Pelo menos 14 reservas indígenas foram invadidas ou ameaçadas de invasão, segundo a Repórter Brasil, agência de notícias online e parceira da Mongabay. Ameaças e atos de violência contra comunidades indígenas estão aumentando consideravelmente desde a posse do presidente Jair Bolsonaro.
Líderes indígenas afirmam que a linguagem incitante de Bolsonaro contra os povos indígenas ajudou a instigar essa violência, apesar de o governo negar, com um oficial afirmando que a administração vai “parar essa ilegalidade”. Os líderes indígenas apontam que, até o momento, o governo não tem aplicado o rigor da lei nesses tipos de crise.
Dentre as recentes ameaças e ataques, um importante líder indígena, Rosivaldo Ferreira da Silva, da tribo dos Tupinambás, alega que soube de uma conspiração feita por proprietários de terra e pelas polícias civil e militar para assassinar a ele e a sua família. As reservas Uru-Eu-Wau-Wau e Karipuna, em Rondônia, foram invadidas por grileiros e madeireiras ilegais.
Outros cinco territórios indígenas perto da cidade de Altamira, no Pará, também sofreram invasão.
No início de fevereiro, um dos principais líderes indígenas brasileiros, Rosivaldo Ferreira da Silva, conhecido como Cacique Babau, teve uma reunião de emergência com integrantes do governo e organizações de direitos humanos para denunciar uma conspiração contra sua vida e de sua família.
Ele pediu uma ação urgente por parte das autoridades para investigar a conspiração e conseguir proteção. O cacique foi a Brasília, onde foi recebido pelo chefe da Procuradoria-Geral da República.
Rosivaldo é um dos líderes dos Tupinambás, tribo de 4.600 integrantes, que mora na Reserva Indígena Tupinambá de Olivença, região de 47.000 hectares no sul da Bahia, localizada nos biomas da Caatinga e Mata Atlântica, que tem enfrentado grande desmatamento devido à expansão do agronegócio. Há dez anos a FUNAI declarou a terra como sendo uma reserva, mas ela ainda não foi demarcada por conta de atrasos do Ministério da Justiça para publicar o documento final de aprovação.
A criação da reserva é fonte de constante conflito entre proprietários de terra locais e donos de hotéis que questionam o direito da tribo indígena de ocupar o território – especialmente agora, que a terra valorizou muito, e que grandes produtores agrícolas buscam por mais locais para aumentar a exportação de plantios.
O cacique declarou que tem “provas contundentes” de um encontro recente na cidade de Itabuna entre grandes proprietários de terra e de homens das polícias civil e militar, promovido para discutir uma conspiração para matá-lo. Um dos planos, afirma Rosivaldo, era de parar ele e sua família em uma estrada, plantar drogas e armas em seu carro e matar todos os passageiros, incluindo suas duas sobrinhas, e alegar que o cacique reagiu ao ataque.
Rosivaldo declarou à Folha de São Paulo que o objetivo do pequeno grupo de conspiradores era “se apossar do território Tupinambá”. Ele se preocupou, acima de tudo, que o plano pudesse manchar a imagem de seu povo: “Somos Tupinambás, e não temos medo da morte”, afirma. “O que nos revolta é que esse plano denigre o nosso nome. Vivemos pacificamente toda a nossa vida e então, quando morremos, eles alegam que somos traficantes de drogas! Isso é como matar alguém duas vezes!”
Até o momento, a Secretaria de Justiça do governo da Bahia, a quem o cacique dirigiu a queixa, não quis comentar o caso. A Procuradoria-Geral da República emitiu uma nota declarando que iria “acompanhar o trabalho das autoridades para garantir a segurança de Rosivaldo e de sua família”.
Um grupo de 25 antropólogos e pesquisadores que trabalham com os Tupinambás emitiram uma declaração, em 13 de fevereiro, em que convocam as autoridades a “abrir uma investigação urgente para cuidar das ameaças e planos de assassinato contra o povo Tupinambá”, “para tomar medidas imediatas e efetivas de proteção à tribo, em especial ao Cacique Babau” e para que o governo termine o processo de demarcação, o que, com sorte, pode acabar com anos de conflito.
Entretanto, a demarcação está longe de acontecer: o presidente Bolsonaro já declarou há tempos que ele se opõe veemente à demarcação de mais terras indígenas. E o governo se referiu especificamente a essa reserva como uma das que ele quer reconsiderar para verificar se o pedido dos índios é válido.
Uma onda de conflitos indígenas
A ameaça ao povo Tupinambá e a seu líder não é um caso isolado. Desde o começo do ano, ações contra os índios foram reportadas em todo o Brasil. Em uma matéria recente, a Repórter Brasil, agência de notícias online, sem fins lucrativos, e parceira da Mongabay, afirma que pelo menos 14 reservas indígenas foram invadidas ou sofreram ameaças de invasão.
Desde o começo de 2019, grileiros têm sido ousados em suas ações contra dois grupos indígenas em Rondônia, os Uru-Eu-Wau-Wau, que sofreram uma grande invasão feita por madeireiras ilegais em 12 de janeiro, e os Karipuna.
Em 20 de janeiro, dois homens da tribo Karipuna, do vilarejo de Panorama, caminhavam pela floresta rumo a um encontro com médicos da Secretaria Especial de Saúde Indígena, quando descobriram 20 invasores em seu território.
Os desmatadores ilegais ignoraram o pedido dos indígenas para irem embora. “Os invasores construíram ruas e desmataram uma grande quantidade de floresta!”, declarou um líder indígena ao Greenpeace. “Eles estão dizendo que vão invadir nosso vilarejo, queimar nossas casas, matar nossas galinhas, nossos três principais líderes… a FUNAI não vê o que eles estão fazendo ao nosso povo? Eu não consigo entender!”
No entanto, parece que a FUNAI, sob a administração Bolsonaro, não está mais em condições de responder vigorosamente. O novo governo retirou o órgão do poderoso Ministério da Justiça e o dividiu em dois, deixando a responsabilidade de demarcação de territórios indígenas para o Ministério da Agricultura, famoso pelo seu favoritismo ao agronegócio e hostilidade contra os direitos de terra dos indígenas. As tarefas rotineiras de administração da FUNAI estão sob responsabilidade do novo Ministério das Mulheres, Família e Direitos Humanos, um ministério guarda-chuva, tido como supostamente subfinanciado e fraco. “Não sabemos como iremos fazer nosso trabalho sem o contato direto com a Polícia Federal (que continua parte do Ministério da Justiça)”, afirma, anonimamente, um funcionário da FUNAI.
Apesar dessas mudanças, a administração ainda é obrigada a cumprir a lei. A divisão de Rondônia do Ministério Público Federal tem solicitado, continuamente, ao governo Bolsonaro, que tome atitude para remover os invasores das reservas dos Uru-Eu-Wau-Wau e dos Karipuna. O MPF advertiu que “a situação está ficando cada vez pior, está se tornando insustentável”, com o risco de “conflitos sangrentos”.
Os Karipuna são especialmente vulneráveis, por conta das sucessivas ondas de ocupação. O primeiro ataque aconteceu no início do século 20, quando Percival Farquhar, um rico empreendedor da Pensilvânia, Estados Unidos, aceitou o desafio de construir a estrada Madeira-Mamoré, que liga o Brasil à Bolívia para a exportação de borracha da Amazônia.
Vencendo imensos problemas logísticos, Percival terminou a estrada. Mas o custo humano foi terrível: é estimado que entre 6 a 20 mil funcionários morreram, especialmente de malária e febre amarela. Os Karipuna, que atacaram os construtores da estrada, foram brutalmente reprimidos e forçados a trabalhar para os barões da borracha.
Ao longo do século 20, os Karipuna continuaram a sofrer e a morrer, principalmente de doenças invasoras, com sua população diminuindo para apenas quatro indivíduos nos anos 1970. Esses números começaram a se recuperar. No começo dos anos 1980, um grupo de trabalho demarcou um território ancestral, e em 1988 uma reserva Karipuna foi inaugurada oficialmente. Hoje, há 58 Karipunas conhecidos. No entanto, pode haver mais, que ainda não foram contatados, com pequenos grupos vistos, ocasionalmente, correndo floresta adentro.
Atualmente, os Karipuna são muito poucos e muito fracos para organizar uma resistência efetiva contra grileiros, que são determinados. Eles acreditam que a atual onda de ataques possa ser altamente mal-intencionada e motivada pelo ódio que os invasores sentiram quando o líder Karipuna, Adriano Karipuna, viajou a Nova York, em abril de 2018 para denunciar publicamente as ameaças enfrentadas por seu povo no Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas.
Os Karipuna, assim como os Uru-Eu-Wau-Wau, fizeram pedidos urgentes de proteção dentro da lei para as autoridades federais e estaduais. Eles afirmam que, até agora, o governo não tomou medidas significativas. O MPF teme que a atual ofensiva de grileiros possa completar o processo em andamento já há quase um século – a aniquilação final dos Karipuna. Esse é um alerta de “genocídio iminente”.
Outros ataques violentos aos direitos indígenas estão sendo relatados em todo o Brasil. Os Pankararu, grupo indígena de Pernambuco, sofrem há tempos com conflitos. Mas em 28 de outubro, o mesmo dia em que Bolsonaro ganhou as eleições, a violência contra o grupo escalou quando um grupo de invasores ateou fogo ao posto de saúde dos Pankararu.
Os invasores também ameaçam os Tembés e os Timbiras, tribos da Reserva Indígena Alto Rio Guamá, no Pará. Um de seus líderes, que não quer ser identificado, declarou que os índios receberam cartas de ameaça dizendo que “o tempo de Lula acabou e que o tempo de Bolsonaro chegou”. Outros cinco territórios indígenas perto da cidade de Altamira, no Pará, também relataram invasões.
Tribos que resistem
Algumas tribos indígenas resistem ao que alguns líderes chamam de “liberdade para todos”. Os Guajajara, um grande grupo indígena do Maranhão, montaram patrulhas de “Guardiões da Floresta”, que contam com mais de 120 índios. Eles confrontam e expulsam grileiros. “Eu não sei quantas vezes já expulsamos grileiros de nossa terra”, afirma Tainaky, um dos guardiões.
Entretanto, muitos povos indígenas temem que, sem uma ação decisiva por parte das autoridades, a lei possa se deteriorar. “As invasões serão intensificadas”, prevê Adriano Karipuna. “O Bolsonaro declara que os índios não precisam de terra e que são preguiçosos, que eles são como animais no zoológico. E agora, o homem que disse essas coisas terríveis está no poder”.
Esequiel Roque do Espírito Santo, subsecretário de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial do novo Ministério da Família, Mulheres e Direitos Humanos, nega qualquer retrocesso na força da lei por parte da administração Bolsonaro. Em uma visita feita em fevereiro à Reserva Indígena Uru-eu-wau-wau para cuidar da invasão sofrida em janeiro, ele declarou: “Queremos mandar uma mensagem de que o estado está fechado, que estivemos lá para acabar com a ilegalidade”. No entanto, a Reserva Uru-eu-wau-wau ainda espera mais auxílio para o cumprimento da lei.
A antropóloga Daniela Alarcon, uma das signatárias da carta de apoio aos Tupinambás, teme que as declarações inflamadas feitas por Bolsonaro no passado possam incitar violência. Ela declarou à Mongabay: “As contínuas declarações contra os indígenas feitas por Bolsonaro serviram de sinal verde para aqueles que se opõe aos índios façam justiça com as próprias mãos. Eles acreditam que serão apoiados e legitimados pelo governo se agirem dessa forma”.
Cleber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário, acredita que houve uma mudança perigosa na política com o novo presidente: “Estamos testemunhando uma nova fase de tomadas ilegais e criminosas de terras indígenas feitas por grupos econômicos. Os grileiros são encorajados e protegidos pelas políticas indigenistas do governo Bolsonaro. A retórica contra os direitos constitucionais dos índios feita durante a campanha reflete agora nos atos administrativos”.
De fato, o presidente fez promessas exageradas à indústria do agronegócio e aos ruralistas durante a campanha eleitoral; e eles pagaram em espécie ao se tornarem seus aliados políticos íntimos. Se os eventos recentes servem de indícios, e se a violência e exploração rural aumentarem, os grupos indígenas brasileiros e a Floresta Amazônica podem pagar um alto preço para satisfazer a base política de Bolsonaro.
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