Idealizado por um antropólogo indígena, o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi oferece aos moradores de Manaus tratamentos tradicionais de cura e proteção aplicados por pajés das etnias Dessana, Tuyuka e Tukano.
Chamados de kumuã, os anciãos indígenas aplicam o chamado Bahsessé, um tipo de benzimento oriundo do Alto Rio Negro que evoca a presença de seres da floresta que, segundo eles, detêm todo o conhecimento sobre a humanidade.
Em quase três anos de funcionamento, o centro já atendeu cerca de 2.700 pessoas. Uma de suas propostas é difundir entre o grande público a medicina tradicional indígena, prática que vem perdendo força na floresta.
Um casarão histórico no centro antigo de Manaus (AM) abriga a sabedoria de anciãos das etnias Tukano, Tuyuka e Dessana, povos que habitam a bacia do Rio Uaupés, no Alto Rio Negro (noroeste do estado do Amazonas). Estes anciãos são os kumuã – plural de kumu, alcunha que alguns indígenas recebem após passarem por anos de formação na floresta, cujo aprendizado é por meio do conhecimento sobre práticas de cura e de proteção, transmitido por muitas gerações.
Três kumuã se revezam no atendimento a qualquer pessoa que esteja interessada nos chamados “tratamentos complementares de saúde” do Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, espaço idealizado pelo tukano João Paulo Lima Barreto, doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que só não se tornou ele próprio um kumu porque saiu de sua aldeia, quando criança, para estudar em um internato salesiano.
Em quase três anos desde a abertura do centro, 2.700 pessoas receberam o tratamento denominado Bahsessé, genericamente traduzido como “benzimento”, como explica Barreto: “Basessé é esse poder de articular substâncias curativas contidas nos vegetais, nos animais, nos minerais, a partir do conhecimento que o kumu adquire”.
Manoel Lima, cujo nome indígena é Dühpó, é um dos kumuã que vieram do Alto Rio Negro para atender no Centro de Medicina Indígena. Membro da etnia Tuyuka, ele fala muito pouco português enquanto utiliza água, tabaco ou produtos à base de ervas medicinais para o Bahsessé. O kumu parece “conversar” com esses elementos para, em seguida, envolver com a fumaça do tabaco a pessoa que estiver passando pelo atendimento. Ou oferece a água que passou pelo processo ritualístico para a pessoa beber.
Além de tratamento de saúde, seu Manoel explica que o Bahsessé também serve como proteção. As mulheres indígenas na hora do parto, segundo a tradição em sua aldeia, por exemplo, recebem essa proteção por meio da defumação do breu, uma enzima vegetal comum em algumas regiões da Amazônia.
“Nossos conhecimentos são muito difíceis de serem compreendidos pelos brancos”, afirma o kumu na língua tukano, traduzido por Barreto. Para o antropólogo, a proposta do Centro de Medicina Indígena em Manaus seria, então, mais do que oferecer um tratamento complementar para auxiliar no combate a doenças. Sua ideia é a de “provocar” a sociedade não indígena a compreender como o conhecimento tradicional é utilizado pelo seu povo.
A própria escolha da palavra “medicina” foi proposital, contribuindo para essa provocação reflexiva. “É uma oportunidade para visibilizar o conhecimento tradicional indígena e até debater sua relação com o conhecimento científico”, diz Barreto.
Auxílio dos seres da floresta
Manoel – ou seu Mandu, como também é chamado – conta que desde criança foi criado por velhos kumuã para se tornar, ele próprio, um kumu. A preparação é longa, requer cuidados na alimentação e muita transmissão de conhecimento na própria floresta. Quando completou 15 anos, passou por um ritual de iniciação com uma dieta rígida, a base de beiju molhado com a espuma da manicoeira (um subproduto da mandioca), palmitos de açaí e formigas. Também precisou fazer limpezas estomacais, utilizando um vegetal amargo chamado de sopodá, na forma de chá. E ainda aprendeu a tocar instrumentos rituais – o aprendizado sobre o Bahsessé acontece junto com o ensinamento de Bahsamori, que são danças, cantos e ritmos para grandes festas.
Na concepção dos Tukano, lembra o antropólogo indígena Barreto, o Bahsessé seria um mecanismo de comunicação com os seres Waimahsã, que detêm todo o conhecimento sobre a humanidade e estão presentes na floresta. O contato dos kumuã com os Waimahsã é acionado nesses rituais, que incluem a utilização de plantas como o paricá (com o qual se produz um pó denominado rapé).
“Uma vez perguntei a meu pai (o kumu Ovídio Barreto) se é possível aprender a fazer o Bahsessé na cidade e ele disse que não, porque na cidade não existe Waimahsã. Então, à medida em que se destrói a natureza, estamos destruindo a nossa escola”, lembra Barreto, reforçando a importância de apresentar o trabalho dos kumuã em uma cidade grande como Manaus. Um ofício que, infelizmente, está se reduzindo, diz o antropólogo. “São poucos, e tiveram sua formação antes da chegada de missionários em suas comunidades, o que contribuiu, de alguma forma, para afastar algumas pessoas deste ofício”.
Picada de cobra
A inspiração para o Centro de Medicina Indígena vem de uma experiência dolorosa, pela qual alguns indígenas já passaram no sistema de saúde pública brasileiro. Há 12 anos, uma sobrinha de Barreto levou uma picada de cobra em sua aldeia, que fica a uma semana de barco da sede do município, São Gabriel da Cachoeira. Por causa da gravidade da ferida, a menina teve que ser transferida para um hospital em Manaus, onde o médico alertou sobre a necessidade de amputação de sua perna.
Na época, o médico não autorizou a entrada de um kumu para acompanhar o tratamento da sobrinha de Barreto, de 12 anos, com o Bahsessé. Com a mediação do Ministério Público Federal, a autorização foi garantida. A menina não sofreu a amputação, se recuperou, e hoje tem 24 anos de idade.
“O médico dizia que estudou oito anos e que sabia o que era melhor para minha sobrinha, e que não permitiria rituais no hospital. Para mim foi uma grande discriminação”, lembra o antropólogo.
Sem entrar em um debate sobre se a menina foi curada com o tratamento complementar, o fato é que há uma portaria federal (a de número 2663, instituída em 2017) que regulamenta, entre outros, a facilitação de assistência de curadores indígenas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Os próprios kumuã que atendem no centro de medicina ficam à disposição do Distrito Especial Indígena (DSEI), em Manaus, para atendimento a indígenas em Manaus.
Hoje com 24 anos e vivendo em São Gabriel da Cachoeira, a sobrinha de Barreto, Luciany Trurriyo, lembra da experiência de quando foi internada em um hospital e lamenta a falta de compreensão dos médicos à época. “Espero que nenhum indígena passe o que eu passei e que minha história sirva de referência para os médicos de hoje”, diz a jovem, reforçando: “Para nós, os benzimentos são muito importantes, e os médicos precisam aprender isso: não fazer nada antes de perguntar para o paciente, e respeitar nossa cultura”.
Quanto ao Centro de Medicina Indígena, pode ser um primeiro passo para que a população em geral conheça os tratamentos tradicionais, uma vez que eles ainda não fazem parte, por exemplo, das 29 Práticas Integrativas e Complementares (PICs) oferecidas dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) como prevenção e recurso terapêutico para o tratamento de diversas doenças, como depressão e hipertensão. Entre as práticas incluídas estão a acupuntura, da medicina tradicional chinesa, e a ayurveda, da cultura indiana. Nenhuma, porém, advinda da sabedoria indígena.
Aberto a visitas
Além do atendimento com os kumuã, o Centro de Medicina Indígena comercializa ervas medicinais e artesanato. A proposta do centro é ampliar a produção de ervas e produtos derivados, em projetos que envolvam comunidades indígenas de São Gabriel da Cachoeira. O centro ainda realiza algumas atividades esporádicas, como exposições e rodas de conversa. O local abre diariamente de 9h às 16h e fica na rua Bernardo Ramos, 97, no Centro de Manaus. O acesso é gratuito. Acesse a página no Facebook para mais informações.
Assista ao vídeo de apresentação do Centro de Medicina Indígena Bahsrikowi´i, elaborado pelos próprios indígenas colaboradores da casa.