As estradas brasileiras seguem apresentando enormes riscos à biodiversidade em todo o país, causando a morte de mais de 475 milhões de animais a cada ano, segundo estimativas.
Apesar desse impacto, um estudo aponta que a qualidade e a conectividade dos habitats de várias espécies de mamíferos podem influenciar a dinâmica da vida selvagem mais do que a própria proximidade entre elas e as rodovias.
Em alguns casos considerados inusitados, animais que apresentam alto índice de atropelamento podem ser abundantes em regiões próximas a grandes vias, beneficiando-se da carcaça de indivíduos, entre outros recursos disponíveis.
A pesquisa sugere que as interações das espécies com as estradas são únicas e variadas. Ao mesmo tempo, indica a melhora da qualidade do habitat e estruturas de proteção, como passagens de fauna, como soluções para conservar o bioma.
Segundo dados do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE), da Universidade Federal de Lavras (Ufla), cerca de 475 milhões de animais são atropelados nas rodovias brasileiras a cada ano, o que afeta diferentes ecossistemas.
A mesma entidade estima que 430 milhões desses indivíduos são vertebrados de pequeno porte — como aves, sapos, cobras e lagartos. Diante dessa estatística, é plausível que as autopistas do país sejam vistas como a principal causa de impacto à vida de diferentes espécies. No entanto, um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) revelou que a qualidade dos habitats e a ligação entre seus fragmentos de vegetação podem afetar a vida selvagem até mais do que as estradas, em alguns casos.
A pesquisa foi o tema do doutorado do biólogo Vinícius Alberici, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, em Ribeirão Preto. Segundo o pesquisador, o trabalho surgiu da necessidade de se “preencher uma lacuna de conhecimento sobre como as populações de mamíferos respondem às estradas, [sobretudo] em paisagens agrícolas no Cerrado”, disse, em entrevista à Mongabay.
“O principal objetivo foi investigar como a proximidade das estradas influencia na abundância local das espécies, considerando os efeitos da paisagem — ou seja, a qualidade e a conectividade do habitat.”
O estudo avaliou a abundância relativa de 12 espécies de mamíferos de médio e grande porte, considerando a proximidade entre os locais que habitam e diferentes estradas pavimentadas, com um volume variado de tráfego. Inicialmente, elas foram divididas em dois grupos: as espécies com “altas” e “baixas” taxas de atropelamento.
A primeira lista inclui animais como o tatu-peba (Euphractus sexcinctus), o cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), o tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla), a anta (Tapirus terrestris) e a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris).
A outra classificação, que agrupou animais que apresentam índices inferiores de acidentes em pistas rápidas, conta com o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), a jaguatirica (Leopardus pardalis), o tatu-canastra (Priodontes maximus), o queixada (Tayassu pecari), o cateto (Pecari tajacu) e a onça-parda (Puma concolor).

Segundo Alberici, as espécies foram escolhidas para a definição de alguns parâmetros. À reportagem, ele disse que a seleção buscou comparar como seres mais ou menos suscetíveis aos atropelamentos se relacionavam com o ambiente, levando em conta a distância entre seus habitats e os trechos de rodovia.
Para o ambientalista, esse tipo de mapeamento é fundamental, dado que os indivíduos observados têm papel crucial na dinâmica ecológica. “Muitos deles são importantes para a conservação e vivem sob risco de extinção”, disse. “É o caso do tamanduá-bandeira, da anta, do lobo-guará, do tatu-canastra e do queixada.”
O ‘raio-x’ das estradas
O trabalho foi realizado durante a estação seca, que vai de abril a setembro, em duas áreas rurais biodiversas no estado do Mato Grosso do Sul. “Essas regiões estão próximas a duas estradas pavimentadas: a MS-040, de baixo volume de tráfego, e a BR-267, de alto volume”, disse Alberici. “Usamos armadilhas fotográficas (camera traps) para monitorar a presença e a abundância dos animais em 60 fazendas ao longo de cada rodovia. As câmeras foram instaladas em fragmentos de vegetação nativa, cobrindo um gradiente de distâncias de até 10 quilômetros das rodovias.”
Uma vez separadas em grupos, as espécies e suas características de ocupação foram analisadas a partir de “modelos ecológicos”, responsáveis por medir o impacto dos parâmetros — a distância entre animais e rodovias, a qualidade do habitat e o nível de conexão entre eles — no número total de indivíduos, bem como na suscetibilidade dos seres à morte por atropelamento.

Entre as principais descobertas, o trabalho do biólogo detectou que a proximidade entre os habitats e trechos de vias rápidas impactou negativamente a abundância de apenas duas espécies observadas — o tamanduá-bandeira e a capivara. O estudo também revelou um padrão oposto: o cachorro-do-mato, segundo os dados obtidos, é mais abundante em áreas próximas a estradas.
“Observou-se que a maioria das espécies foi mais influenciada pela qualidade do habitat e pela conectividade [entre diferentes trechos biodiversos] do que por estarem próximas a essas áreas de rodovias”, disse Alberici. “O estudo concluiu que as respostas das espécies às estradas são idiossincráticas, e dependem de [outras] características — como história de vida, comportamento individual e preferências de habitat.”
Descobertas inesperadas
A inferência dos dados relativos ao cachorro-do-mato revelou, nas palavras do autor, algo “surpreendente”. Mesmo listado entre as espécies com alta taxa de atropelamento, o mamífero aparece em maior quantidade em locais próximos às mesmas rodovias que ameaçam sua existência.
A pesquisa desvendou esse quebra-cabeça: apesar do elevado risco de se acidentar, essa espécie pode se “beneficiar” de recursos disponíveis às margens das estradas, como as carcaças de outros animais, por exemplo. Alberici disse, no entanto, que esse é apenas um pequeno recorte do modo de vida desses indivíduos — e que futuras interpretações são incertas e cheias de nuances.
“Não sabemos como isso pode impactar suas populações no longo prazo. Além disso, há algo surpreendente: a maioria das espécies não mostrou uma resposta clara à proximidade às estradas, indicando que outros fatores — como a própria [e já citada] qualidade do habitat — podem ser mais importantes para explicar a variação dessa abundância”, disse.

Arnaud Desbiez, zoólogo e presidente do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas), cita o que, em sua visão, são outros pontos de atenção. Para o especialista, o comportamento do tamanduá-bandeira também se destaca por não ser alterado de forma significativa pela presença do tráfego de veículos. “Embora menos que o esperado, [detectou-se que] esses animais atravessam as estradas.”
Desbiez também fala sobre a falta de padrão no deslocamento do animal, outro fator observado no estudo. “Essa espécie não usa passagens de fauna se não houver cercamento [estruturas instaladas para impedir o acesso de animais à pista rápida]. Atravessam de forma aleatória”, disse à Mongabay.
Para a bióloga Fernanda Abra, pesquisadora de um centro de conservação e sustentabilidade vinculado ao Zoológico Nacional Smithsonian em Washington, nos Estados Unidos, o trabalho de Alberici é “extremamente importante” para a ciência ambiental brasileira.
“Foram realizadas diversas pesquisas sobre os impactos diretos das rodovias na fauna, como a quantificação do número de indivíduos mortos por atropelamentos”, disse, em entrevista. “Até agora, não tínhamos dados sobre a qualidade dos habitats adjacentes às rodovias [e como eles] podem influenciar a dinâmica de mamíferos silvestres de médio e grande porte, especialmente de espécies ameaçadas de extinção.”
De acordo com a bióloga, o estudo “inova” ao revelar diferentes nuances sobre a abundância de espécies em áreas sensíveis. “O trabalho é particularmente relevante ao demonstrar como a perda e a fragmentação do habitat podem alterar significativamente a dinâmica da fauna”, disse. “Além disso, em relação a rodovias mais antigas, como na BR-267, os impactos acumulados ao longo do tempo na paisagem também se refletiram nos resultados da pesquisa.”

Alberici diz que a investigação também busca auxiliar trabalhos de conservação da biodiversidade em áreas agrícolas pelo país. Baseando-se nos aspectos do estudo, ele diz que os resultados sugerem que medidas de mitigação — como a instalação de cercas e corredores de fauna — devem ser “priorizadas” para espécies mais sensíveis à perda de população em função dos atropelamentos.
“Melhorar a qualidade do habitat e a conectividade na paisagem [é fundamental] para sustentar populações de mamíferos. Essas descobertas podem orientar políticas de conservação e planejamento de infraestrutura para reduzir os impactos das estradas sobre a vida selvagem.”
Animais e estradas no Brasil: muito mais do que atropelamentos
Imagem do banner: Tamanduá-bandeira caminha em área do Cerrado próxima a um trecho de rodovia no Mato Grosso do Sul. Foto cedida por Vinicius Alberici.