Em entrevista à Mongabay, o agroecologista potiguar Tião Alves conta como vem ensinando milhares de trabalhadores rurais a sobreviver num bioma acometido pela seca, pelas mudanças climáticas e pela desertificação.
À frente do Serta, uma das mais importantes escolas de agroecologia do Nordeste, Tião ensina tecnologias de baixo custo que garantem segurança alimentar com o mínimo de recursos – naturais e financeiros.
Atualmente, 13% da Caatinga já se encontram em processo de desertificação, resultado de uma combinação de desmatamento, irrigações inadequadas, secas extremas e alterações no clima global.
Enquanto turbinas eólicas e placas de energia solar se multiplicam pelo sertão, Tião Alves insiste em cataventos de lata e aquecedores à base de garrafas PET. “Tecnologia sertaneja”, como ele define, defendendo que as melhores soluções para tornar a vida possível no semiárido nordestino são aquelas que nascem da sabedoria popular – “aquela que germina como uma semente que você bota no chão e cresce.”
Isso e a compreensão de que, para sobreviver num bioma desafiador como a Caatinga, basta aprender com as plantas e os animais: milhares de espécies que encontraram maneiras de se adaptar à escassez de chuvas, a ponto de tornar este o semiárido mais biodiverso do mundo. É por essa razão que ele chama a Caatinga de “universidade invisível”.
Sebastião Alves dos Santos é “bicho da Caatinga”, como ele mesmo se define: nasceu em pleno sertão potiguar, na cidade de João Dias, passou a infância em Catolé do Rocha, Paraíba, e fincou morada em Arcoverde, Pernambuco, de onde desde 1989 é um dos mentores do Serta – Serviço de Tecnologia Alternativa, um dos mais importantes centros de ensino em agroecologia do Nordeste.
O próprio Tião diz que já ajudou a formar mais de 2 mil técnicos no Serta. Trabalhadores rurais vindos do Nordeste todo para algum dos dois campi – em Ibimirim e em Glória do Goitá, ambos em Pernambuco –, em busca de conhecimentos avançados que permitam garantir a segurança alimentar com o mínimo de recursos (naturais e financeiros).
Fogões acesos com luz do sol e caixas de papelão, por exemplo. Bombas d’água movidas por rodas de bicicleta. Potes de barro transformados em geladeira. Gás de cozinha produzido com esterco de animais. E ainda recaatingamento, bioconstrução, agrofloresta, permacultura e tudo o mais que ajude a fixar a população da Caatinga em seu lugar de origem sem que seja necessário consumir a vegetação nativa. E, de quebra, ganhar uma renda extra. Como resume Tião, “plantar água, comer Caatinga e irrigar com o sol”.
Nesta entrevista exclusiva para a Mongabay, Tião fala dos conceitos por trás da metodologia do Serta, de seu amor pela Caatinga e de como sobreviver num bioma severamente afetado pelas mudanças climáticas e pela desertificação.
Mongabay: Qual é a importância da Caatinga?
Tião Alves: A Caatinga corresponde a 11% do território nacional; isso são mais de 900 mil km2. E essa dimensão toda ganha um significado ainda maior quanto se trata da biodiversidade. É um dos biomas mais biodiversos do mundo, mas ela continua invisível aos olhos de muita gente. Eu digo que a Caatinga é uma universidade invisível, porque tem muito a nos ensinar. Chegou a hora de aproveitar esses ensinamentos que a Caatinga nos oferece. Mas que nós, seres humanos, teimamos em não querer ver. E não dá para continuar nessa invisibilidade diante do cenário mundial que se apresenta em termos de mudanças climáticas.
Quais ensinamentos, por exemplo?
A gente precisa reaprender um novo conceito para o bioma, porque o que nos ensinaram foi que a Caatinga era um lugar de escassez e de pobreza. Mas o que há aqui é escassez de compreensão do bioma. A natureza, na sua perfeição, não ia fazer nada escasso. Foi o universo que determinou que esse pedaço tivesse exatamente essa quantidade de água, e todos os seres vivos desse bioma fazem essa leitura. Exceto os humanos, que ainda não conseguiram se adaptar verdadeiramente às condições climáticas da Caatinga. Porque o bioma em si não colocou nenhuma barreira. A natureza daqui todos os dias responde: “Eu não sou pobre. Aqui tem muita riqueza. Basta vocês utilizarem da forma adequada, com respeito, que vou continuar servindo as futuras gerações.”
Que riqueza é essa?
Olha o nosso sol. Tem riqueza maior do que o sol aqui no sertão? Esse sol é o que dá mais cor a nossas frutas, mais cheiro, mais sabor. Não é questão de falta de água, é falta de matemática aplicada aqui. No dia que o homem entender que a quantidade de água que tem no semiárido é suficiente para manter a vida com dignidade, vai aprender a captar, armazenar e utilizar essa água. As plantas fazem isso. Estão aí, ensinando. Um pé de umbuzeiro é uma esponja na Caatinga, capaz de armazenar mais de mil litros de água. Os cactos transformaram as folhas em espinhos e criaram uma serosidade no caule para não absorver tanto calor dos raios solares. Fecham os estômatos, que são os poros, durante o dia e depois abrem esses estômatos à noite. Olha que ensinamento. Mas nem sequer irrigação se faz à noite aqui; o pessoal irriga durante o dia, quando o sol está mais forte.
Por que as populações do semiárido ainda não encontraram um modo eficaz de conviver com a Caatinga?
Nesta região nós temos o Parque Nacional do Catimbau, e em escavações lá encontraram um esqueleto de 6.600 anos. Que lição a gente tira disso? Se tinha gente habitando essa região há esse tempo todo, significa que a região é boa. Ninguém mora em lugar ruim. Segunda coisa: os nossos ancestrais aqui, no período da colonização, foram dizimados. A gente não se expandiu no sentido de entender o bioma com profundidade. Porque os nossos ancestrais foram assassinados pelos colonizadores ou expulsos dos seus lugares. Esquecemos a tradição de utilizar essas potencialidades. Ainda sobrou alguma coisa, que está presente nas comunidades indígenas. Mas aí veio a escola para ensinar que essa cultura era atrasada, que não servia para os brancos. Agora estamos aí pagando o preço.
Como as mudanças climáticas estão afetando a Caatinga?
O bioma é vulnerável, sim. A partir de setembro, outubro, tranquilamente chega a 36, 37 graus. Com o aquecimento global, você coloca mais dois, três graus em cima disso. E isso é muito significativo, porque com essa mudança brusca não há tempo para que os organismos mudem. Mas eu ainda acho que temos tempo. Um tempo muito curto. Precisamos que a sociedade e o governo comecem a cuidar da Agenda 2030, a acelerar os processos. Daqui para a frente, o que vai haver é migração, é gente fugindo de suas regiões em busca de regiões com climas amenos. Vai acontecer o que aconteceu com as cidades. E a antropização aumenta a carga de exigência desses ambientes.
O que precisa ser feito para reverter ou adiar esse processo?
Nós precisamos de três elementos básicos. Precisamos plantar água, comer Caatinga e irrigar com o sol. Com esses três elementos, é possível reverter o quadro no bioma. Como é que vamos plantar água? Simples, é pegar a semente, colocar num saquinho e depois levar pro campo. Não existe forma melhor de se plantar água do que reflorestar. E vou dizer aqui um termo que eu gosto de utilizar: nós precisamos recaatingar. Trazer a Caatinga de volta. Não reflorestar do jeito que inclusive alguns órgãos oficiais quiseram fazer anteriormente, trazendo espécies de fora para implantar aqui. Nós não precisamos disso, a Caatinga já tem a sua própria beleza.
A outra coisa é aprender a comer Caatinga. A Caatinga está cheia de plantas que poderiam estar na nossa mesa sem que a gente estivesse cultivando plantas exóticas, que precisam de muita água. São frutas e vegetais ricos em nutrientes, resistentes à seca, adaptados às condições do semiárido. E a gente ainda querendo plantar alface. Aqui tem tantas outras plantas, inclusive muito mais ricas, que não exigem a mesma quantidade de água e que brotam naturalmente, mas a gente não sabe fazer sequer uma salada com elas.
Por exemplo?
Bredo. Bredo é um amaranto, é uma planta do mesmo gênero daquela que existe lá na Cordilheira dos Andes, que os incas utilizavam para alimentar os corredores que faziam o correio inca. Eles ofereciam o amaranto para quem precisava de resistência. E nós temos isso aqui, que costumamos comer apenas uma vez no ano, na Semana Santa. O sertanejo faz o jejum e come essa planta com leite e coco, que é uma delícia. E, como o bredo, nós temos aí centenas e centenas de plantas espalhadas em todo o semiárido.
E o que seria irrigar com o sol?
Quem teve tem a felicidade de nascer debaixo de 3 mil horas anuais de sol, como é o nosso caso aqui, já nasce com resistência. Mesmo sendo branco, já nasce com a pele tostada para adquirir resistência. Então esse nosso sol significa riqueza. Porque, além de aproveitar na forma de energia elétrica, podemos utilizar o sol para aquecer água, desidratar frutas, secar grãos, tratar a água que a gente bebe – sobretudo nas comunidades mais pobres, utilizando garrafas. Uma coisa simples de fazer, que elimina 100% dos patógenos.
Onde o Serta (Serviço de Tecnologia Alternativa) entra nessa estratégia de explorar o potencial da Caatinga?
Formando gente. Como professor de agroecologia do Serta, eu já ajudei a formar 2.400 técnicos. E essa turma tá solta aqui, fazendo agroecologia dentro de um conceito não tão acadêmico. Porque agroecologia nasce exatamente da experiência de nossos ancestrais. Ela está no roçado, no quintal, no fundo de pasto, nessa realidade agroecológica pura, nativa, sincera. Aquela que germina como uma semente que você bota no chão e cresce.
E tem uma coisa fundamental, que é a relação de amizade entre o ser humano e a planta. Na agroecologia pura não se corta um pé de limão porque nasceu outro. A pessoa fala: “Eu vou ficar com ele aqui porque faz 30 anos que eu converso com esse pé de limão”. Faz 30 anos que aquele pé de limão é a capela, o lugar onde ele conversa com Deus. É debaixo do pé de limão, do pé de manga, do pé de laranjeira, que ele recebe o amigo, faz a festa. Isso não é herança acadêmica. Isso é herança de negro, de índio. Isso é herança humana com significado humanístico puro.
Como surgiu a ideia do Serta?
Eu cheguei aqui [em Pernambuco] muito jovem, com 20 anos. Era muito ligado à Igreja Católica, militante das CEBs, as Comunidades Eclesiais de Base. Eu tinha terminado o curso técnico em Agropecuária e meu desejo era voltar para o Rio Grande do Norte, a terra onde eu nasci, para ajudar meu pai na agricultura, um padre me disse: “Eu quero levar você pra Pernambuco. Você não vai cuidar da propriedade do seu pai, você precisa cuidar da propriedade de muita gente”.
Em 1984, fundamos o Cecapas [Centro de Capacitação e Acompanhamento a Projetos Alternativos da Seca], que foi a primeira organização de Pernambuco a trabalhar a formação de agricultores nessa área mais ecológica. Exatamente porque o semiárido estava passando por um longo período de seca, que começou em 1979 só terminou em 1984. Muita gente morrendo de fome. Depois a Igreja achou que não deveria mais continuar porque a seca tinha passado. Foi quando o professor Abdalaziz de Moura, que trabalhava conosco, teve a ideia de criar o Serta.
Começamos a fazer mutirões, organizar as comunidades e aí a gente foi crescendo. Até que em 1999 a gente começou a fazer um curso de Agente de Desenvolvimento Local, que era a formação do jovem para transformar as circunstâncias do lugar dele. Deu tão certo que depois avançamos para o primeiro curso técnico em Agroecologia do Nordeste. O MEC reconheceu e hoje é um curso que tem validade em todo território nacional. E graças a Deus isso está sendo copiado. Hoje os institutos federais estão oferecendo, os governos estaduais também, até as universidade encamparam e estão oferecendo cursos em Agroecologia.
O que vocês ensinam no Serta?
O que eu ensino é paixão. Paixão pela Caatinga, paixão pelo semiárido. Porque minha forma de beijar a Caatinga é ensinando os meus alunos a amá-la. Ainda me arrepio quando falo dessas coisas porque acho que tenho me dedicado a isso: a plantar a esperança. No semiárido, se a gente não tiver esperança, a gente desiste. A disciplina principal do curso é ensinar as pessoas a olhar para seu lugar com orgulho de ter nascido ali.
Para isso elas precisam de tecnologia. Não essa tecnologia sofisticada, mas as chamadas low-tech. Aquaponia, por exemplo, um sistema de produção de alimento em que você utiliza 10% da água de sistemas convencionais e que você bota lá na porta da casinha, onde a área está morta, onde é deserto. E o melhor é que quem vai cuidar disso é a mulher. Só para quebrar o machismo. Produz alimento e a mulher ganha independência econômica. Nossos técnicos lá na escola aprendem a fazer isso.
Qual é o conhecimento mais importante que as pessoas adquirem no Serta?
Quando o estudante entra, a primeira aula é descobrir quem ele é. É o conhecimento de que ele precisa para se reconhecer cidadão de direito. A partir da segunda aula, ele descobre o que ele tem. Normalmente o aluno diz: “Eu sou muito pobre, não tenho nada”. A gente dá um questionário e quando ele volta já traz que “na propriedade do meu pai tem dez galinhas, duas cabras, um barreiro, um poço, três pés de manga, dois de caju…”. E faz uma relação também do que sabe fazer: ele sabe cortar lenha, fazer carvão, fazer uma cacimba, um poço, uma cerca; sabe plantar, colher. Mas ele acha que não sabe de nada. E é desse jeito que ele vai para São Paulo. Para ser o que? Servente de pedreiro. No Serta é que ele aprende a refinar os conhecimentos que já tem.
Qual é a importância de trabalhar essa autoestima nos jovens do semiárido?
O importante a fazer é criar desejo. De construir um conhecimento para ser potente. Aonde? Na terra que era fraca. Para o aluno tornar também essa terra potente. Porque ele só vai ser potente se a terra dele for potente. Aí outras pessoas vão pegar também essa energia, que se multiplica, e aí a comunidade vira uma potência. É por isso que os nossos indígenas são os que menos migram. Porque se apegaram à terra. E é por isso que eles preservam. Porque o indígena é um bicho da floresta, assim como eu sou um bicho da Caatinga. Eu não consigo me separar da Caatinga. Eu tenho os traços da Caatinga. Na minhas veias circulam os nutrientes que vem do solo do sertão.
O que é ser um bicho da Caatinga?
É ser raiz, ser caule, ser folha. É ter a esperteza do gato-maracajá, a resistência do mandacaru. Aprender a acumular água. Ser um bicho da Caatinga é ser a própria Caatinga, que às vezes está carregada de espinhos, como eu também me sinto carregado – às vezes ninguém quer se aproximar de mim, com medo de furar. Mas isso é só o externo, porque no interno está essa essência onde circula a seiva, onde as células estão numa frequência vibratória produzindo resistência, resiliência.
Esse bicho da Caatinga também está ameaçado de extinção?
Tem varias espécies da Caatinga ameaçadas, inclusive esse bicho humano. Por causa das mudanças climáticas, a tendência é que o semiárido se torne árido. Desses 900 mil km2, 13% já são deserto. Em todo o canto há essas manchas de desertificação. E o grande risco é dessas manchas se encontrarem.
Como foi que a Caatinga chegou nesse ponto de desertificação?
As relações antrópicas. Com a entrada do gado no sertão, com o cultivo do algodão, do sisal, e o advento da tecnologia para irrigação, que foi feita de qualquer jeito e salinizou muitas áreas. E o desmatamento: muita, muita queima para fazer carvão e abastecer os grandes centros. Isso e a falta de políticas corretas para desenvolver o semiárido. O que se criou foi todo um mecanismo de sustentação de uma classe dominante para explorar o povo sertanejo. A famigerada indústria da seca. As secas climáticas, a gente sabe quando vão acontecer no semiárido: tem uma a cada três anos, outra maior a cada sete, depois a cada dez uma ainda maior. É cíclico. Sabendo disso, os governos anteriores já podiam ter elaborado ações para combater essas secas.
O que falta para o Brasil olhar para a Caatinga do modo como ela merece?
Acho que falta um pouco de vergonha nacional. Porque desde o Descobrimento que isso aqui sofre por ações políticas, para atender à necessidade de quem tem o poder. Não precisa de muita coisa para o Brasil pagar essa dívida que tem com o semiárido. Uma política pública que minimizou o sofrimento dos nordestinos foram as cisternas — mais de 1 milhão foram construídas. É muito mais barato construir uma cisterna do que manter uma comunidade sendo abastecida por carro-pipa. E ela não cria dependência política.
Outra coisa é a escola, que poderia ser contextualizada: estudar as coisas do lugar e, a partir daí, produzir ciência e desenvolver esse lugar. Mas nós precisamos tomar as rédeas do nosso próprio desenvolvimento. Essa é a nossa revolução. Não vamos pegar numa arma para atirar no irmão, mas a gente pode fazer uma escola diferente. Por isso é que eu sou professor. Para mim, a escola é um canhão. Cada aula que a gente dá é um disparo.
Imagem do banner: Tião Alves, agroecologista e professor do Serta – Serviço de Tecnologia Alternativa. Foto: Rafael Martins/Mongabay