Pesquisadores redescobriram populações de antas na Caatinga, onde a espécie era considerada extinta desde 2012, revelando que pequenos grupos resistiram à caça e à perda de habitat.
As expedições confirmaram a presença do maior mamífero terrestre brasileiro por meio de vestígios e relatos, reforçando a importância do conhecimento local e da conservação ambiental.
A redescoberta da anta destaca a urgência de proteger a Caatinga; menos de 9% do bioma estão hoje protegidos por unidades de conservação.
Em março de 2025, pesquisadores brasileiros percorreram diferentes regiões da Caatinga em busca de indícios da presença da anta (Tapirus terrestris). Embora gravuras rupestres na Serra da Capivara, no Piauí, revelem que a espécie habita o bioma há pelo menos 10 mil anos, em 2012 ela foi considerada extinta na região, devido à ausência de dados confiáveis.
Essa conclusão incerta, no entanto, foi revista após três expedições de campo realizadas entre 2023 e 2025 por cientistas da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira (Incab), ligada ao IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas. Populações da espécie foram encontradas em áreas da Caatinga que se estendem pelo norte de Minas Gerais, oeste da Bahia e sul do Piauí, e agora a redescoberta do maior mamífero terrestre do país em seu território ancestral marca um avanço significativo nos esforços voltados à conservação da espécie, ameaçada de extinção.
Patricia Medici, engenheira florestal e coordenadora de pesquisas do IPÊ, conta que, em 2012, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) organizou um workshop voltado à avaliação das espécies de ungulados [mamíferos terrestres com cascos nas patas, como antas e veados] ameaçados no país, atividade que fez parte do processo de atualização da lista vermelha nacional, instrumento oficial que classifica o risco de extinção de espécies no território brasileiro. Naquela ocasião, foram incluídos ungulados como a anta, a queixada (popularmente chamada de porco-do-mato) e diferentes representantes da família dos cervídeos.
Durante o encontro, foi decidido que seriam atribuídos status específicos por bioma, e, entre os selecionados, a anta foi analisada separadamente nos contextos da Mata Atlântica, Pantanal, Amazônia, Cerrado e Caatinga.

“Nossa equipe atua na pesquisa e conservação da anta brasileira desde 1996, e já vínhamos coletando informações em todos os outros biomas onde a espécie ocorre”, conta Patrícia. “ Apesar de termos participado do processo de tomada de decisões — eu estava lá, fui parte disso — acabamos fazendo essa listagem e classificando o animal como regionalmente extinto com base em pouquíssimas evidências. Seria muito importante que, em algum momento, pudéssemos ir até a Caatinga e investigar se esse animal realmente não está ali.”
Ela ficou com esse assunto atravessado por 11 anos, até que, em 2023, tiveram condições, inclusive financeiras, de realizar a primeira expedição à Caatinga. Em relação ao que teria levado ao sumiço da espécie no bioma, Patrícia acredita que a anta talvez nunca tenha desaparecido: “Pode ser que ela sempre esteve lá, em pequenas populações, com densidades muito baixas.”
“Muitas das pessoas que entrevistamos ao longo deste trabalho foram bastante categóricas ao afirmar que a anta sempre esteve na Caatinga, que nunca houve extinção. Mas há dois fatores relevantes: um é que esse animal nunca ocorreu ali em altas densidades, ou seja, nunca tivemos grandes populações de anta na Caatinga. Por outro lado, é provável que tenham ocorrido, sim, reduções dessas populações, que já eram pequenas, em função da intensa caça na região e da perda de habitat”, afirma a coordenadora, ao frisar que a Caatinga vem sendo bastante desmatada nas últimas décadas.
Nas expedições que o Incab realizou, o animal não foi avistado; contudo, em termos de vestígios, foram documentados relatos, pegadas, fezes e até um registro da anta feito por armadilha fotográfica no oeste da Bahia.

Apoio das comunidades locais
O envolvimento das comunidades locais, especialmente a escuta das pessoas mais velhas que ainda guardam memória desse animal, foi fundamental no decorrer das investigações. Maria da Glória de Jesus, trabalhadora rural aposentada, e João Pereira Leite, comerciante, ambos moradores nos arredores de Carinhanha, na Bahia, ajudaram a equipe na busca pela anta durante a última expedição.
“Eu achava normal ver as antas por aqui, mas, depois que soube que é um animal em extinção, fiquei feliz em saber que ainda existe na nossa região, já que desapareceu em outras partes do Brasil”, enfatiza seu Dão, como é conhecido o comerciante. Quanto à presença dos animais pelas imediações, ele comenta que isso é costumeiro para os moradores. Geralmente, quando sai de manhã cedinho, encontra as antas circulando pela região em busca de jenipapo e outras frutas da época.
“Eu via dois tipos de antas por aqui: uma mais escura, menorzinha, e a outra maior, mais clara. Pensei que fossem duas espécies diferentes. Foi então que as pesquisadoras me tiraram essa dúvida, explicando que se tratava do macho e da fêmea.”
Nas recordações de dona Glória, lá pelos idos de 1950, quando o desmatamento era raro e o trânsito de pessoas escasso, as antas aproveitavam a calmaria da natureza e dos riachos na região. Com o passar do tempo, à medida que a ocupação humana avançava e o capim era plantado no entorno, a presença do animal foi diminuindo.
O cenário começou a mudar somente em 2008, quando dona Glória e outros moradores do assentamento rural onde vive iniciaram a fiscalização de 70 hectares de Áreas de Preservação Permanente (APPs) às margens dos riachos, para evitar novos desmatamentos. Esse trabalho, que segue até hoje, resultou na recuperação de 95% dessas áreas, segundo a moradora.
Foi então, em 2014, que as antas voltaram a se aproximar. “A conservação das APPs e o árduo trabalho de reassentamento feito pela comunidade ajudaram no retorno das antas. Se não fossem esses cuidados com o meio ambiente e sua revitalização, não veríamos mais esses animais por aqui”, conta ela, que por enquanto não vê antas em outras agrovilas vizinhas ao seu assentamento.

Jardineira da biodiversidade
Apelidada de “jardineira das florestas”, a anta é um animal herbívoro cuja dieta inclui cerca de 50% a 60% de frutos, ingeridos junto com as sementes. Essas sementes passam pelo trato digestivo do animal, que quebra a dormência das sementes, estimulando a germinação e o desenvolvimento da vegetação.
“É um animal que se desloca a grandes distâncias, com áreas de uso de em média 8 km². Costumamos associar esse espaço ao equivalente a 800 campos de futebol, que corresponde ao território necessário para o animal encontrar todos os recursos alimentares: água, abrigo e tudo o que precisa para sobreviver e se manter”, detalha Patrícia, acrescentando que a anta vai “brincando” e jardinando a biodiversidade das plantas do habitat.
A pesquisadora menciona que a ausência desses animais leva à criação de uma floresta menos rica. Sabendo que em algumas áreas da Caatinga o bicho nunca deixou de existir, isso indica que essas regiões conseguiram, mesmo com as ameaças, manter um pouco mais da sua integridade em termos de biodiversidade.
Atualmente, as populações de antas estão mais a oeste do bioma, na transição entre a Caatinga e o Cerrado — Bahia, Piauí e Minas Gerais. “No centro da Caatinga, sim, elas deixaram de existir. Por exemplo, na Chapada Diamantina havia antas e, ao longo dos últimos 400 anos, esses bichos desapareceram.”
Entre os biomas que mais oferecem riscos à anta, a Caatinga se destaca por ter um habitat semiárido, pouco propício à manutenção de grandes populações da espécie. Patrícia aponta a Mata Atlântica e o Cerrado como os biomas em pior situação para a conservação da anta, pressionados principalmente pelo desmatamento e pela agricultura em larga escala. Por outro lado, o Pantanal reúne os recursos necessários para sustentar populações saudáveis da espécie.
Sem estimativa, até o momento, do número de indivíduos encontrados na Caatinga, o trabalho da expedição se concentrou exclusivamente em mapear e identificar a presença ou ausência do animal. A próxima etapa será, em linhas gerais, levar essas informações e discuti-las com os demais profissionais do ICMBio, para então definir o que será prioritário em termos de conservação em nível nacional.

Caça às antas e a vulnerabilidade ambiental da Caatinga
Osmar Barreto Borges, analista ambiental do ICMBio, elucida que o nome “anta” remonta ao árabe lamta, nome de uma tribo do norte da África que produzia escudos de guerra com o couro de um antílope do deserto, igualmente chamado lamta. “Tapir”, como a espécie é chamada em muitas línguas modernas, tem origem no tupi.
Na Caatinga, a caça ao animal é uma prática que se mantém ativa e preocupa os pesquisadores, pois ocorre intensamente em várias regiões que ainda preservam ambientes propícios à fauna de maior porte. “O couro da anta é muito rígido e resistente, não sendo adequado para a fabricação de calçados ou utensílios mais refinados. Presume-se que a anta seja caçada principalmente por sua carne. Tradições enraizadas, ausência de fiscalização ambiental e a fome são fatores que perpetuam essa atividade ilegal”, pontua Osmar.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente (MMA), menos de 9% da Caatinga está, hoje, sob alguma forma de proteção legal. Dessas áreas, apenas cerca de 2% são de proteção integral, com restrições mais severas à ação humana. O analista observa que a percepção da Caatinga como uma região pobre, seca e de pouca relevância para a conservação da biodiversidade vem sendo desconstruída nas últimas décadas, com a ampliação e difusão da pesquisa científica na região. Ele afirma que a redescoberta da anta no bioma “pode ajudar a chamar a atenção para os processos ecológicos do bioma.”
Roberta Montanheiro Paolino, especialista em conflitos humano-fauna e professora da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, acrescenta que a Caatinga possui um histórico antigo de carência de apoio institucional, o que faz com que muitas pessoas dependam da caça para sobreviver. Por isso, é urgente investir na geração de empregos e na conservação do ecossistema, incluindo o solo e as águas. Nesse sentido, com mais oportunidades de renda, os conflitos entre pessoas e a fauna silvestre tendem a diminuir.

“A manutenção da qualidade das florestas, assim como dos corredores ecológicos, é imprescindível para que a anta não precise buscar alimentos fora do seu habitat natural (como nas roças dos moradores, causando prejuízos socioeconômicos). É preciso fomentar ações que auxiliem os agricultores a proteger suas lavouras e a conservar as áreas nativas”, defende Roberta.
Iedo Rodrigues Vitor, técnico do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado da Bahia (Inema), apoiador da expedição em busca das antas da Caatinga no estado, descreve que a experiência evidenciou, mais uma vez, o papel estratégico das unidades de conservação como aliadas no esforço de conhecer e proteger a biodiversidade. O apoio se deu no território da Área de Proteção Ambiental (APA) Rio Preto, que abrange mais de 1,1 milhão de hectares e reúne zonas de transição entre o Cerrado e a Caatinga.
“A APA do Rio Preto tem se revelado um território importante pela sua extensão e, sobretudo, por conservar ambientes que ainda abrigam espécies ameaçadas”, sintetiza Iedo, sem esquecer que o envolvimento das comunidades locais, a escuta dos saberes regionais e a cooperação entre instituições públicas e pesquisadores foram indispensáveis para esse resultado. “Isso reforça o valor de manter viva a conexão entre gente, território e natureza.”
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Imagem do banner: Anta-brasileira (Tapirus terrestris). Foto: Allan Hopkins via Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)