Os pulsos de inundação são indispensáveis para a forma como o rio Amazonas, seus afluentes e outros rios tropicais funcionam — e tais inundações sazonais são grandes determinantes de produtividade e diversidade ecológica.
As florestas de várzea dependem dos pulsos de inundação anuais para trazer os nutrientes e sedimentos dos canais dos rios para o habitat terrestre.
A diminuição dos pulsos de inundação, acarretada pelas barragens grandes e pequenas do rio Amazonas, podem causar modificações na diversidade e composição das espécies de árvores, com implicações para o estoque e emissões de carbono.
Os regimes de cheias não confiáveis, como aqueles criados por barragens de todos os tamanhos, impactam significativamente os ciclos de vida das espécies e os sistemas do rio Amazonas, a dinâmica da população, as fontes de alimentos e os habitats, acima e abaixo d’água.
De acordo com um estudo recente, os pulsos de inundação ecologicamente importantes ao longo dos rios da Amazônia estão sendo substancialmente modificados pelas barragens hidrelétricas. O estudo também revela que as barragens pequenas têm um impacto desproporcionalmente maior na hidrologia do rio, se comparadas às barragens grandes na região.
O novo estudo, liderado por Kelsie Timpe, da Universidade da Flórida, avaliou o fluxo do rio antes e depois da construção das barragens na Amazônia brasileira.
Pesquisadores pretendiam quantificar os efeitos hidrológicos das barragens e identificar suas características para ajudar a prever o tipo e a escala dos múltiplos impactos. David Kaplan, coautor de Timpe, também da Universidade da Flórida, explica que os dois elaboraram o estudo reconhecendo que “o desenvolvimento das barragens na Amazônia ocasionará efeitos físicos, ecológicos e sociais em cascata, e o ponto crucial destas mudanças consiste em saber como as barragens modificam a hidrologia do rio”. Embora o governo brasileiro tenha anunciado não oficialmente o fim da política de construção de mega-hidrelétricas, muitas barragens de tamanhos variados ainda estão sendo previstas para os afluentes do rio Amazonas.
O novo estudo foi bem recebido e considerado “oportuno e importante” por Isabel Jones, da Universidade de Stirling, no Reino Unido, cuja pesquisa concentra-se nos impactos ecológicos da mega-hidrelétrica de Balbina, localizada no rio Uatumã. Embora não esteja envolvida neste último estudo, Isabel Jones afirma que ele fornece o passo inicial para o desenvolvimento de avaliações de impacto mais robustas e estratégias de mitigação para projetos de hidrelétricas existentes e propostos em bacias hidrográficas importantes, como a Bacia Amazônica.
O estudo analisou 33 parâmetros específicos do regime de escoamento em cinco amplas categorias: magnitude, frequência duração, sincronia e taxa de variação do escoamento do rio. Estes fatores foram escolhidos porque são inextricavelmente ligados à ecologia das espécies e à adaptação na região. Alterações em qualquer dessas categorias ocasionam ramificações para espécies, ciclos de vida, dinâmica da população e viabilidade do habitat acima e abaixo d´água.
Hidrelétricas grandes e pequenas: impactos grandes
Um desafio inicial da pesquisa envolveu a descoberta de estações de medição, localizadas no montante e no justante das barragens do rio Amazonas, que pudessem fornecer comparações das condições antes e depois da construção das barragens. No total, 40 estações associadas com 33 barragens apresentavam tempo de funcionamento suficiente para fornecer análises adequadas. O conjunto de dados incluía 17 barragens grandes com capacidade geradora mínima de 30 megawatts e 16 barragens pequenas com capacidade geradora entre 1 e 30 megawatts. O posicionamento das estações permitiu avaliar o impacto acumulativo de várias barragens no mesmo rio.
O estudo revelou uma mudança 30% na hidrologia por conta das barragens, com variação ampla entre cada estação separadamente. Por exemplo, foram observadas mudanças hidrológicas de mais de 100% no caso da Hidrelétrica de Balbina, e índices abaixo de 10% em estações próximas da Hidrelétrica de Tucurui, no rio Tocantins.
Timpe e Kaplan constataram que o efeito mais significativo de uma hidrelétrica era a frequência e a duração de eventos de marés altas e baixas — os extremos dos pulsos de inundação — e o grau de modificação do nível de água. Impactos a justante eram geralmente maiores que a montante. No caso de múltiplas barragens no mesmo rio, os impactos cumulativos foram incrementais sendo que os impactos mais pronunciados foram a frequência do pulso de inundação, a duração e o grau de mudança.
O estudo também demonstrou que os melhores prognosticadores do impacto hidrológico foram a elevação e o tamanho do reservatório das barragens. Estes dois fatores estão frequentemente ligados, uma vez que barragens baixas quase sempre causam alagamento. A maior parte das barragens em construção ou previstas no Baixo Amazonas estão enquadradas nesta categoria. Não foi surpresa que reservatórios grandes e com pouca elevação, como a Hidrelétrica de Balbina, tenham causados maiores impactos, disse Kaplan: “mas o quadro mudou significativamente quando a capacidade geradora da hidrelétrica foi levada em consideração”.
Quando os resultados do estudo foram dimensionados para refletir o impacto hidrológico por unidade de energia gerada, “as barragens pequenas mostraram causar alterações hidrológicas bastante altas em relação aos seus potenciais elétricos de produção”, disse Kaplan. Algumas apresentaram resultados por unidade de energia ainda piores que hidrelétricas grandes, como a de Balbina. “Isto é particularmente preocupante, tendo em vista os baixos requisitos de licenciamento e monitoramento para estes sistemas pequenos”.
Efeitos ecológicos
Para as espécies que vivem em torno e dentro dos rios amazônicos, mudanças repentinas nos pulsos de inundações anuais significam más notícias. O pulso de inundação “é fundamental para a função do Amazonas e de outros rios tropicais e um grande determinante de produtividade e diversificação”, ressalta Kaplan.
“A água é responsável por uma parte significativa da estrutura física na qual peixes e muitas outras biotas aquáticas vivem”, explica Leandro Castello, um pesquisador de ecologia e conservação da pesca amazônica, no Instituto Politécnico e Universidade Estadua da Virgínia. “Sendo assim, até as menores modificações podem causar efeitos profundos. Por exemplo, um mínimo decréscimo no nível máximo de água alcançado por um rio anualmente pode significar a perda de extensas áreas de alimentação e de desova”, esclareceu Castello.
Kaplan concorda e ainda completa que estas modificações podem interromper “os sinais naturais de desova e prender organismos aquáticos em lagos de várzea ou reter organismos terrestres em ilhas de várzeas”, e ainda reduzir a abundância de invertebrados. Tudo isso provoca um efeito pronunciado em peixes, aves e outros animais que se alimentam de invertebrados e de outros alimentos que têm ligação com os pulsos de inundação. “Descobrimos que os impactos no regime hidrológico podem ser vistos até 300 quilômetros de distância”, diz Kaplan.
Explicando de uma forma simples, a própria floresta necessita de inundações para continuar sendo produtiva e diversificada: a várzea é banhada em nutrientes e sedimentos quando os níveis de água sobem. As florestas de várzea, que “possuem estoques significativos de carbono”, portanto, são vulneráveis às modificações no pulso de inundação, diz Jones. O foco da sua pesquisa, a mega-hidrelétrica de Balbina, é a maior infratora ecológica no estudo de Timpe e Kaplan.
Jones alerta que a redução no pulso de inundação pode provocar modificações na composição das espécies e interações nas florestas de várzea, “como a redução na capacidade de armazenamento de carbono”, o que pode acarretar o aumento das emissões de carbono — uma péssima notíca para o clima global.
Durante a sua pesquisa na Hidrelétrica de Balbina, Jones presenciou problemas que surgiram para os operadores quando os níveis do reservatório baixaram durante a seca. “Num contexto de condições climáticas em mudança, tais períodos de fluxo baixos podem se tornar cada vez mais comuns, e, portanto, os impactos hidrológicos provocados pelas barragens revelados no estudo de Timpe e Kaplan podem ser maiores”.
Resultados do estudo devem estimular mudanças
Em face das centenas de barragens, grandes e pequenas, previstas ou em construção ao longo do Amazonas, este estudo pode ajudar a indicar o caminho para minimizar o estrago ecológico que elas causarão, diz Kaplan. “Esperamos que estes resultados possam ajudar a motivar os planejadores e os elaboradores de políticas públicas para que façam uma avaliação crítica da sustentabilidade das hidrelétricas como alternativa a outras fontes de energia (eólica e solar), particularmente levando-se em consideração que os reservatórios tropicais têm o potencial de emitir quantidades substanciais de metano, um poderoso gás de efeito estufa”.
No Brasil, a pressão política para prosseguir com a construção de barragens grandes e médias continua a existir, principalmente para suprir as necessidades energéticas dos setores de mineração e agronegócios. Assim, “a redução dos impactos ambientais é indispensável, incluindo a otimização na forma como as hidrelétricas operam, tentando imitar o regime de escoamento natural da melhor forma possível. Ou seja, diminuindo a alteração hidrológica sugerida em nosso estudo”, disse Kaplan.
Entretanto, Castello adverte, que a análise feita por Timpe e Kaplan é apenas “a ponta do iceberg” referindo-se aos impactos provocados pela hidrelétrica na hidrologia. Kaplan reconhece a necessidade urgente de considerar outras formas de impactos, especialmente levando em conta o tamanho ideal e o local das barragens para minimizar o estrago. “A localização exerce um fator importante nos impactos gerados pelas barragens, não apenas com respeito à hidrologia, mas também, por exemplo, à passagem migratória dos peixes e aos impactos nas comunidades humanas.
“Nossa análise não avalia como as barragens e os reservatórios afetam a conectividade da biota”, Kaplan aponta, nem trata da interrupção do fluxo de sedimentos vitais desde as cabeceiras andinas até a Bacia Amazônica e estuários.
“Sem um olhar mais crítico nos impactos causados pelas barragens e nas formas para melhor mitigar os seus impactos, a perspectiva para o Rio Amazonas e seus afluentes não é das melhores”, diz Kaplan, e ainda complementa que “cidadãos de países onde há proliferação de barragens também deveriam participar fazendo perguntas importantes, como: “qual será a perda de biodiversidade, o declínio da produtividade pesqueira e a violação dos direitos humanos com estes projetos”?
Citação:
Timpe, K. and Kaplan, D. (2017) The changing hydrology of a dammed Amazon. Science Advances 3: e1700611