Jó Farah, presidente da ONG Mata Viva, luta para salvar o igarapé Água Branca. Segundo ele, o último curso d’água limpo de Manaus.
Antes usados para lazer, navegação e pesca, quase todos os 150 igarapés de Manaus estão totalmente poluídos. Especialistas dizem que pode levar até 30 anos para recuperá-los; alguns já são considerados “mortos”.
Os igarapés são importantes para a drenagem natural durante a estação chuvosa, dizem especialistas. Caso a questão não seja tratada de forma adequada, os pesquisadores alertam que os problemas de inundação só vão piorar com o tempo, sobretudo com o aquecimento global e as condições climáticas extremas dele decorrentes.
MANAUS — “O que mantém um igarapé limpo? Ele precisa de floresta, uma área de 100 metros de cada lado para manter as nascentes vivas”, diz Jó Farah, presidente da ONG Mata Viva, enquanto caminha com água até os joelhos naquele que diz ser o último igarapé limpo de Manaus. Com uma população de mais de 2 milhões de habitantes, Manaus é a cidade mais populosa da Amazônia brasileira, cercada pela maior floresta tropical do mundo e conectada por afluentes do imponente Rio Amazonas.
Antes usados para lazer, navegação e pesca, hoje quase todos os 150 igarapés da capital amazonense estão poluídos com lixo e outros rejeitos. Especialistas dizem que levará pelo menos 20 a 30 anos para que os cursos d’água se recuperem. Alguns, considerados “igarapés mortos”, dificilmente serão salvos, já que suas nascentes foram soterradas com lixo ou terra.
“Os igarapés mortos de Manaus morreram em silêncio. Mas este igarapé tem voz”, diz Farah, referindo-se ao Água Branca, que atravessa o bairro de Tarumã. Farah, jornalista de formação, mantém um site em que atualiza e monitora o estado do igarapé – uma forma de ativismo online que, segundo ele, mantém o curso d’água “vivo”.
Hoje, como resultado dessa iniciativa, o igarapé Água Branca atrai pesquisadores de toda a cidade e é monitorado remotamente pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que acompanha o nível de suas águas.
Crescimento desordenado
A população de Manaus cresceu rapidamente a partir dos anos 1970, com a abertura da zona franca e a criação de milhares de empregos nas fábricas. Sem opções de moradia, muitos migrantes construíram suas casas às margens dos igarapés da cidade.
Hoje, talvez o exemplo mais emblemático seja o do Igarapé Educandos, que deságua no Rio Negro, o maior de Manaus. Durante a estação seca, o Educandos esvazia e é possível ver todo o lixo que foi jogado nele. Outro é o Igarapé do 40, que no ano passado teve fotos publicadas na mídia local com o que foi descrito como um “tapete” de lixo flutuando sobre as águas.
“Além da beleza natural, estamos perdendo oportunidades de transporte e turismo por não cuidarmos adequadamente dos nossos igarapés”, diz Marcos Castro, professor de geografia da Ufam.
Os igarapés são importantes para a drenagem natural durante a estação chuvosa, dizem os especialistas. De acordo com Castro, se a questão não for tratada de forma apropriada, a inundação da cidade só piorará com o tempo, especialmente com o aquecimento global relacionado a condições climáticas extremas. “Isso levará a maiores problemas de saúde pública em longo prazo”, diz ele, citando doenças que proliferam com as águas sujas.
A afirmação de Castro encontra eco na realidade de Cristina Santos, que vive numa favela no bairro de Raiz, a uma hora de carro do centro de Manaus. Santos é uma entre milhares de manauaras que mora em condições precárias, sobre palafitas, nas margens dos igarapés da cidade.
Todos os anos, durante a estação chuvosa na Amazônia, de novembro a abril, seu barraco de madeira inunda quando o igarapé que passa junto à sua casa enche e transborda. “As coisas das pessoas ficam danificadas. É muito sujo e cheio de animais: cobras, sapos e ratos… Nossa saúde sofre e ficamos doentes”, diz Santos.
“Nós, moradores, precisamos estar mais conscientes e não jogar coisas no igarapé”, diz ela, apontando para as margens cobertas de lixo, “mas precisamos da ajuda do governo também”
Falta de moradia
Hoje com 2 milhões de habitantes, Manaus tem uma falta crônica de moradia a preços acessíveis. Sendo a capital mais rica da Amazônia, continua atraindo milhares de migrantes rurais de cidades do interior, bem como ondas recentes de haitianos e venezuelanos fugindo de conflitos civis. Muitos dos mais pobres acabam indo morar em favelas como a de Cristina, ou estabelecendo novas, que não têm infraestrutura adequada de esgoto e destinação do lixo.
“A cada ano, em Manaus, o número de invasões cresce”, diz Antonio Nelson de Oliveira, secretário municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade. “Isso causa grandes danos aos igarapés.”
Mas em muitos bairros pobres de Manaus, os habitantes têm preocupações mais urgentes do que manter os igarapés limpos. Na noite anterior à visita da Mongabay ao bairro de Cristina, segundo os moradores, houve tiros e rumores de que um jovem tinha sido morto numa disputa entre traficantes de drogas.
A capital do Amazonas sofre com uma guerra das drogas contínua, comandada de dentro das prisões da cidade e travada principalmente nas comunidades pobres, entre quadrilhas que disputam o controle dos mercados locais e das rotas de tráfico.
Em frente à favela em que Cristina vive, prédios para famílias de baixa renda, construídos por um programa do governo estadual para abrigar pessoas vivendo às margens dos igarapés, lançam esgoto doméstico, sem tratamento, direto na água.
“Esse é o cenário de Manaus”, diz Sergio Bringel, especialista em água do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Mas não são só os bairros pobres que poluem os igarapés. De acordo com os especialistas, a maior parte do esgoto de Manaus não recebe tratamento. “Fábricas e condomínios de luxo também poluem os igarapés”, diz Castro, da Ufam.
O resultado, diz Bringel, é a contaminação orgânica e química. “Isso leva à criação de novas bactérias. Vírus que podem matar crianças já foram detectados”, acrescenta.
Ameaças crescentes
Os igarapés poluídos também ameaçam os meios de sobrevivência, especialmente numa cidade que depende da água para muitas atividades de lazer, dizem os moradores. Dorio Farias, 59, dono de uma piscina natural que cobra ingresso no extremo norte da cidade, diz temer que a poluição chegue à sua piscina. “Não sei por quanto tempo conseguiremos ficar abertos aqui”, diz ele.
A apenas dez minutos de carro do igarapé Água Branca, a cachoeira Tarumã oferece um contraste aterrador. Usada pelos moradores de Manaus até os anos 1990 como opção de lazer, hoje está poluída, com mau cheiro e, de acordo com os moradores, é o lugar preferido dos criminosos para desovar cadáveres. “Eles construíram uma estrada diretamente sobre a nascente da cachoeira. Acho que em nenhum outro lugar do mundo fariam isso”, diz Farah.
Com a construção da estrada, diz ele, veio a formação de assentamentos irregulares na região do entorno, o que poluiu a água.
“Se um patrimônio histórico como este, com todo o seu potencial turístico, não sobrevive à cidade”, diz Farah, “que esperança tem o igarapé Água Branca?”