Três casais de mutuns-de-alagoas (Pauxi mitu) foram reintroduzidos em setembro numa área de 980 hectares de Mata Atlântica em Alagoas. Depois de três décadas extinta na natureza, vitimada pela caça e pelo desmatamento, a ave volta a ocupar seu habitat.
O feito é a culminância de um projeto iniciado em 1979, quando um empresário resgatou alguns dos últimos exemplares da espécie de uma área que estava prestes a ser desmatada. Mantidas em cativeiro desde então, essas aves são as matrizes dos quase cem mutum-de-alagoas hoje existentes no Brasil.
As seis aves soltas na natureza estarão sendo monitoradas por GPS. Mas o desafio da sobrevivência na selva será inteiramente delas: sozinhas, terão que encontrar alimento, reproduzir-se e manter-se a salvo de predadores. Caso seja bem-sucedidas, o plano é introduzir mais três casais na natureza por ano até 2024.
Salvo do fim por um triz, desaparecido de seu habitat há pelo menos três décadas e alvo de um esforço conjunto de mais de uma dezena de instituições, o mutum-de-alagoas (Pauxi mitu) agora encara um teste de sobrevivência na selva.
Três casais foram reintroduzidos há um mês e meio numa área de 980 hectares de Mata Atlântica em Alagoas e põem à prova a manutenção de seus instintos para achar alimento, abrigar-se, reproduzir-se e manter-se a salvo de predadores por conta própria (mas com todos os seus movimentos acompanhados à distância por GPS).
A ave protagoniza o primeiro caso na América Latina de reintrodução de um animal extinto na natureza. Segundo Luís Fábio Silveira, curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, há “pouquíssimos casos” semelhantes no mundo. Entre eles, “o falcão-das-ilhas-maurício [Falco punctatus], o condor-da-califórnia [Gymnogyps californianus], o corvo-havaiano [Corvus hawaiiensis] e o furão-de-pés-negros [Mustela nigripes]”.
O caminho até este feito inédito começou há quatro décadas, graças à obstinação do empresário Pedro Nardelli, que mantinha um criadouro científico de aves em Nilópolis (RJ). Em 1979, o aficionado viajou para a região metropolitana de Maceió atrás de exemplares desse galináceo de cor preta e bico vermelho, também conhecido como mutum-do-nordeste. Descrito pela primeira vez no século 17 pelo naturalista alemão George Marcgraf – incluindo uma menção a seu uso culinário, um dos fatores por trás de sua dizimação –, a espécie já quase não era mais vista em seu território original, uma pequena área de Mata Atlântica entre Alagoas e Pernambuco. Além da caça, a ave também havia sido vitimada pelo avanço dos canaviais na região.
Ironicamente, os cinco mutuns que Nardelli conseguiu recuperar haviam sido capturados, depois de meses de tentativas, em uma área florestal que daria lugar a uma nova usina sucroalcooleira, no ritmo acelerado de desmatamento imposto pelo Proálcool, programa nacional voltado a estimular a produção de etanol de cana. “Se o Nardelli viesse dois anos depois, já não tinha [mais mutuns]”, comenta o engenheiro civil Fernando Pinto, que na época trabalhava no empreendimento e que viria a ser o principal parceiro do criador na missão de salvamento. “O destino mandou.”
De volta à Baixada Fluminense, Nardelli conseguiu fazer com que, dos cinco mutuns recuperados, um macho e duas fêmeas se reproduzissem. O trio daria origem à única linhagem responsável por levar adiante o DNA do animal. Na ocasião, as viagens de Pinto ao Rio de Janeiro se tornaram mais frequentes. “Passávamos o fim de semana literalmente dentro do viveiro, falando só de passarinho”, recorda o engenheiro. “Aquele criadouro, talvez o maior da América Latina, era a minha Disneylândia.”
Enquanto testava a constituição de um plantel minimamente seguro, Nardelli promoveu o cruzamento com espécimes de mutum-cavalo (Pauxi tuberosa) para tentar garantir uma espécie de backup do DNA da ave quase extinta. No processo, acabaram se perdendo as planilhas que identificavam os indivíduos geneticamente puros e os híbridos. A equipe do professor Mercival Roberto Francisco, da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), entrou em campo para separar o joio do trigo: em 2008, foi dado início a um programa de resgate genético da espécie, usando-se de análises minuciosas para diferenciar as aves puras das híbridas.
Professor de conservação ex-situ (fora do habitat) e manejo de fauna, Francisco mantém desde então uma tabelinha com o criador Roberto Azeredo, da Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre (Crax), que há 20 anos herdou parte do plantel de Nardelli. O desafio de ambos, agora, é aumentar a diversidade genética dos exemplares puros de mutum-de-alagoas. Para isso, Azeredo sugere os casais com maior diferença de DNA para que se cruzem – ou melhor, se casem, já que a ave é normalmente monogâmica, ou seja, os pares duram até que um dos indivíduos morra.
Essa seleção é um ponto central no projeto de reintrodução do mutum-de-alagoas na natureza, considerando os riscos de consanguinidade de uma linhagem que descende de apenas três indivíduos.
De volta ao habitat
Em 1996, já pensando em criar condições para o retorno da ave à natureza, Fernando Pinto fundou o Instituto para a Preservação da Mata Atlântica (IPMA). A ONG vem coordenando trabalhos de educação ambiental nas comunidades e fazendas da Zona da Mata nordestina e buscando sensibilizar os usineiros, detentores dos maiores remanescentes de vegetação na região, a conservar ou recuperar o habitat do mutum-de-alagoas. O engenheiro contabiliza 9 mil hectares convertidos, ou em processo de conversão, em Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs).
Uma dessas áreas é a RPPN Mata do Cedro, no município de Rio Largo (AL), fragmento de floresta localizado dentro da área da antiga Usina Utinga Leão, hoje só Utinga – uma produtora de açúcar e etanol em processo de recuperação judicial. O lugar foi eleito pelos pesquisadores para a reintrodução do mutum-de-alagoas na natureza pela sua extensão (a área de mata deveria ter no mínimo 500 hectares) e também pela ausência de caçadores.
Para se certificar de que era um ambiente seguro à ave, o Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA) e o Batalhão de Polícia Ambiental de Alagoas fizeram incursões diárias de fiscalização na área por dois anos. “Não houve nenhuma ocorrência de caça ilegal, mas não podemos baixar a guarda. No Brasil, especialmente no Norte e no Nordeste, existe uma cultura muito forte da caça”, constata Epitácio Correia, gerente de Fauna, Flora e Unidades de Conservação do IMA.
Em 19 de setembro deste ano, seis exemplares de mutum-do-nordeste viajaram de avião desde Contagem (MG), onde fica o criadouro do Crax, com destino a Alagoas. Pela primeira vez em três décadas, a espécie reencontrava seu habitat. As aves inicialmente foram levadas a um viveiro de aclimatação, construído dentro de um fragmento de Mata Atlântica, para então serem soltas de modo definitivo no dia 25.
Os pesquisadores vão monitorar literalmente cada passo dos seis exemplares recém-soltos. Se os mutuns tiverem sucesso no desafio de escapar de inimigos naturais – como cachorros-do-mato e pequenos felinos – e se mostrarem aptos a gerar descendentes, o plano da força-tarefa é colocar mais três casais na natureza por ano até 2024. Paralelamente, segue a reprodução em cativeiro – existem hoje cerca de 90 representantes da espécie em viveiros.
A usina também cedeu uma área para a construção de um centro de educação ambiental, a ser inaugurado em janeiro, que levará o nome de Pedro Nardelli. Um quarto casal de mutuns será mantido ali, em cativeiro, à vista principalmente de crianças e adolescentes.
Nardelli não sobreviveu para ver a concretização do seu sonho. Morreu em agosto, mês em que inicialmente estava programada a reintrodução. Mas pôde ao menos prestigiar o ato em que o governador Renan Filho oficializou o Pauxi mitu como ave-símbolo de Alagoas, em 2017.
Assista ao vídeo da soltura:
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