos em um programa piloto em 2018. A MLG pretende criar mais 250 mil títulos em outro projeto com a câmara municipal de Lusaka, capital da Zâmbia.
O relatório do Oakland Institute aponta que a porcentagem de terras de propriedade compartilhada no país era de 94% na época da independência do Reino Unido, em 1964. Agora, o número é inferior a 60%.
A MLG é uma “empresa de benefício público”, de acordo com o CEO Ali El Husseini. Além disso, é subsidiária da empresa de varejo on-line Overstock.com. Mousseau e seus colegas dizem que comentários feitos pelo ex-CEO da Overstock Patrick Byrne revelam as verdadeiras intenções da empresa.
“Há também trilhões de dólares em valor em reservas minerais globais que não podem ser acessadas pelas mineradoras […] que têm dificuldade de conduzir operações onde a governança de terras não é clara devido às diversas leis e regulamentos que datam da década de 1940”, escreveu Byrne em uma carta aos acionistas da Overstock em 2019, de acordo com o Oakland Institute. “Acreditamos que nosso trabalho pode liberar esses valores. Ao liberar essa imensa quantia, uma pequena parte deve vir para nós e uma montanha para as populações mais pobres do mundo.”
Em e-mail enviado à Mongabay, Rania Elton, porta-voz da MLG, rejeita a ideia de que a Overstock pretende explorar a riqueza mineral da Zâmbia por meio de sua subsidiária. Husseini diz que o relatório “não caracteriza o escopo e a estratégia operacional que a MLG está desenvolvendo”.
“[Nós] não temos nenhuma relação com direitos minerais”, diz ele, acrescentando que o trabalho na Zâmbia é realizado com o Ministério de Terras e Recursos Naturais, e não com o Ministério de Minas. Entretanto, Mousseau questiona o uso de blockchain pela MLG para entregar títulos privados na Zâmbia. “Para essa solução milagrosa funcionar, você precisa mudar o sistema de propriedade privada e criar uma nova forma de registrar todas as terras.”
Christoph Kubitza, pesquisador da Universidade de Göttingen, na Alemanha, que não fez parte da pesquisa do Oakland Institute, diz que pode haver vantagens e desvantagens no uso de ferramentas como a blockchain no contexto da posse de terra. “Usar tecnologias modernas com certeza ajuda”, analisa, “mas muitas vezes as agências locais não possuem os meios para utilizá-las, o que poderia mantê-las à margem de todo o processo”.
Kubitza estuda o uso da terra na Indonésia, onde a maioria das fazendas é administrada por agricultores individuais. “Os autores [do relatório] estão corretos em afirmar que os títulos de propriedade privada sozinhos não levam necessariamente ao desenvolvimento sustentável”, explica. “Concordo com eles que esse tipo de título pode, em certas circunstâncias, colocar as comunidades locais em risco. Se o conceito de mercados de terras não for bem compreendido, os investidores podem tirar vantagem da situação.”
No entanto, ele ressalta que propriedade consuetudinária, que é aquela baseada na relação histórica de um determinado povo ou comunidade com a terra, nem sempre equivale à posse comunal, que, por sua vez, é o modelo no qual o uso da terra é compartilhado por vários indivíduos . “Sistemas distintos de posse da terra se desenvolveram em diferentes regiões do mundo”, diz Mousseau. Ele cita um exemplo onde agricultores e pecuaristas passaram a compartilhar o acesso à terra, o que levou ao aumento da produção de laticínios na África Ocidental nas últimas décadas. “Você pode ter desenvolvimento econômico fazendo exatamente o oposto do que estão dizendo para os países fazerem”, resume.
Acesso a crédito?
A justificativa para os títulos de propriedade privada, corroborada pela teoria do economista peruano Hernando de Soto, costuma ser a de que os proprietários passam a ter acesso a crédito. De acordo com De Soto, com um título formal de propriedade privada, até mesmo alguns dos agricultores mais pobres do mundo podem ter um ativo tangível com o qual podem tomar empréstimo e possivelmente sair da pobreza.
Porém, na visão de Mousseau, oferecer terras como garantia também expõe os pequenos agricultores ao risco de perdê-las, como, por exemplo, em caso de seca severa. “Concordo com os autores que títulos de propriedade, crédito e mercados de terras não resolverão o problema da desigualdade”, diz Kubitza. “Reformas agrárias precisam ser feitas em diversos países.”
Kubitza ainda diz que os títulos de propriedade estão longe de ser uma solução mágica. Pelo contrário, eles são apenas uma das várias estratégias necessárias para ajudar agricultores necessitados em todo o mundo.
“Esforços maiores são necessários para dar apoio a pequenos agricultores em países de baixa renda, que geralmente estão entre os mais pobres em muitos deles. Ajudá-los a trabalhar em suas próprias terras em vez de trabalhar em troca de salário em grandes latifúndios causa um impacto positivo na renda, o que consequentemente garante melhor educação e saúde”.
Moradia em comunidade quilombola na Reserva Biológica do Rio Trombetas, Pará. Foto: Carolina Teixeira de Melo Franco / Creative Commons.
John Cannon é redator da Mongabay. Siga-o no Twitter: @johnccannon
Citação:
Kubitza, C., Krishna, V. V., Urban, K., Alamsyah, Z., & Qaim, M. (2018). Land property rights, agricultural intensification, and deforestation in Indonesia. Ecological Economics, 147, 312-321. doi:10.1016/j.ecolecon.2018.01.021
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