Em dezembro, a Tesco,a Nutreco e a Grieg Seafood – três empresas ligadas à indústria de pescado – lançaram uma iniciativa pioneira com objetivo de reduzir o desmatamento no Cerrado por meio de pagamentos para produtores para que conservem a vegetação nativa de suas terras.
A “Funding for Soy Farmers in the Cerrado Initiative” (Iniciativa de Financiamentos para Produtores de Soja no Cerrado, em tradução livre) já reuniu mais de 13 milhões de dólares em compromissos para incentivar que agricultores evitem novos desmatamentos, e em vez disso produzam em terras que já haviam sido transformadas para agricultura. Um mecanismo para distribuição de fundos ainda será criado.
Os objetivos da iniciativa estão em linha com os do Manifesto do Cerrado, um pacto voluntário já assinado por mais de 60 organizações para a proteção do bioma. Apoiadores querem que a produção de soja seja limitada aos 38 milhões de hectares já convertidos de savana em terras agrícolas. Um dos principais pontos é que companhias transnacionais de commodities, como a Cargill, não assinaram.
Três grandes empresas ligadas à indústria de pescado anunciaram uma iniciativa conjunta para acabar com o desmatamento relacionado à soja no Cerrado.
A Funding for Soy Farmers in the Cerrado Initiative (FSFCI) fornecerá aos produtores de soja brasileiros incentivos financeiros para garantir que a futura expansão do cultivo da leguminosa no bioma seja feita apenas em terras agrícolas existentes. A medida tem objetivo de proteger a vegetação nativa acima e além da porcentagem do que deve ser legalmente conservado em terras particulares sob o Código Florestal Brasileiro, de acordo com Andreas Kvame, CEO da Grieg Seafood.
Os membros fundadores da FSFCI são a Nutreco, uma das maiores produtoras de alimentação aquática do mundo; a Grieg Seafood, um criatório de salmão sediado em Bergen, na Noruega; e a Tesco, uma grande cadeia de supermercados sediada em Hertfordshire, na Inglaterra.
Embora o mecanismo exato para a distribuição destes fundos ainda não tenha sido desenvolvido, a Tesco doará 13,1 milhões de dólares à iniciativa ao longo dos próximos cinco anos, enquanto a Nutreco se comprometeu com 1,1 milhão de dólares anualmente ao longo do mesmo período. A Grieg Seafood irá contribuir com 2 dólares por tonelada de soja usada anualmente pela empresa na alimentação de peixes, também ao longo dos próximos cinco anos.
Um plano viável de desmatamento zero
O programa é diferente em um ponto importante da amplamente bem sucedida, embora controversa, moratória da soja na Amazônia, lançada em 2006 para conter o desmatamento ilegal no bioma.
“A iniciativa [do Cerrado] tem o objetivo de eliminar não só o desmatamento ilegal, mas também o desmatamento legal”, explica o diretor corporativo de sustentabilidade da Nutreco, José Villalon. “Isso permitiria a participação de um agricultor que tem permissão para o desmatamento [sob o Código Florestal Brasileiro] — garantindo que ele passe por todo o panorama legal — para se comprometer a não desmatar qualquer nova terra e receber pagamento por não desmatar”.
Na maior parte do Cerrado, proprietários rurais podem desmatar legalmente até 80% de suas propriedades sob o Código Florestal Brasileiro. Na Amazônia Legal, em comparação, apenas cerca de 20% podem ser legalmente desmatados.
Como agricultores já podem desmatar legalmente grande parte de suas terras, criar incentivos positivos para produtores, ao invés de multas e outras punições, é visto por muitos analistas como essencial para coibir com sucesso novos desmatamentos causados pela soja, diz Rachael Garrett, professora assistente de políticas ambientais na ETH Zürich que estuda a produção de soja brasileira há mais de uma década.
“Dada a ampla área que é claramente desmatável no Cerrado, há certa dissonância entre o que empresas estão pedindo e o que o panorama legal do país permite, o que dá mais credibilidade para incentivos positivos”, diz Garrett. “Acredito que é por isso que você vê o incentivo da Nutreco acontecendo neste formato, e isso realmente precisa ser visto no contexto do que farão políticas de desmatamento zero politicamente viáveis na região”.
Alimentando a razão do desmatamento
A produção global de soja duplicou — e até mesmo triplicou em alguns países — desde 2000, impulsionada em partes por um aumento na demanda mundial de carne. No Brasil, ao longo dos últimos doze anos, mais de 2 milhões de hectares de floresta e vegetação nativa — uma área equivalente à metade da Suíça — foi desmatada para o cultivo de soja. Mais de 80% do desmatamento relacionado à produção de soja acontece no Cerrado, cuja preservação é vital tanto por sua imensa biodiversidade quanto por sua extensa capacidade de armazenamento de carbono no solo e em plantas, uma proteção contra a crise climática.
No entanto, mais da metade da vegetação original do bioma já foi convertida para a agricultura, e apenas 20% permanecem intactos — grande parte na região da divisa de Piauí, Bahia e Tocantins, uma área atualmente na fronteira da expansão da soja. Há poucas unidades de conservação na região para conter a expansão, de modo que a preservação depende amplamente da cooperação de proprietários de terras.
“O Cerrado tem muito menos proteção legal e tem menos áreas protegidas; as áreas remanescentes são muito menos protegidas e muito mais vulneráveis”, diz Garrett. “Isso é o que o transforma na região mais ameaçada no setor do cultivo de soja no mundo, e criticamente importante em termos de seu valor de conservação”.
Cerca de três quartos de toda a produção de soja no mundo vão para a alimentação de animais, com o restante sendo usado para biocombustíveis e produção de alimentos. A soja é um ingrediente primário para alimentação de gado, porcos e galinhas, e cada vez mais importante para a indústria da aquicultura. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que o consumo de soja por peixes irá crescer 1,2% anualmente ao longo da próxima década.
A alimentação na aquicultura— usada para criar salmões, por exemplo — era historicamente feita de outros peixes. No entanto, nos últimos anos, a preocupação de consumidores com a sobrepesca fez com que companhias buscassem uma alternativa sustentável. As empresas encontraram esta possibilidade na leguminosa, rica em proteína. Entretanto, a soja não é a solução perfeita, pois gera uma série de problemas ambientais.
“A demanda elevada por soja está impulsionando o desmatamento. Ao tentar solucionar um desafio de sustentabilidade no mar, criaram outro na terra”, diz Villalon.
Buscando soluções
Em outubro de 2017, a Nutreco foi um dos 23 signatários fundadores da Declaração de Apoio ao Manifesto do Cerrado, em tradução livre). O manifesto, lançado em setembro de 2017, era um pedido de ação de mais de 60 ONGs, fundações e institutos científicos do Brasil para o fim da conversão de vegetação nativa no bioma. Atualmente, a declaração é endossada por quase 140 empresas. No entanto, apesar dos compromissos no papel, pouco foi alcançado na região para impedir o desmatamento. Empresas transnacionais de commodities, como Cargill, ADM e Bunge, até o momento não apoiaram o manifesto.
Se a Nutreco, a Testo e a Grieg Seafood “forem bem sucedidas nesta nova iniciativa, esta será uma das maiores histórias a ser contadas neste ano”, diz Frederico Machado, especialista em políticas públicas do programa de Alimentação e Agricultura da WWF-Brasil. “2020 é o prazo para compromissos feitos sob a Declaração de Nova York sobre Florestas, sob o Fórum de Bens de Consumo e sob muitos outros acordos individuais do setor. Esperamos que [as três organizações] consigam colocar outras a bordo e que a implementação realmente alcance seu objetivo de parar o desmatamento para o cultivo de soja”.
O novo fundo é atualmente projetado como um compromisso de cinco anos das três companhias. A Nutreco estima que cerca de 250 milhões de dólares serão necessários ao longo de um período de cinco anos para alcançar o objetivo de acabar com o desmatamento associado à soja e com a conversão do bioma. As empresas que assinaram a declaração de apoio ao Manifesto do Cerrado podem se juntar ao fundo, segundo Villalon, assim como empresas internacionais da cadeia de valor da soja, fundações e governos.
A primeira do tipo a oferecer grandes incentivos financeiros para agricultores de soja, a nova iniciativa segue outros esforços liderados pelo setor empresarial com objetivo de proteger a biodiversidade do Cerrado. Em setembro, a Tyson Foods, como parte de sua expansão global, se juntou à Mesa Redonda sobre Soja Responsável, um dos maiores grupos internacionais de certificação de soja. A empresa se comprometeu a usar apenas soja sustentável do Brasil. Em dezembro, um grupo conhecido como “Aquaculture Dialogue on Sustainable Soy Sourcing from Brazil” (Diálogo da Aquicultura sobre Soja Sustentável Proveniente do Brasil, em tradução livre) estabeleceu termos para monitorar cadeias de soja sustentável para produção de salmão.
Garrett alerta que estes tipos de incentivos só são eficazes se ampliados para incluir mais produtores, empresas de commodities e varejistas, e feitas para operar no longo prazo. Tais políticas também precisam deixar claro a todas as partes envolvidas a exclusão da conversão de florestas e vegetações nativas da expansão da produção da soja.
“Acho que é fantástico que mais e mais empresas estejam tentando responder essas questões no Cerrado, mas esforços para melhorar a governança no setor privado na região devem ser vistos como um trabalho em andamento e deve haver uma avaliação sistemática do que funciona melhor, ao invés de uma abordagem focada totalmente em um só ponto”, conclui Garrett. “Para que isso seja bem sucedido, precisam trabalhar com partes e autoridades locais para aumentar a aplicação de leis existentes e incluir agricultores na formulação e nas decisões políticas.”
Imagem do banner: silos de soja no Cerrado. Foto: Sarah Sax/Mongabay.
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