O aumento do manejo de açaí para atender ao mercado internacional tem levado à perda da biodiversidade e a mudanças estruturais nas floresta de várzea da região da foz do Rio Amazonas, no Pará.
Nos últimos dez anos, as exportações de açaí aumentaram quase 15 mil por cento; o Pará detém 95% da produção nacional.
Em áreas onde deveria haver cerca de 70 espécies de plantas por hectare, surgiu praticamente uma monocultura de açaí, com até mil touceiras (conjunto de palmeiras) por hectare.
Alternativas sustentáveis, também no Pará, têm conseguido preservar as florestas de várzea, aumentar a produtividade e ainda obter um fruto de qualidade melhor.
O açaí sempre fez parte da dieta dos amazônidas. A frutinha redonda, de cor roxa, que cresce em cachos da palmeira Euterpe oleracea, é consumida praticamente todos os dias pelos moradores da região. Mas em meados dos anos 90 ela virou mania nas academias do Rio de Janeiro e São Paulo. A fama de seus benefícios nutricionais, rica em antioxidantes, fibras e com alto valor energético, conquistou rapidamente os consumidores da região Sudeste.
Com o mundo globalizado no qual vivemos, não demorou muito para a fruta amazônica chegar também ao mercado internacional. Segundo dados da Federação das Indústrias do Estado do Pará (Fiepa), nos últimos dez anos houve um aumento de quase 15 mil por cento nas exportações do açaí (14.380% em número exato). Há uma década, eram pouco mais de 40 toneladas vendidas para o exterior. No ano passado, este número pulou para 5.937 toneladas. Apenas entre 2019 e 2020, o setor deu um salto de 51%.
O Pará é o maior consumidor interno e também maior exportador da fruta (na forma de polpa congelada): 95% da produção nacional sai do estado. E para atender esta demanda interna e externa gigantesca, a área plantada, tanto em terra firme como em manejo de várzea, passou de 77,6 mil para 188 mil hectares em dez anos.
Toda essa demanda, porém, trouxe sérios impactos sobre as florestas de várzea onde o açaí é cultivado, conforme revela um artigo científico divulgado na publicação Biological Conservation. O estudo, que tem como autor principal o biólogo paraense Madson Freitas e conta com a contribuição de pesquisadores de instituições nacionais e internacionais, analisou 47 áreas de várzea na região da foz do Rio Amazonas, no Pará, onde é realizado o manejo de açaizeiros.
A pesquisa aponta que, com a derrubada de árvores nativas dessas florestas para expandir o cultivo do açaí, houve redução do número de espécies e funções nesse ecossistema amazônico, caracterizado por matas que crescem à margem de rios de águas barrentas, sujeitas às cheias. “Percebemos ausência de espécies de árvores típicas da várzea em ambientes com monocultivo, principalmente plantas de sombra, que ajudam na ciclagem de nutrientes e abrigam espécies da fauna como pássaros e insetos”, conta Freitas.
O biólogo explica que o açaizeiro é uma planta acostumada com muito sol e água, já que cresce nas várzeas, que sofrem inundações a cada seis horas. Suas raízes são superficiais e precisam de muitos nutrientes, garantidos justamente pela diversidade de espécies na mata e pelo vai e vem do rio, que traz matéria orgânica para a terra.
“Ao retirar a vegetação em torno dos açaizeiros, os ribeirinhos estão impactando a produtividade da floresta. E sem ela, por exemplo, diminui também o número de insetos polinizadores, essenciais para a produção do açaí, conforme já ficou comprovado em outro estudo, de 2018”, diz.
O que fica claro para os pesquisadores é como o aumento do manejo para atender a demanda do mercado levou a uma mudança florística e estrutural na floresta de várzea.
“Produtores passaram a ignorar a biodiversidade local. Outras plantas da várzea foram sumindo e isso compromete a funcionalidade da floresta como um todo. Em algumas áreas você tem praticamente uma monocultura do açaí, quando o normal seria ter até 70 espécies diferentes de árvores e palmeiras por hectare nessas áreas”, afirma Ima Vieira, pesquisadora do Museu Paraense Emilio Goeldi, com PhD em Ecologia e especialista em estudos de resiliência da Floresta Amazônica frente ao desmatamento.
“Antes do boom do açaí, sempre houve uma produção doméstica para atender a demanda local. Até então, esse símbolo da tradição alimentar da Amazônia tinha pouco impacto, mas quando ganha fama e demanda, a situação muda”, ressalta Vieira.
Quantidade não aumenta produtividade
Uma Instrução Normativa de 2013 da Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Pará já determina o número máximo de estipes (troncos) do açaizeiro que pode ser colhido por unidade de área, de forma a garantir a produção contínua e o “não comprometimento da população da espécie nas florestas de várzea”. Segundo a legislação, pequenos produtores devem extrair o máximo de 200 estipes e manejar o máximo de 400 touceiras (conjunto de plantas) por hectare.
Todavia, não é isso o que acontece na realidade. A pesquisa liderada por Madson Freitas encontrou até mais de mil touceiras por hectare em algumas propriedades. Por falta de orientação, muitos agricultores acreditam que uma maior quantidade de açaizeiros será garantia de uma colheita melhor no final da safra, embora não funcione dessa maneira. “Quando parte da floresta é preservada, os serviços ambientais funcionam adequadamente e o volume e a qualidade dos frutos é melhor”, garante o biólogo.
Em seu primeiro estudo publicado em 2015, o biólogo verificou que o manejo acima de 400 touceiras por hectare reduz pelo menos 60% das espécies de várzea. Por esta razão, a recomendação feita através do artigo na Biological Conservation é para que a instrução normativa do estado seja revista e se desenvolva um programa de recuperação florestal com replantio das espécies nativas. O texto também sugere que a fiscalização ganhe reforço e a regulamentação do manejo volte a ser rediscutida por governo, produtores e especialistas.
Alternativa sustentável
Em alguns lugares da Amazônia, o manejo sustentável proposto pelo artigo já é uma realidade. Uma das iniciativas que apostam nessa alternativa é o Centro de Referência em Manejo de Açaizais Nativos no Marajó, ou Manejaí, projeto desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Criado em 2016, o projeto promove a formação dos agricultores ribeirinhos nas técnicas de produção de baixo impacto do açaí. Os workshops já foram realizados em mais de dez comunidades da região e capacitaram entre 400 e 500 moradores. Após o curso, alguns se tornam multiplicadores daquilo que aprendem.
“O manejo sustentável é o mais viável e correto”, diz Teofro Lacerda, coordenador do Manejaí e morador da comunidade ribeirinha Santa Ezequiel Moren, no município de Portel, no Pará. “Com ele conseguimos aumentar a produtividade e obter um fruto com qualidade melhor. Mas as pessoas têm que valorizar mais esse produto, pois seu manejo dá muito trabalho. E as empresas que compram também precisam ter um compromisso social com as nossas comunidades”.
Lacerda diz que, na safra do açaí, que acontece entre junho e setembro, ele consegue colher 5.600 kg da fruta por hectare. Dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento apontam que em açaizais não manejados, a produtividade gira em torno de 4.500 kg de frutos/ha.
Ima Vieira defende a melhoria das práticas de manejo, mas alerta que qualquer discurso de sustentabilidade deve levar em conta que quase a totalidade da produção do açaí nas várzeas do estuário é feita por agricultores familiares ribeirinhos.
“Do ponto de vista econômico e social, a alta na demanda melhorou muito a vida dos ribeirinhos, sem dúvida, por isso qualquer política pública precisa ser cuidadosa”, afirma Vieira. “Tentar conciliar conservação das florestas e o desenvolvimento local mediante a intensificação da produção de produtos florestais não madeireiros na Amazônia pode resultar em ações malsucedidas em razão da compreensão limitada acerca da complexidade dos fatores que afetam essa produção”.
Frutos de açaí. Foto: Wenderson Nunes.