Regulamentados em 2005, alimentos geneticamente modificados prometiam aumentar o acesso a alimentos de baixo custo e reduzir o uso de agrotóxicos; hoje, porém, a insegurança alimentar atinge 33 milhões de brasileiros e a quantidade de pesticidas aumentou 38%.
Falta de monitoramento e falhas no processo de regulamentação buscam flexibilizar as regras e favorecer as empresas patenteadoras — são apenas treze atuando hoje no Brasil, oito delas transnacionais.
O resultado dessa flexibilização são cruzamentos espontâneos com sementes crioulas, gerando incerteza sobre o que vai parar na prateleira dos supermercados.
Há 18 anos, quando foram regulamentados no Brasil por meio da Lei 11.105, de março de 2005, os transgênicos traziam consigo algumas promessas. O artigo Transgenia: quebrando barreiras em prol da agropecuária brasileira, publicado pela Embrapa, elenca algumas delas. Segundo o texto, as variedades transgênicas permitem, com baixo custo, “produzir mais comidas nutritivas ou com composição mais saudável.” Além disso, prossegue o texto, a biotecnologia reduz a necessidade de uso de agrotóxicos.
Alheia às promessas dos transgênicos, a insegurança alimentar grave fez morada nos lares de 33 milhões de brasileiros, como revelam os dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar (Vigisan). Os agrotóxicos também caminharam na contramão: durante o governo de Jair Bolsonaro, foram aprovados no Brasil 2.182 pesticidas e afins — um número recorde que equivale a 2,5 novas aprovações por dia.
Fazendo um balanço dos 18 anos dos transgênicos no Brasil, o geneticista, pesquisador e professor do Departamento de Fitotecnia do Programa de Pós-graduação em Recursos Genéticos Vegetais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rubens Nodari, avalia que há falhas no processo de regulamentação e fiscalização desses produtos. “Tanto as regras [de regulamentação] quanto às ações de fiscalização foram inócuas ao longo desses anos.”
Um bom exemplo é a Resolução Normativa nº 4, adotada pela Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio) para regulamentar a coexistência no Brasil entre sementes transgênicas e crioulas — aquelas que não passaram por melhoramento genético. No artigo 2º, o texto recomenda a distância de 100 metros entre as lavouras vizinhas.
“Essa norma é inócua do ponto de vista de evitar a polinização cruzada. Esse é um primeiro ponto que causou um prejuízo enorme para os agricultores, que levaram anos para selecionar essas sementes crioulas. Quem tomou essa decisão, irresponsavelmente, causou um prejuízo enorme para essas famílias”, pontua Nodari, lembrando que o pólen de um grão transgênico é capaz de viajar até 3 quilômetros.
À reportagem do Mongabay, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) afirmou, por e-mail, que “a distância de 100 metros foi tomada de forma criteriosa e com base em dados científicos, que concluíram que esse espaçamento era seguro para evitar uma possível contaminação.”
O pesquisador aponta que outra falha se refere à promessa de redução do uso de agrotóxicos. De acordo com dados da pesquisadora e professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Sônia Corina Hess, entre 2013 e 2020, a área cultivada no Brasil aumentou 15,2%, enquanto a quantidade de agrotóxicos subiu para 38,3%, ou seja, mais do que o dobro.
Em muitos casos, a transgenia é adotada para que uma planta se torne resistente a até três tipos de agrotóxicos. Sendo assim, a espécie pode receber uma grande quantidade de veneno, sem ter a sua produtividade afetada. Hoje, no Brasil, 92% da soja, 90% do milho e 47% do algodão são transgênicos, revelam dados da Embrapa. “O Brasil, nestes 18 anos [de transgênicos] quadruplicou o uso de agrotóxicos, sem quadruplicar a área [cultivada]”, reforça o pesquisador Rubens Nodari.
Ele observa ainda que, ao longo do tempo, o custo de produção foi se tornando ainda mais elevado, com o aumento no valor da semente e dos herbicidas, o que frustra outra promessa feita pelos transgênicos: a de que os custos de produção seriam reduzidos. Por fim, em relação à questão dos danos à saúde, há estudos que mostram o surgimento de efeitos crônicos relacionados tanto ao consumo dos transgênicos como das substâncias associadas.
O estudo “Uma Comparação dos Efeitos de Três Variedades de Milho GM em Mamíferos” identificou efeito tóxico no fígado e nos rins de mamíferos alimentados com três principais tipos de milhos geneticamente modificados. “Há evidências de pessoas expostas a esses produtos que vêm sendo intoxicadas e desenvolvendo efeitos crônicos, ou seja, que só vão aparecer quando as enfermidades já estiverem avançadas”, explica o pesquisador Nodari.
Flexibilização das regras e impacto ambiental
Ao longo dos anos, a CTNBio foi adotando resoluções normativas que foram agilizando a aprovação e flexibilizando a fiscalização dos transgênicos no Brasil. Em dois artigos da Resolução Normativa nº 32, encontramos dois bons exemplos.
O Artigo 14, parágrafo único, assegura a aprovação automática de plantas ditas piramidadas, em que são sobrepostas modificações genéticas. Na prática, é o seguinte: há plantas que passam por uma mutação transgênica para se tornarem resistentes a um tipo de praga. Em seguida, ela recebe outra modificação para se tornar resistente a outro tipo de praga.
Se essas mutações já tiverem sido aprovadas individualmente pela CTNBio, quando agrupadas em uma mesma planta, essa variedade não passará por uma avaliação específica para saber como essas mudanças genéticas, reunidas em uma mesma planta, vão se comportar em campo.
“A CTNBio sempre afirma basear as suas decisões em estudos científicos, mas não há estudos que indicam que uma planta que acumula diversos eventos [mutações transgênicas] se comporte de uma forma previsível”, critica o coordenador do Centro de Tecnologia Alternativa, Gabriel Fernandes.
Já o artigo 18 da mesma resolução faculta às empresas o direito de pedir dispensa da análise do monitoramento dos efeitos dos transgênicos no campo. Esse monitoramento serve para identificar e evitar problemas indesejados causados pelos transgênicos na interação com a fauna e a flora de diversos biomas.
“A CTNBio é um órgão normativo, que cria suas próprias regras. Dessa forma, ela tem avançado de forma acelerada no processo de desmanche das regras de biossegurança no país. Neste caso, as empresas usam o próprio parecer da comissão, que, quando aprova o produto, afirma que ele não oferece danos ao meio ambiente, para pedir dispensa do monitoramento”, explica Fernandes.
Com a dispensa do monitoramento e a falta de fiscalização, mesmo as espécies rotuladas para um tipo de transgênico podem ter adquirido, em cruzamentos espontâneos, outros tipos de genes transgênicos para os quais não foram rotuladas. Em outras palavras, a combinação da dispensa de monitoramento com a falta de fiscalização dá margem para os cruzamentos ocorrerem livremente e traz incerteza sobre o que vai parar na prateleira dos supermercados.
Sobre a aprovação automática de plantas piramidadas, a CTNBio informou, por e-mail, ao Mongabay que “a análise dos eventos piramidados já foram avaliados previamente pela comissão.”
Sobre os riscos que esses produtos podem causar, o órgão informou que “a avaliação de risco e experiência ao longo dos anos permite adoção de uma abordagem racional para os produtos com genes combinados”.
O biólogo e professor do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Paulo Brack, chama atenção para o impacto dos transgênicos no meio ambiente. Ele cita estudos feitos nos Estados Unidos que comprovaram as mortes da lagarta da borboleta-monarca causada pelo consumo do pólen do milho Bt (que recebe genes da bactéria Bacillus thuringiensis). Além disso, ele reforça que “a falta de segregação entre espécies crioulas e transgênicas impacta na evolução da agrobiodiversidade.”
Por fim, o biólogo atentou ainda para o fato de que essa perda de biodiversidade, atrelada ao controle das patentes de transgênicos nas mãos de poucas empresas, é uma equação que dificulta o acesso aos alimentos. “Os países, a exemplo do Brasil, que não têm poder sobre essas sementes vão sofrer com a insegurança alimentar. Todos os eventos [mutações transgênicas] têm sigilo. A gente solicita as informações até para fazer análise e não obtém”, explica.
Até o fechamento desta apuração, identificamos no Resumo Geral de Plantas Geneticamente Modificadas no Brasil, disponível no site da CTNBio, 120 eventos, ou mutações transgênicas, aprovados para comercialização. As tecnologias envolvem soja, milho, algodão, eucalipto, feijão, farinha de trigo e cana-de-açúcar — metade desses eventos são de milho. Essas patentes estão registradas em nome de apenas treze empresas. Dessas treze, oito são transnacionais, com sede fora do Brasil, e cinco são brasileiras.
As transnacionais são Monsanto, Basf, Bayer, Dow AgroSciences, DuPont, Syngenta, Corteva, GDM e Helix. A Monsanto, empresa que hoje pertence à alemã Bayer, possui 35 patentes de transgênicos, o que equivale a mais de um terço do total de tecnologias liberadas pela CTNBio até 17 de julho. Essa é a data mais recente do resumo geral disponibilizado no site da CTNBio até o dia 24 de agosto. Em segundo lugar vem a Syngenta, hoje ChemChina, com 19 patentes. As empresas brasileiras são Suzano, Futuragene, Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), Tropical Melhoramento e Genética (TMG) e Embrapa.
O engenheiro agrônomo e membro da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Leonardo Melgarejo, avalia que a concentração dessas patentes, combinada ao avanço da contaminação das espécies crioulas por transgênicos acentua a “já presente no Brasil crise de comida de verdade [alimentos oriundos da agricultura familiar]”, afirma ele.
Isso porque os alimentos consumidos in natura produzidos pela agricultura familiar contêm genes que foram adquiridos através de processos naturais, ao longo de anos de evolução da espécie. Já os transgênicos são produzidos em laboratório. “A alternativa envolve políticas de apoio à agricultura familiar, com base em tecnologias mais amistosas ao ambiente”, defende.
A reportagem da Mongabay entrou em contato com o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) para saber sobre as falhas no processo de fiscalização citadas aqui. O órgão respondeu, por meio de assessoria, que “segundo a Lei 11.105, a fiscalização de atividades que levam organismos geneticamente modificados é compartilhada com outros três ministérios”, diz o texto. O texto informa que o Mapa “realiza suas fiscalizações, nos termos do arcabouço legal brasileiro sobre biossegurança, no território nacional.”
Perguntamos ainda se os canais de denúncia oferecidos pelo órgão são acessíveis às famílias agricultoras de áreas isoladas. O ministério informou que as denúncias podem ser realizadas pelo site ou e-mail da Controladoria Geral da União (CGU), via telefone ou carta, e ainda presencialmente na sede do próprio ministério, localizado em Brasília.
Imagem do banner: Lavoura de milho no Distrito Federal. Foto: Wenderson Araujo/Trilux.