Em Mato Grosso, a monocultura substituiu grandes áreas da floresta amazônica e desencadeou mudanças nos padrões climáticos, incluindo secas severas e chuvas escassas.
Povos tradicionais estão buscando combater os impactos das lavouras de soja na região criando bancos de sementes comunitários e reflorestando terras degradadas com espécies nativas da Amazônia.
Especialistas dizem que essas iniciativas podem desempenhar um papel fundamental nos esforços de restauração enquanto o país luta para reabilitar 60 mil quilômetros quadrados de terras desmatadas até 2030 e o agronegócio enfrenta demandas globais para reverter os danos que infligiu à Amazônia.
Os bancos de sementes também podem ajudar a restaurar a biodiversidade perdida no bioma, preservar espécies centrais para as culturas indígenas e mitigar as mudanças climáticas, local e globalmente.
COLÍDER, Mato Grosso — Não faz muito tempo, o terreno que Maria Ivonete de Souza herdou era estéril, com o solo endurecido por anos de pecuária. Quando a família chegou ao sul da Amazônia, quatro décadas atrás, seu pai rapidamente retirou a densa floresta tropical para abrir caminho para o pasto.
“Ele limpou tudo à mão, com uma serra e um machado”, diz Maria Ivonete na varanda de sua casa de madeira nos arredores empoeirados de Colíder, a cerca de 632 quilômetros ao norte da capital de Mato Grosso. “É horrível estar falando sobre isso. Porque estou me lembrando de coisas que me incomodam profundamente hoje.”
Agora, décadas mais tarde, Maria Ivonete está lutando para voltar o relógio no tempo e reverter a destruição na região. Em uma tentativa de reflorestar, ela plantou sementes de espécies nativas da Amazônia, que haviam começado a desaparecer à medida que a produção de soja e milho se expandia a um ritmo frenético.
“Se as pessoas soubessem como é difícil plantar árvores, nunca sonhariam em cortá-las”, aponta Maria Ivonete, que lidera a organização comunitária Coletivo Água Vida. “Aqui, queremos fazer as coisas de forma diferente. Queremos restaurar a saúde da floresta.”
Uma parte fundamental desse sonho é construir um banco de sementes comunitário que possa ajudar a reabilitar a vegetação nativa e proteger a biodiversidade que está sendo dizimada pela monocultura em Mato Grosso, o maior produtor de grãos do Brasil. Tendo isso em mente, Maria Ivonete ajudou a organizar eventos que reúnem agricultores familiares, povos indígenas e comunidades tradicionais da região para que eles possam trocar sementes e conhecimento.
“É tão importante para nós ter essas sementes”, diz ela, apontando para um conjunto de sementes em tons de marrom, amarelo e vermelho. “E temos que compartilhar, para que essas sementes não desapareçam.”
Iniciativas locais de bancos de sementes estão ganhando força em todo o Brasil – e estão emergindo como uma ferramenta fundamental para o reflorestamento, enquanto o país busca cumprir sua promessa de reabilitar 60 mil quilômetros quadrados de terras desmatadas e degradadas até 2030. Os defensores dizem que plantar sementes – em vez de mudas – pode ser uma maneira mais barata, rápida e eficiente de restaurar florestas dizimadas, ajudando o Brasil a atingir sua meta.
Os cientistas também afirmam que a restauração florestal por meio de sementes pode ajudar a recuperar parte da biodiversidade que está sendo perdida pelo desmatamento. Ao contrário dos bancos de sementes do governo, que armazenam amostras para preservação histórica, os bancos comunitários coletam sementes, trocam variedades e plantam uma mistura delas, em uma tentativa de imitar, o mais próximo possível, a diversidade da floresta.
Se aplicado em larga escala, o reflorestamento por sementes nativas pode desempenhar um papel crucial na compensação de parte da destruição que varreu a Amazônia nos últimos anos, ao mesmo tempo em que evita uma crise climática que já está atingindo as comunidades locais, de acordo com Luciana Gatti, pesquisadora-sênior de mudanças climáticas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“A chave é plantar árvores, árvores e mais árvores”, diz ela. “O reflorestamento é nossa única saída.”
“Uma fábrica de chuva”
Em Mato Grosso, as armadilhas da agricultura estão por toda parte. Nas esquinas, outdoors imponentes oferecem novas marcas de sementes, pesticidas e tratores. Os políticos fazem campanha com promessas de projetos ousados de infraestrutura destinados a impulsionar a produção de soja e milho. As cidades que eram manchas no mapa há algumas décadas estão crescendo, alimentadas pela fome insaciável do mundo por commodities.
Imagens de satélite visualizadas pelo Google Timelapse mostram a perda de florestas no Mato Grosso entre 1983 e 2022.
Desde o início dos anos 1980, a área ocupada pela agricultura e pela pecuária no Brasil saltou 50%, de acordo com um estudo recente do MapBiomas. Mas os cientistas dizem que esse crescimento vertiginoso teve um custo alto para o clima: ondas de calor frequentes, padrões de chuva irregulares e fortes secas se tornaram comuns na Amazônia nos últimos anos.
“A floresta é como uma fábrica de chuva”, diz Gatti. “Ela movimenta a água e também abaixa a temperatura. Por isso, desempenha um importante papel no clima.”
Os impactos das mudanças climáticas na Amazônia atingiram novas proporções este ano, quando uma estiagem histórica secou rios importantes, dizimou culturas de subsistência, restringiu o fornecimento de energia hidrelétrica e isolou comunidades ribeirinhas, deixando muitas sem alimentos e remédios. Em uma visita recente à região, a devastação ficou evidente quando o carro da reportagem passou por riachos e campos secos após semanas sem chuva.
A agricultura em larga escala, que consome 70% do abastecimento de água doce do Brasil, é a principal culpada por essa crise climática cada vez mais profunda, segundo Gatti. “O problema é esse modelo de plantar um mar de soja. A monocultura está destruindo o clima.”
O impacto da monocultura é duplo, explica a pesquisadora do Inpe. Por um lado, menos árvores significam que a floresta é capaz de reciclar menos água de volta para a atmosfera, resultando em menos chuvas. A floresta então fica mais seca, o que diminui sua capacidade de regular as temperaturas. Pesquisadores associaram anomalias de temperatura na Amazônia e no Cerrado a eventos de desmatamento a até 50 km de distância.
O ideal seria reflorestar em massa e avançar para um modelo agroflorestal, em que espécies nativas crescem ao lado de outras culturas. “Dessa forma, você tem produção agrícola e, ao mesmo tempo, preserva árvores que ajudarão a fazer chuva e reduzir as temperaturas”, explica Gatti.
Os impactos climáticos do desmatamento vão muito além do Brasil também. O vapor do dossel da floresta amazônica é responsável por cerca de um quinto do oxigênio liberado na atmosfera a cada dia. A floresta tropical também é o maior sumidouro de carbono do mundo e uma enorme fonte de emissões potenciais, retendo cerca de 123 bilhões de toneladas de carbono. Quando as árvores são cortadas, a destruição causa um grande impacto no clima global, porque mais dióxido de carbono é liberado e menos é absorvido.
Como resultado, os cientistas insistem que a restauração de florestas nativas, no Brasil e em outros lugares, representa uma das melhores esperanças do planeta para mitigar as mudanças climáticas, tanto local quanto globalmente. Em longo prazo, pesquisas sugerem que essas áreas restauradas na Amazônia podem ajudar a regular as chuvas e evitar que rios importantes sequem.
“As espécies que têm o poder de restaurar o equilíbrio são as espécies nativas desse ambiente”, acrescenta Gatti. “E quanto mais crescerem, mais água elas jogarão na atmosfera.”
“Quanto mais espécies, melhor”
Os cientistas também alertam que as espécies nativas da Amazônia estão desaparecendo – e muitos apontam o dedo para a monocultura.
Embora o escopo completo da biodiversidade da floresta amazônica seja desconhecido, alguns estudos estimam que ela possa conter entre 15 mil e 50 mil espécies da flora. E pesquisas sugerem que as mudanças climáticas e a destruição florestal podem levar a um declínio de 58% na diversidade de árvores na Amazônia até 2050.
Os projetos comunitários de sementes estão trabalhando para combater essa perda de diversidade usando um método chamado “muvuca”, que se baseia na disseminação de uma mistura grande e variada de sementes nativas em áreas degradadas, para garantir uma maior diversidade de plantas e árvores.
“Tentamos realmente imitar a floresta como ela é, semeando todas as sementes ao mesmo tempo”, diz Renato Nazário, técnico de restauração florestal da Rede de Sementes do Xingu, uma organização sem fins lucrativos que fornece apoio e treinamento para cerca de duas dúzias de iniciativas comunitárias de sementes na Amazônia. “E cada uma tem um papel diferente no processo de reflorestamento.”
Normalmente, cerca de um terço das sementes são espécies não nativas de rápido crescimento, como abóbora e feijão, que atuam como ‘fertilizantes verdes’. Essa vegetação fornece alimento e renda para as comunidades locais, além de funcionarem como salvaguardas contra plantas invasoras, para que outras espécies arbóreas nativas, como copaíba (gênero Copaifera), caju (Anacardium occidentale) e pequi (Caryocar brasiliense), possam ter a chance de amadurecer. Algumas árvores atingem a maturidade em 20 anos, enquanto outras levam 50 anos para crescer até seu tamanho total.
“Quanto mais espécies, melhor”, explica Nazário, observando que esse método pode produzir entre 5 mil e 12 mil espécies por hectare. “Isso mostra que é possível, por meio da restauração ecológica, recuperar a biodiversidade da floresta.”
Para algumas comunidades, o próprio processo de coleta de sementes se tornou um meio de subsistência, comenta Nazário, cuja organização trabalha com cerca de 600 coletores de sementes, a maioria mulheres de comunidades indígenas e tradicionais. Muitos conseguem ganhar a vida vendendo amostras de espécies nativas para empresas que buscam reflorestar terras degradadas e compensar sua pegada ambiental.
“Isso gera uma renda para os coletores, sem obrigá-los a sair de seus territórios”, acrescenta. “E eles podem colocar seu conhecimento ancestral sobre a floresta para trabalhar.”
As iniciativas de sementes também representam uma ferramenta poderosa para preservar a cultura indígena, que depende de espécies vegetais tradicionais que estão desaparecendo à medida que as plantações de soja substituem as florestas, de acordo com Edilza Karo, agrônoma e pesquisadora do povo indígena Munduruku.
“Hoje, o agronegócio está crescendo muito forte”, diz ela. “E está afetando nossos territórios, está destruindo nossa floresta. Nossas plantas, nossos alimentos não são mais os mesmos.”
Nas últimas décadas, espécies que antes eram importantes medicamentos ou alimentos básicos nas dietas indígenas, como certos tipos de milho, desapareceram em algumas aldeias nas profundezas da floresta tropical. Algumas árvores que produziam sementes e fibras para joias tradicionais, chapéus ou produtos artesanais também se tornaram escassas, impactando as tradições culturais.
“Lá, em nossa floresta, temos nossa comida, nosso remédio, nossa moradia – é por isso que a terra é tão importante para nós”, explica Karo, que começou a estudar agronomia na tentativa de fortalecer a agricultura e a cultura indígenas. “Mas muitas espécies tradicionais foram perdidas ou esquecidas.”
Os bancos de sementes ofereceram uma nova maneira de mitigar essas perdas: em eventos de troca de sementes, os líderes indígenas às vezes descobrem variedades de plantas que se extinguiram em alguns territórios, mas continuam a prosperar em outros cantos da floresta. “Lentamente, estamos fortalecendo nossa cultura”, comenta ela. “E isso está nos dando alguma esperança de que podemos salvar nossa floresta.”
Um caminho a trilhar
Restaurar florestas por meio de sementes também pode ser um divisor de águas para o agronegócio, já que o setor enfrenta uma pressão crescente – em casa e no exterior – para reverter alguns dos danos que infligiu à floresta amazônica.
Compradores internacionais de commodities, incluindo gigantes como a Cargill, se comprometeram a limpar suas cadeias de suprimentos do desmatamento, prometendo parar de comprar de produtores que destroem florestas e degradam terras. Marcas na Europa e nos Estados Unidos, por sua vez, ameaçaram boicotar empresas brasileiras se elas não pararem de destruir a floresta.
Especialistas dizem que os bancos de sementes poderiam fornecer às empresas uma maneira mais prática e econômica de restaurar terras degradadas. Por um lado, as sementes são mais fáceis de transportar de comunidades florestais remotas, ao longo de estradas irregulares e rios traiçoeiros, para compradores distantes. Elas também podem ser plantadas com o mesmo maquinário que os grandes produtores já utilizam para semear milho ou soja, aponta Eduardo Malta, especialista em restauração do Instituto Socioambiental (ISA) e coordenador do Redário, que vincula coletores a compradores e auxilia na logística e distribuição de sementes.
“Ainda é muito difícil mecanizar o plantio de mudas”, diz. “Com as sementes, podemos usar a mesma tecnologia que a agricultura já usa – e ampliar a restauração.”
O plantio de sementes diretamente no solo também leva a raízes mais fortes e profundas, o que ajuda as árvores a resistir à seca e a eventos climáticos extremos, acrescenta Malta. A alta densidade de plantio na muvuca leva a que espécies invasoras sejam menos propensas a proliferar e comprometer os esforços de reflorestamento. “Não é apenas mais prático, mas também vemos melhores resultados”, aponta Malta.
No entanto, esse método de restauração de florestas não é completamente infalível. A construção de um fluxo constante de fornecimento de sementes nativas continua difícil, com os coletores muitas vezes enfrentando desafios logísticos que limitam a quantidade de sementes que podem armazenar ou enviar. Diante da escassez de programas federais para apoiar os esforços de coleta de sementes, as comunidades dependem de redes como a Redário para conectá-las aos compradores.
Criar um mercado para espécies de sementes nativas também representou um desafio, já que muitos agricultores veem as florestas restauradas como um desperdício de recursos, diz Nazário. Por enquanto, a maior parte da demanda por sementes vem de grandes empresas dos setores de mineração, agricultura e infraestrutura que foram forçadas, muitas vezes por ordem judicial, a compensar seu impacto ambiental restaurando terras degradadas.
“Os produtores veem o plantio de árvores, a restauração ecológica, como uma perda de terra produtiva”, comenta Nazário. “Então, muitas vezes, eles só recuperam essas áreas quando se torna uma obrigação legal ou um requisito para acessar o mercado de exportação.”
Ainda assim, há sinais de que isso pode mudar em breve. No ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sinalizou planos para oferecer incentivos, incluindo financiamento barato para grandes produtores agrícolas que compram campos degradados e os restauram.
Em dezembro, os legisladores brasileiros também aprovaram a criação de um mercado de crédito de carbono, embora a medida tenha sido criticada por excluir a agricultura e a pecuária das novas exigências regulatórias.
Essas duas medidas podem ajudar a atrair o agronegócio para o reflorestamento e impulsionar a demanda por sementes nativas, segundo Nazário. “Alguns produtores estão acordando e vendo uma oportunidade nesse novo mercado de carbono. Então, isso poderia desencadear mais restauração.”
Mudanças há muito esperadas no sistema de registro de terras rurais do Brasil (o Cadastro Ambiental Rural) também estão despertando o interesse pelo reflorestamento por meio de espécies nativas, de acordo com Manuel Vieira, professor de engenharia florestal da Universidade Federal do Amazonas. “Se restauração não era uma palavra da moda antes, certamente está se tornando uma”, diz ele.
Atualmente, muitos produtores agrícolas hesitam em investir em reflorestamento sem um título de terras em mãos. Mas, se as reformas avançarem, os proprietários terão a garantia de que suas propriedades não serão retiradas. “Isso poderia dar a eles esse impulso para investir em reflorestamento”, explica Vieira, que coordena o Centro de Sementes Nativas do Amazonas.
Para Maria Ivonete, os impactos da restauração florestal ficaram claros. Seu lote de 60 hectares já está exuberante, assemelhando-se a um oásis de esmeraldas no meio dos campos de soja ressecados que se estendem por quilômetros ao redor. Muitas das espécies que agora crescem em sua fazenda sustentam sua família. “A terra produz muito mais comida do que podemos comer”, comenta ela, acenando para as bananeiras e pés de mandioca nas proximidades.
Ela espera poder transformar a área ao redor de sua fazenda em um centro ecológico, onde sementes, plantas e culturas serão trocadas livremente na comunidade. Maria Ivonete está nadando contra a corrente, mas espera que a floresta possa prosperar novamente. “Estamos olhando para o futuro”, diz. “Queremos criar algo que dure para sempre.”
Imagem do banner: Caju. Foto: S.Ballal via Wikimedia Commons (CC BY-SA 3.0)