Novo estudo publicado na revista PNAS modelou os impactos da produção de soja sobre a conservação de espécies em diversos pontos do Cerrado. Por meio de análises em escala municipal, foi possível rastrear perdas de biodiversidade causadas por comerciantes da China e da União Europeia, que importam a soja brasileira para uso em ração animal.
Entre outros achados, a pesquisa constatou que o consumo de soja brasileira pelos países da UE foi especialmente prejudicial ao tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), que perdeu 85% de seu habitat para a soja no estado de Mato Grosso.
Estudo publicado na revista PNAS, de autoria de pesquisadores do Instituto Ambiental de Estocolmo, conseguiu estabelecer um elo entre a soja cultivada no Brasil e exportada para a Europa e seus impactos na biodiversidade do Cerrado.
O novo estudo, intitulado Linking global drivers of agricultural trade to on-the-ground impacts on biodiversity, usou três conjuntos de dados para estudar a relação entre a produção brasileira de soja, países consumidores, comerciantes de commodities e a perda de habitat no Cerrado — território que abriga uma biodiversidade excepcional, com cerca de 5% das espécies de todo o mundo.
Pela primeira vez, um estudo científico identifica quais países e comerciantes são responsáveis pela destruição do habitat e danos a 400 espécies do Cerrado.
“A biodiversidade é espacialmente heterogênea — uma análise em escala nacional nem sempre ajuda muito”, diz Jonathan Green, principal autor e pesquisador sênior do Instituto Ambiental de Estocolmo (SEI, na sigla em inglês), da Universidade de York. “Como temos um modelo preciso de análise da escala de produção, somos capazes de visualizar os impactos mais sutis: quem está envolvido no comércio, tanto nos países quanto nas empresas privadas”.
O Brasil é um dos maiores produtores e exportadores de soja do mundo – uma das commodities que, em conjunto, respondem por 70% do desmatamento na América Latina. O Cerrado perdeu mais da metade de sua área de 200 mil hectares para a agricultura, sendo a soja um dos principais impulsionadores. Embora a comunidade científica sustente há muito tempo que a produção de soja está contribuindo para a perda de biodiversidade, tem sido difícil determinar quanto e onde comerciantes e nações estão interferindo.
O estudo constatou que, embora o consumo doméstico seja responsável por 45% dos impactos sobre a biodiversidade da produção de soja no Brasil, os compradores estrangeiros ainda são responsáveis pela maior parte dos efeitos negativos sobre a biodiversidade. Dos consumidores de fora do Brasil, 22% do impacto foi atribuído à China e 15% à União Européia.
Abhishek Chaudhary, professor de Engenharia Ambiental do Instituto Indiano de Tecnologia em Kanpur, disse em entrevista que a vantagem de um estudo como esse — que analisa a biodiversidade em uma escala menor — é que mostra que não apenas o volume geral é importante, mas também onde especificamente as perdas estão ocorrendo e quem está contribuindo com elas.
Identificando impactos da soja sobre a biodiversidade
Quase toda a soja exportada pelo Brasil é usada para alimentação animal, o que significa que, como existe uma longa cadeia de produção entre os grãos brasileiros e as galinhas britânicas, grande parte desse uso é invisível aos olhos do consumidor. “Existe uma ideia ingênua entre os consumidores de que a soja é transformada em tofu”, diz Green. Mas, na verdade, a grande maioria da soja chega aos consumidores “embutida” em outros produtos — principalmente em carnes e laticínios. “Você não vê o que foi necessário para produzir carne. A soja não aparece na lista de ingredientes”.
Para remover esse obstáculo, os pesquisadores analisaram como a soja vai do Brasil para Europa na forma de ração animal. Ao analisar os dados, o estudo conseguiu demonstrar que países como Alemanha, Reino Unido e França têm um impacto muito maior na perda de biodiversidade do Cerrado do que a Holanda, embora os holandeses importem mais soja. Isso ocorre porque grande parte da soja importada pela Holanda é reexportada.
Os impactos também dependem do animal que está comendo a soja. Em países como Alemanha e Reino Unido, o impacto primário na biodiversidade ocorre através do consumo de carne de porco e aves, em comparação a lugares como Itália e Noruega, onde o principal consumo é de carne bovina e laticínios.
Os pesquisadores descobriram que o local onde se produz soja no Brasil também faz diferença nos impactos. O consumo de soja pelos países da UE, por exemplo, tem sido especialmente prejudicial ao habitat do tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), espécie que perdeu 85% de seu território para a soja no estado de Mato Grosso.
Segundo o principal autor do artigo, Jonathan Green, “esse tipo de conhecimento pode ser inestimável para ajudar empresas e países a obter fontes mais sustentáveis e investir em uma agricultura menos prejudicial ao meio ambiente”.
Estudos como esse são especialmente relevantes e úteis para a UE, que atualmente está buscando maneiras de regular o desmatamento “incorporado” nas cadeias de produção dos produtos agrícolas de origem internacional que seus países-membros importam.
Ciclo do setor privado
A pesquisa também analisa de perto os comerciantes de commodities que operam no Cerrado, dos quais apenas seis — Bunge, Cargill, ADM, COFCO, Louis Dreyfus e Amaggi — são responsáveis por mais da metade de todas as exportações de soja.
“Este artigo faz uma ponte entre o modelo da cadeia de produção de commodities e os impactos na biodiversidade causados por empresas”, escreve Keiichiro Kanemoto, professor do Instituto de Pesquisa em Humanidade e Natureza no Japão, que publicou extensivamente sobre a conexão entre impactos na biodiversidade e comércio global. Kanemoto ressalta que, embora pesquisas anteriores tenham mostrado a ligação entre padrões de consumo e ameaças à biodiversidade através do comércio internacional em nível nacional, este estudo é o primeiro a mostrar a ligação entre como os consumidores de uma nação e os comerciantes de commodities estão afetando a biodiversidade de uma área específica.
Os pesquisadores combinaram conjuntos de dados do Trase (que rastreia informações dos comerciantes de soja em nível municipal) com dados financeiros sobre o fluxo da soja e índices de biodiversidade que descrevem um habitat adequado para as espécies. Ao fazer isso, foram capazes de identificar não apenas os três municípios que sofreram as maiores perdas de biodiversidade endêmica entre 2000 e 2010, mas que essas perdas foram dominadas por três principais comerciantes: ADM, Cargill e Granol. A identificação precisa não apenas determina a responsabilidade, mas também permite ações direcionadas para a resolução do problema no nível nacional, da empresa ou do consumidor.
“O avanço mais empolgante relacionado a esses conjuntos de dados e modelos sofisticados é o nível de responsabilização que isso possibilita”, afirma o coautor do estudo Andrew Balmford, da Universidade de Cambridge. “Agora podemos começar a ver exatamente quais empresas e consumidores estão prejudicando espécies ameaçadas, e também onde, como e com detalhes sem precedentes”.
Referências:
Green, J. M., Croft, S. A., Durán, A. P., Balmford, A. P., Burgess, N. D., Fick, S., … & Young, L. E. (2019). Linking global drivers of agricultural trade to on-the-ground impacts on biodiversity. Proceedings of the National Academy of Sciences, 116(46), 23202-23208.
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