Em junho de 2022, o indígenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram brutalmente assassinados na Amazônia. Mongabay entrevistou Nelly Marubo, amiga e colega de Pereira, dando-nos uma ideia de quem era Pereira do ponto de vista indígena e como ele era visto pelos indígenas na área onde foi morto.
Nelly diz que Pereira aprendeu com os Marubo e outros grupos indígenas como eles patrulhavam seus territórios; em seguida, introduziu tecnologias modernas para ajudá-los em seu trabalho de monitoramento.
Nelly rejeita a ideia de que indigenistas como Pereira estivessem levando grupos indígenas a entrar em conflito com o mundo exterior; ao contrário, ele estava respondendo às necessidades urgentes dos Marubo e de outros grupos em todo o país.
Para ela, Pereira deixou um forte legado entre os jovens indígenas Marubo.
ST ANDREWS, Escócia – Mongabay teve a oportunidade de entrevistar Nelly Marubo, amiga e colega do indigenista Bruno Pereira, que foi brutalmente assassinado na Amazônia em junho de 2022, junto com o jornalista britânico Dom Phillips.
Nelly faz parte de uma nova geração de antropólogos indígenas nascidos na floresta que vão para a universidade. Essa entrevista foi uma oportunidade de ter uma noção de quem era Pereira do ponto de vista indígena e como ele era visto pelos indígenas da área onde foi morto.
Nascida no Vale do Javari, Nelly conta que era amiga e colega de Pereira desde 2010, quando ele começou a trabalhar na região. Nessa entrevista em vídeo, ela conta como ficou surpresa ao encontrar Pereira em Atalaia do Norte um dia antes de seu assassinato — e como ficou desesperada ao saber da notícia de seu desaparecimento — pois sabia das ameaças e perseguições que ele sofria na região.
“Eu falei que ele não podia estar ali”, Nelly conta à Mongabay durante sua visita ao Reino Unido como parte do projeto “Amplifying Amerindian Voices” (“Ampliando vozes ameríndias, em uma tradução livre), apoiado pelo fundo de impacto da Universidade de St Andrews, na Escócia. “Sabíamos que ia acontecer alguma coisa, mas não sabíamos de que maneira”.
Em lágrimas, Nelly descreve o terrível desespero que sentiu quando lhe disseram: “Bruno não chegou”, e ele não respondeu as suas mensagens. “A gente já pensou o pior. Mas a gente achou que ele estava amarrado, que ele estava escondido em algum lugar,” diz ela. Nelly conta que ela tinha esperança de que Pereira fosse encontrado vivo, mas ficou devastada quando as pessoas relataram que não o tinham visto mais. “E, nesse momento, foi muito forte. A gente [ficou] imaginando ele sofrendo”.
Nelly diz que eles trabalharam juntos e permaneceram amigos e colaboradores desde que se conheceram. “Ele foi também o meu aliado para levar minha mãe para fazer pajelança [práticas indígenas de cura] na aldeia, na cidade. E me levar para qualquer emergência, levar minha mãe para o hospital.”
Para Nelly, o trabalho de Pereira com os indígenas da Amazônia não era apenas um trabalho, era um chamado: “O Bruno, desde que chegou, sempre quis ter um elo mais forte com a base, [com] as lideranças da aldeia”. Ela diz que ele “sempre queria estar ali com as pessoas da aldeia, não [com] os que estão na cidade”.
Nelly pertence ao povo Yura Rasi, ou o povo do corpo. Para o resto do mundo, eles são conhecidos como Marubo, grupo indígena que vive no Vale do Javari, no Amazonas, uma região compartilhada com o povo Kurubo de recente contato e 24 grupos de indígenas isolados que ainda vivem como caçadores-coletores nômades tradicionais nas matas fechadas das florestas tropicais.
Pereira trabalhava como guia e barqueiro para Phillips, que estava pesquisando e escrevendo um livro provisoriamente intitulado “Como salvar a Amazônia”.
À primeira vista, Pereira era considerado o homem ideal para ajudar Phillips – ele conhecia bem a região, pois trabalhava lá há muitos anos. Na verdade, porém, seu trabalho fez com que ele tivesse muitos inimigos, sobretudo aqueles que desejavam explorar os recursos naturais do Vale do Javari e tirar proveito de sua localização isolada e remota, dizem os indígenas.
Pereira foi um dos indigenistas mais experientes do país. Ele trabalhou na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), coordenando o delicado relacionamento entre os grupos de indígenas isolados remanescentes e o mundo exterior.
No entanto, assim como o IBAMA, a Funai foi desmanteladano governo Bolsonaro. No mês seguinte à posse de Bolsonaro, Pereira disse a este repórter e à editora e repórter investigativa da Mongabay, Karla Mendes, na sede da Funai em Brasília: “O Estado Brasileiro tem por atribuição, dentro da sua Constituição — e o Supremo [Tribunal Federal] tem que zelar — a demarcação de terras indígenas. Seja onde estiver esse local, ele vai ter que continuar a demarcação de terras como atribuição da nossa Constituição. Então, deixa todo mundo um pouco em sobreaviso, em polvorosa, mas a gente continua trabalhando.” Ele conversou conosco quando codirigimos e coproduzimos um documentário sobre os Guardiões da Floresta, um grupo de indígenas Guajajara que arrisca suas vidas para proteger a Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, contra madeireiros ilegais e também para proteger os indígenas isolados Awá que vivem no mesmo território.
No entanto, teria sido cada vez mais difícil para Pereira fazer seu trabalho em meio à atmosfera anti-indígena provocada por Bolsonaro, que prometeu não demarcar nem mais um centímetro de terra para os povos indígenas. Em 2019, Marcelo Xavier da Silva assumiu o comando da Funai, apesar de ter um histórico contra os interesses indígenas e ser visto como um aliado dos ruralistas. Pereira tirou uma licença da Funai, provavelmente esperando retornar quando o comando do país voltasse a ficar alinhado com os direitos indígenas. Em vez disso, ele dedicou seu tempo a ajudar os povos indígenas e jornalistas como Dom Phillips a fazer reportagens na Amazônia.
Nelly conta que Pereira era claramente mais motivado pelo trabalho de campo do que pela papelada do trabalho burocrático. E, segundo ela, aumentar o trabalho de campo significava monitorar, vigiar e impedir que garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais invadissem essa remota região amazônica. “Ele não gostava muito de trabalhar na administração. Ele dizia que não era para ele. Ele queria muito ir para a frente de proteção [ambiental da Funai]”.
Ao longo dos anos, continua Nelly, o papel de Pereira nas comunidades indígenas onde ele trabalhava mudou. “Ele trabalhou fazendo fiscalização territorial, treinando os meninos, junto com eles. Primeiro, ele foi aprender. Depois ele começou a fazer estratégias junto [com eles], vendo o mapa, como é que eles iam fiscalizar o território”.
O legado de Pereira
Com o passar do tempo, Nelly descreve, Pereira começou a treinar seus parceiros indígenas de fiscalização para o uso de tecnologias modernas. “O preparo de uso do GPS, o uso do drone. Ele fazia com que todos os jovens indígenas pudessem fazer o trabalho”.
Estudos mostram que os indígenas são os melhores guardiões da Amazônia e é de fundamental importância o trabalho que estão fazendo, dizem os especialistas. Como a Mongabay reportou recentemente, jovens Yanomami foram cooptados por atividades ilegais. Segundo Nelly, Pereira entendeu bem isso: “Ele fazia com que todos os jovens indígenas pudessem fazer o trabalho, que vissem com seu olhar a importância de fiscalizar. O que é fiscalizar? (…) Ele fazia com os jovens indígenas expressassem por que eles queriam fiscalizar”.
Nelly relata o impacto real que o trabalho de Pereira teve para o fortalecimento das comunidades onde ele trabalhou: “Muitos indígenas de várias etnias também passaram a trabalhar dentro do movimento. … Então, a gente está vivendo muito mais a força das etnias”.
Grupos indígenas lutam há décadas pela demarcação de suas terras, que, apesar de garantidas constitucionalmente, são frequentemente invadidas por madeireiros ilegais, caçadores, fazendeiros, traficantes de cocaína e garimpeiros. Cabe a indigenistas como Pereira ajudar grupos indígenas como os Marubo a administrar seu relacionamento com o mundo exterior e o Estado brasileiro – uma das missões da Funai. No entanto, Nelly diz que Bolsonaro e seus aliados acusam os indígenas de influenciar os indígenas, o que ela nega. “Ele [Bolsonaro] está sempre dizendo que os indígenas não pensam [por si mesmos], que os indígenas estão fazendo muito tumulto por causa dos indigenistas. Mas, na verdade, é a gente que faz, é a gente que vai atrás. A gente [é] que pressiona os indigenistas a nos apoiar”.
Para Nelly e os indígenas que a vida de Pereira tocou, não há sinal de que vão desistir de lutar por suas terras garantidas constitucionalmente: “Todas as pessoas que são guardiões da floresta dependem da parte de fiscalização. Então, foi isso que ele deu para nós. Eu vejo que os jovens valorizam hoje, sempre, qualquer coisa que vão fazer, [eles] mencionam”, diz ela. “ Se ele fez isso para a gente, a gente tem que passar para os outros jovens. (…) A gente vai morrendo ou vivendo, a gente vai ter que proteger.”
Em nossa entrevista de fevereiro de 2019, um Pereira aguerrido declarou claramente suas esperanças para a Amazônia. “A nossa expectativa é essa: que realmente se acabe com as madeireiras que estão invadindo, que os caras que botam fogo que sejam presos, que se afaste qualquer estrada que se extraia madeira dentro da terra indígena, que se mude um olhar econômico para a região”, disse ele, apesar das restrições do governo Bolsonaro aos funcionários da Funai de falar com a imprensa. “
Quase exatamente quatro anos depois, essas são as demandas que o novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá de cumprir.
“Perdemos o maior aliado”, diz Nelly, referindo-se ao legado de Pereira aos indígenas.
Imagem do banner: O indigenista Bruno Pereira (esquerda) e Nelly Marubo (direita). Imagens cortesia de (esquerda) Daniel Marenco/Agência O Globo e (direita) Max Baring.
Citação:
Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação; Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e Caribe. (2021). Forest governance by Indigenous and tribal peoples: An opportunity for climate action in Latin America and the Caribbean (Governança florestal por povos indígenas e tribais: uma oportunidade para ação climática na América Latina e no Caribe, em uma tradução livre). Food & Agriculture Org.