Nova pesquisa mostra que a crescente população de javalis representa uma ameaça maior do que se pensava às áreas protegidas e aos hotspots de biodiversidade.
Estudo indica que partes significativas dos locais com maior diversidade biológica da América do Sul abrigam habitats que podem comportar porcos selvagens, destacando-se a Mata Atlântica, pois 85% de seu terreno total é considerado adequado para os animais.
A presença cada vez maior de javalis e seu cruzamento com porcos domésticos traz desafios para os conservacionistas e para os moradores locais, cujas plantações são frequentemente destruídas à medida que os porcos se acostumam a comer alimentos humanos.
Pesquisadores enfatizam que os cientistas, as comunidades locais e os administradores de áreas protegidas devem trabalhar juntos para encontrar meios adequados de controlar as populações de porcos selvagens.
Os porcos selvagens são reconhecidos mundialmente como um incômodo para o meio ambiente. A IUCN os classifica como uma das piores espécies invasoras devido ao seu potencial de danificar plantações, abrigar doenças e interromper processos ecológicos.
Recentemente, uma pesquisa publicada no Journal for Nature Conservation revela que a presença crescente de porcos selvagens em toda a América do Sul representa uma ameaça maior aos hotspots de biodiversidade e às áreas protegidas do que se acreditava anteriormente. O termo se refere aos indivíduos da espécie Sus scrofa e inclui javalis, porcos domésticos asselvajados e javaporcos (cruzamento de javalis e porcos).
Os pesquisadores analisaram as faixas de adequabilidade da espécie em diferentes níveis de análise e descobriram que um número significativamente maior de áreas protegidas está invadido ou potencialmente em risco do que havia sido demonstrado em pesquisas anteriores. Além disso, quase metade (44,8%) das ocorrências de javalis estudadas estavam dentro de hotspots de biodiversidade.
Na América do Sul, os porcos domésticos chegaram com os colonizadores europeus, e os javalis foram introduzidos pelo fazendeiro argentino Pedro Olegario Luro no início do século 20 para fins de caça. Com o tempo, os javalis se dispersaram, cruzaram com porcos domésticos e estabeleceram populações pelo continente.
A análise revela dados relevantes sobre a vulnerabilidade de hotspots específicos na região. A Mata Atlântica, em especial, surge como a mais suscetível, com expressivos 85% de sua área total considerada adequada para porcos selvagens (ou seja, um habitat que permite que eles se desenvolvam), seguida pelo Cerrado (61,3%), pelas florestas temperadas valdivianas do Chile (37,5%) e pelos Andes tropicais (5,6%).
Esses resultados geram mais um alerta para que os conservacionistas adotem medidas de precaução, pois as espécies invasoras podem causar ainda mais danos à biodiversidade em áreas já ameaçadas.
A expansão dos porcos selvagens na América do Sul
A ecologista brasileira Clarissa Alves da Rosa, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que não participou do estudo, disse à Mongabay que “o aumento dos javaporcos como um todo no Brasil, especialmente na Mata Atlântica, na verdade, está associado à interação da espécie com o ser humano”.
Ela explica que espécies invasoras, como os porcos selvagens, podem suplementar suas dietas consumindo alimentos cultivados humanos. E quando isso acontece, acrescenta ela, o porco selvagem “tende a aumentar muito sua população e expandir. Quando a gente fala de um bioma fragmentado como a Mata Atlântica, a gente tem justamente essa suplementação alimentar através, principalmente de milho e cana. O que acontece, é que ele acaba tendo o ambiente perfeito, porque ele tem fragmentos florestais onde ele pode se abrigar e tem os cultivos agrícolas que ele pode se alimentar”.
Ela também menciona que outro fator que contribui para o aumento da distribuição da espécie é o fato de que algumas pessoas, interessadas em manter a população de javalis, os transportam e os soltam em áreas onde eles não estavam presentes para obter licenças de caça, já que eles são a única espécie permitida para caça no Brasil. Com relação a essa questão, Alves da Rosa menciona: “Existe uma grande discussão dentro da academia do javali como um recurso ou como um problema”.
Ela acrescenta ainda: “Se a gente considera o javali como um problema, passa a ter o interesse de redução dessa população. Só que no momento que ele passa a ser um recurso, existe um interesse de manter essa população, porque você não quer que seu recurso acabe. E por mais que em termos de política pública, em termos de ciência a gente taxe o javali como um problema, a gente sabe que a população como um todo vê como um recurso, acaba sendo mais uma fonte de alimentação e tem pessoas que gostam de caçar.”
Impactos na biodiversidade
Em seus estudos de doutorado no Parque Nacional de Itatiaia, um dos objetivos de Alves da Rosa era explorar se o comportamento do porco selvagem poderia substituir as funções ecológicas benéficas fornecidas pelos queixadas (Tayassu pecari), um mamífero social por vezes confundido com um porco e uma espécie ameaçada na região. Por meio de sua investigação, ela descobriu impactos ambientais diferentes causados por essas duas espécies, apesar de possuírem comportamentos semelhantes.
Embora tanto os porcos selvagens quanto os queixadas possuam o hábito de “fuçar” o solo, Alves da Rosa observou uma diferença: os javalis, devido a seus focinhos mais longos, criam buracos maiores que removem camadas importantes do solo, comparável a arar a terra. Por outro lado, os queixadas, ao fuçar o solo, criam pequenos buracos que com as chuvas, transformam-se em poças, servindo como locais importantes para a reprodução de algumas espécies de anfíbios.
Além de remover camadas importantes do solo, os porcos selvagens estão associados a vários impactos ambientais, como a destruição de nascentes de água, o arrancamento de plantas nativas e a predação de sementes e pequenos invertebrados, de acordo com Alves da Rosa. Esses exemplos ilustram os danos que os porcos selvagens podem causar em áreas relevantes para a conservação da biodiversidade e enfatizam ainda mais a importância de avaliar sua potencial expansão.
Essas descobertas geram uma preocupação especial na Mata Atlântica, região considerada a mais vulnerável às invasões de porcos selvagens no atual estudo. O bioma abriga mais de 20 mil espécies de plantas, incluindo 6 mil espécies endêmicas e a maior diversidade de árvores por hectare do mundo. Ao mesmo tempo, possui o maior número de espécies ameaçadas e extintas de qualquer bioma no Brasil, conforme indicado no relatório recentemente publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Métodos e resultados
O estudo que avaliou a potencial distribuição de porcos selvagens em larga escala na América do Sul envolveu uma equipe internacional e multidisciplinar de 17 cientistas que utilizaram um método chamado de modelagem de nicho ecológico, combinando registros de 6.502 ocorrências de porcos selvagens, tanto diretos (avistamentos) quanto indiretos (rastros e armadilhas fotográficas) ao longo de 116 anos (1906-2022) com dados ambientais e informações de 278 áreas protegidas.
Essa abordagem permitiu que eles investigassem a dispersão atual e potencial de porcos selvagens em ecorregiões, áreas protegidas e hotspots na América do Sul, abrangendo especificamente a Argentina, o Brasil, o Uruguai, o Paraguai, o Chile e a Bolívia.
Ao todo, 68 ecorregiões foram comparadas, mostrando que 41 já tinham registros de porcos selvagens, enquanto 64 apresentavam condições adequadas ou parcialmente adequadas para sustentar sua presença. Apenas quatro ecorregiões foram classificadas como totalmente inadequadas, e três delas são desertos frios com condições climáticas extremas. Esses resultados refletem a alta capacidade de adaptação dos porcos a diferentes ambientes.
O artigo acrescenta que o sucesso relativo das espécies na colonização de diferentes habitats pode ser atribuído ao seu “alto potencial reprodutivo”, “dieta extremamente flexível”, “ampla tolerância climática e topográfica” e “adaptabilidade comportamental sob condições contrastantes de pressão humana”.
Com relação às áreas protegidas na América do Sul, o estudo destacou que as paisagens protegidas e os parques nacionais correm maior risco. Ao comparar o número de áreas afetadas e o risco potencial em cada país, o Uruguai ficou em primeiro lugar em ambas as categorias, tendo todas as suas áreas protegidas “invadidas” por porcos selvagens.
Os resultados obtidos pelos pesquisadores diferiram significativamente das avaliações anteriores feitas em países individuais.
O artigo afirma que a área potencial de distribuição na Argentina foi consideravelmente maior do que a observada em um relatório de 2019 publicado no site Categorización de los Mamíferos de Argentina.Enquanto isso, no Chile, a nova pesquisa encontra uma área de potencial distribuição estimada em mais de 150 mil quilômetros quadrados, que é muito maior do que os 27.600 km2 de ocupação observados em uma avaliação de 2015 publicada na revista Mastozoología neotropical. No Brasil, a presença do porco foi confirmada em 205 municípios que não haviam sido registrados anteriormente, aumentando o número total em 17,8%.>
Essas variações podem ser explicadas pelas diferentes abordagens metodológicas adotadas e também pela “inclusão de um grande número de novos registros que abrangem um período de tempo mais longo”, afirma o artigo. Os autores acrescentam que, com essa nova abordagem, também foi possível identificar locais onde a espécie pode estar presente, mas ainda não foi detectada.
Além do artigo, Luciano La Sala, o principal autor do estudo, também disponibilizou um aplicativo dinâmico da Web com representações visuais dos resultados do estudo que os conservacionistas e os formuladores de políticas podem consultar prontamente.
“A gente sabe que as invasõ es biológicas são melhor controladas quando elas estão no início. Quando o javali é detectado em uma unidade de conservação, é porque ele já está em um nível populacional problemático”, explica Alves da Rosa.
É justamente por isso que avaliações dessa natureza fornecem informações importantes para os gestores de áreas protegidas, possibilitando que eles adotem medidas de precaução para impedir o estabelecimento de novas populações de porcos selvagens, a fim de evitar mais perdas de espécies ameaçadas de extinção em áreas vulneráveis.
Impactos sociais e econômicos
O impacto ambiental não é a única preocupação levantada pela expansão desses porcos selvagens. Os impactos sociais e econômicos também são significativos. Alves da Rosa, que também trabalhou com as comunidades locais do entorno do Parque Nacional do Itatiaia, menciona que “quando a gente está vendo um impacto ambiental significativo, é porque o impacto social já está muito maior”.
Rosilene Cosmo Correa, também conhecida como Lena, é uma pequena agricultora que cultiva milho, batata e cana-de-açúcar e mora em Aiuruoca, uma cidade localizada na região montanhosa da Mantiqueira, na Mata Atlântica. É um lugar cercado por campos e matas de araucária (Araucaria angustifolia), um dos locais favoritos dos porcos por conta da disponibilidade de pinhão.
Em uma ligação telefônica, Lena descreve sua primeira experiência lidando com porcos selvagens em 2015. “Eu tinha plantado um canavial, era o meu sonho de comprar o meu primeiro carro e eu ia vender ele por 8 mil reais. Dentro de três dias, eu não tive uma vara de cana para mim chupar. Aí você me conta, o que eu faço ?”
Depois desse episódio, Lena começou a trabalhar como diarista para ajudar na renda familiar. “Daí eu comecei a sair para trabalhar, sabe? Aí desde 2015 que eu trabalho fora sempre, tô trabalhando fora, porque lá em casa não tem condição.”
A expansão dos porcos selvagens na região está provocando mudanças drásticas nos meios de subsistência dos pequenos produtores. Como os ataques são recorrentes, as pessoas se sentem desestimuladas a cultivar e recorrem mais às compras em supermercados, explica Lena. “Antigamente, a gente tinha muita coisa em casa, né? Você tendo milho para nós aqui na roça, a gente tendo milho, a gente tem muita coisa, tem tudo. O milho é tudo, a cana também é a base de tudo.”
Ela também fala sobre o pinhão, um importante produto regional que está ficando cada vez mais difícil de coletar, pois os porcos selvagens o comem rapidamente. “A mulherada que não trabalhava fora aproveitava para catar o pinhão para vender, sabe? Vendia muito pinhão e ajudava muito o ano inteiro que aí com esse dinheiro as mulher fazia muita coisa. Agora não tem pinhão mais para vender.”
Quando perguntada sobre como as pessoas de sua comunidade estão agindo, ela diz: “são poucas as pessoas que toma essa iniciativa de falar “eu vou caçar um porco hoje”, mas eles não conseguem, não tem um armamento e não tem treinamento, então a pessoa tem medo também. O cara tem medo”.
Davi Andrade Sampaio, que também é um pequeno produtor em Aiuruoca, fala em uma ligação telefônica sobre os desafios que enfrenta ao caçar esses porcos selvagens. Ao perseguir um porco, um caçador pode precisar atravessar diferentes propriedades e isso pode resultar em conflito, explica Davi. Ele diz que alguns proprietários de terras são defensores dos direitos dos animais e são contra a caça; em alguns casos, eles podem até chamar os fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Nesse caso, os caçadores têm que chamar os cães de volta e se retirar.
Tanto Davi quanto Lena concordam com o fato de que é preciso adotar medidas maiores para controlar os porcos. Eles acham que seu problema ainda não é amplamente reconhecido e temem as consequências futuras da rápida dispersão dos porcos em sua região.
Para gerenciar com eficácia as populações de porcos selvagens, é essencial uma compreensão abrangente da interação entre as áreas protegidas e rurais, pois os porcos selvagens circulam entre esses dois ambientes. As áreas protegidas fornecem abrigo para os porcos selvagens, enquanto as áreas rurais servem como fontes abundantes de alimentos para seu sustento. Como resultado, os gestores de conservação e os agricultores que vivem perto de áreas protegidas devem coordenar esforços para resolver o problema.
Desafios e possibilidades para o controle de porcos selvagens
De acordo com Alves da Rosa, a erradicação dos porcos selvagens é utópica e só ocorre com sucesso em ilhas. Para minimizar o problema, pesquisadores, gestores e comunidades locais devem trabalhar juntos, explica.
No Brasil, o poder público não tem condições financeiras, técnicas e logísticas para manejar efetivamente os javalis em áreas protegidas. Nessas condições, o ônus a responsabilidade recai inteiramente sobre os caçadores autônomos. “Você tem uma unidade de conservação onde o foco principal é a Conservação da biodiversidade. E então, como é que você deixa caçadores entrar dentro da unidade de conservação?”, diz ela.
Alves da Rosa enfatiza que, antes de introduzir caçadores em áreas protegidas, é fundamental estabelecer um relacionamento sólido e confiável.
Além disso, o manejo de javalis exige mais do que apenas o controle de sua população dentro das áreas protegidas. Também é necessário um gerenciamento eficaz nas áreas vizinhas para garantir medidas de controle abrangentes.
Outra preocupação que ela levanta é o orçamento limitado dentro das áreas protegidas, que muitas vezes leva os gestores a priorizar o controle de javalis somente quando a situação já está fora de controle. Idealmente, o gerenciamento eficaz deveria ser uma prioridade desde os estágios iniciais da invasão. Os sistemas de detecção precoce e o manejo proativo da população seriam a abordagem ideal para resolver o problema antes de que se agrave. Entretanto, a realidade atual está longe de alcançar esse cenário.
“Então, o que acontece?
A presença de porcos selvagens na América do Sul está se tornando uma preocupação séria não apenas para os conservacionistas, mas também para as pessoas que vivem em áreas rurais. A expansão dos porcos selvagens, apesar de ser um problema internacionalmente reconhecido, continua sem solução e sem reconhecimento local.
Os pesquisadores mais uma vez observam seus impactos potencialmente prejudiciais sobre a biodiversidade regional em áreas já ameaçadas, como a Mata Atlântica e o Cerrado. Avaliações desse tipo fornecem informações cruciais para gestores, cientistas, formuladores de políticas públicas e conservacionistas, que podem realocar e reforçar seus esforços para proteger áreas de maior risco.
Os pequenos agricultores se encontram em uma situação difícil, pois não conseguem lidar com essa questão sozinhos, sem o apoio das autoridades, diz Lena. “A gente não tem condição de defender. Tudo que a gente vai fazer, a gente é pequeno produtor, então a gente não tem o dinheiro, não produz, como que a gente vai fazer alguma coisa? Aí, o que acontece? nada, né! Porque sem recurso não tem condição.”
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2023/07/cruzamento-com-gatos-domesticos-poe-em-risco-a-sobrevivencia-de-pequenos-felinos-selvagens/
Imagem do banner: Porco selvagem. Foto: Nathalie Hausser via Flickr (CC BY-NC-ND 2.0).