Entre processos judiciais, pressões de empresas portuárias e omissões do Estado, a comunidade quilombola de Boca do Rio luta para permanecer em seu território ancestral na região do Recôncavo Baiano.
Obras ligadas ao Porto de Aratu-Candeias aterraram manguezais, desmataram a vegetação e reduziram áreas de pesca e mariscagem, comprometendo o modo de vida e a segurança alimentar dos moradores.
A Justiça já determinou que as terras quilombolas de Boca do Rio fossem tituladas, mas o processo vem enfrentando lentidão.
CANDEIAS, Bahia — Sentada na varanda de sua casa, Aurora do Carmo Celestino, 85, descreve um lugar que já não é o mesmo. Ou melhor, que resiste em meio a camadas de concreto, portarias de segurança e decisões judiciais. Resistir, para ela, também é recordar. E é da sua casa, no alto de um morro enlameado por causa da chuva, que ela aponta para o horizonte e relembra tudo que foi transformado ou ameaçado de desaparecer: a prainha, o manguezal, os bananais, os mariscos e a palha da canabrava que moldavam a vida em Boca do Rio, comunidade quilombola situada às margens da Baía de Aratu, em Candeias, Região Metropolitana de Salvador.
Hoje, essas memórias disputam espaço com o avanço agressivo de empreendimentos portuários e com uma avalanche de ações judiciais que ameaçam apagar um século de história e de presença quilombola no território.
“Tudo ali era mangue. A gente tirava roça, tirava todo tipo de marisco”, lembra Aurora. “Hoje está escasso. Quando essas empresas chegaram, nunca procuraram a comunidade para dizer o que iam fazer. Vinham com máquinas, destruíam o que encontravam e pronto. Não pediam licença, não conversavam com ninguém. Simplesmente se apossavam do território. Nossos pais tinham até medo de retaliação e, muitas vezes, ficavam calados diante dessas invasões.”
Os processos em curso na Justiça Federal revelam o cerco contra Boca do Rio. Em 2019, a Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba), empresa estatal vinculada à Secretaria de Portos da Presidência da República, responsável pela administração dos portos de Salvador, Ilhéus e Aratu, ingressou com uma ação reivindicatória para retomar a posse da área, tratando as famílias quilombolas como invasoras.
O objetivo da empresa é expandir o Porto de Aratu-Candeias. O empreendimento, inaugurado em 1975, atualmente ocupa uma área de mais de 4,1 milhões de metros quadrados, a cerca de 50 quilômetros de Salvador, e é considerado estratégico para o escoamento de combustíveis, granéis e cargas industriais – como enxofre, fertilizantes, amônia, GLP, nafta, derivados de petróleo e minério de ferro. Atualmente, operam no porto empresas como Braskem, Vopak, Fafen, Tequimar, Magnesita e as áreas públicas ATU 12 e ATU 18, conforme dados oficiais da Codeba.
Apesar das ofensivas empresariais, o território recebeu reconhecimento oficial de sua ancestralidade. Em 2020, a Fundação Cultural Palmares certificou Boca do Rio como comunidade remanescente de quilombo, assegurando a legitimidade do vínculo histórico com a terra. Em seguida, o território também foi reconhecido pelo Ministério Público Federal (MPF), em laudo pericial, que confirmou a ocupação tradicional e seu uso produtivo, destacando práticas como pesca, mariscagem, agricultura de subsistência e extrativismo vegetal.
Diante das denúncias dos quilombolas, o Ministério Público Federal (MPF), com apoio da Defensoria Pública da União (DPU), moveu uma Ação Civil Pública (ACP), também em 202o, contra a Codeba e um outro personagem que surgiu neste contexto: a Bahia Terminais S.A. – empresa controlada pela família Suarez, grupo com histórico de atuação no setor de infraestrutura e saneamento que, nas últimas décadas, ampliou seus negócios sobre áreas estratégicas do país.
O empreendimento tem vínculos com operações da antiga OAS — gigante da construção civil envolvida em escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato —, reestruturada em 2015 sob a razão social Coesa Engenharia. Parte dessas relações empresariais segue ativa hoje sob novas composições societárias, incluindo a própria Bahia Terminais.

Explosões no manguezal
Foi sobre esse legado que a Bahia Terminais firmou, em 2021, contratos de aforamento (acordos pelos quais o Estado concede o uso de terras públicas a particulares mediante pagamento, sem transferir a propriedade) com o governo da Bahia e iniciou obras para instalar um terminal marítimo em parte do território tradicional de Boca do Rio. O impacto não foi apenas visual. Era o começo de um processo que transformaria radicalmente a paisagem e o modo de vida da comunidade. “Eles chegaram com as máquinas e ninguém perguntou nada. Derrubaram o que encontraram pela frente”, lembra Aurora.
O aterramento de manguezais e o desmatamento de áreas próximas às casas reduziram o espaço de moradia e afastaram as famílias do mar, rompendo laços históricos com o território. Além disso, os quilombolas passaram a vivenciar uma crise econômica e insegurança alimentar. “Quando a maré vazava, na areia da praia ficava um monte de pocinha de água cheia de siri mole. Era tanto marisco! E hoje a gente não tem mais esse privilégio. A região é toda entulhada”, lamenta Aurora.
Parte da comunidade de Boca do Rio foi obrigada a viver fora dos limites do território tradicional, após as transformações impostas pelas obras. Quem precisou sair continua visitando parentes, ajudando nas roças e participando das celebrações. Entre os que ficaram e os que aguardam o retorno, persiste a mesma esperança: a de voltar a viver da maré, quando a terra for, enfim, reconhecida como sua por direito.
O avanço não tardou a gerar conflitos: a Bahia Terminais foi autuada pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) por impedir fiscalizações e por detonar explosivos em áreas de manguezal, ecossistema vital para a reprodução de peixes e mariscos que sustentavam a comunidade.
Além disso, a DPU sustenta que houve violação à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual qualquer decisão sobre o território quilombola deve estar condicionada ao respeito a esse direito. “Seguiremos atuando para assegurar a efetiva proteção dos direitos territoriais e culturais da Comunidade Tradicional de Boca do Rio”, disse à Mongabay o defensor público federal, Ricardo Fonseca.

As denúncias sobre essas violações culminaram, em 28 de outubro de 2024, na decisão da 14ª Vara Federal de Salvador que suspendeu todas as autorizações concedidas à Bahia Terminais. A sentença também obrigou a União e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a apresentar, no prazo máximo de 24 meses, um cronograma para a titulação definitiva das terras quilombolas.
Desde então, o Incra vem sendo cobrado a detalhar esse cronograma e a concluir etapas essenciais da titulação, como o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), mas ainda não apresentou avanços considerados suficientes no processo. As cobranças partem principalmente do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União e do Ministério da Igualdade Racial, que apontam a morosidade do órgão como um dos principais entraves ao avanço do processo de regularização fundiária de Boca do Rio.
De acordo com Fonseca, logo após a sentença foram apresentados pedidos de urgência para garantir que a decisão fosse realmente cumprida, como a paralisação de obras privadas, a interdição da área, a requisição de apoio policial e a elaboração de um laudo socioambiental — cujo cumprimento segue sob monitoramento judicial.
Procurado pela Mongabay, o Incra informou que o processo de regularização fundiária de Boca do Rio está atualmente na etapa de elaboração do RTID – considerada a fase mais complexa, por exigir levantamentos cartográficos, fundiários, socioeconômicos, ambientais, históricos, etnográficos e antropológicos em campo e junto a diferentes instituições. E que a regularização é um processo demorado e sem prazos médios definidos, já que depende de diversas ações para garantir a legalidade e evitar disputas judiciais.
O Incra também informou que aguarda uma reunião com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), a Codeba e o MPF para discutir a situação do território. Segundo o órgão, “o setor de quilombolas do Incra na Bahia é responsável por cerca de 400 processos de regularização fundiária de territórios quilombolas no estado. A expectativa é a de que a chegada de novos servidores selecionados por meio do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) contribua para dar mais celeridade à condução dos processos em andamento”.
A Mongabay tentou contato com a Bahia Terminais S.A. por e-mail e pelos telefones disponíveis no cadastro da empresa junto à Receita Federal, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
O MPF também foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos enviados por e-mail.

Tratados como intrusos no próprio lar
“Era muito marisco, muito mesmo! A gente enchia os balaios e ainda sobrava para vender. Hoje não tem mais nada”, lamenta Tânia Maria da Cunha Celestino, 72 anos. Aposentada há cinco anos, ela ainda não encontrou o descanso que esperava: “Me aposentei como marisqueira. Nasci e cresci aqui. E não imaginava que seria tratada como invasora. Eu marisquei em áreas que a Codeba se apossou. Eu estava lá antes dela. Quem chegou aqui primeiro: foi eu ou ela?”, questiona.
Hoje, para chegar à própria casa, Tânia precisa passar por guaritas e cancelas instaladas pela Codeba, que passou a restringir o acesso ao território tradicional. As barreiras físicas não são apenas mecanismos de vigilância: segundo denúncias dos moradores à Mongabay, fazem parte de uma estratégia de intimidação. “Eles vão fechando a gente por todos os lados, como uma gema cercada na clara. Na expectativa de que um dia a gente não aguente mais lutar”, descreve Cláudia do Carmo Celestino, filha de Aurora.
Segundo a ação civil pública movida pela DPU, “a instalação de guaritas e bloqueios de acesso pela Codeba transformou áreas de livre circulação tradicional em espaços controlados por vigilância privada, submetendo moradores quilombolas à necessidade de identificação e autorização para ingressar em seu próprio território”. Relatos incluem moradores impedidos de transportar materiais de construção, parentes barrados ao visitar familiares e mulheres obrigadas a discutir com seguranças para carregar balaios de marisco.
“Essas cancelas não são só portões, são muros invisíveis levantados para dizer que esse lugar não é mais nosso. Cada vez que precisamos pedir autorização pra entrar ou explicar por que estamos aqui, é como se quisessem apagar a nossa história e nos convencer de que somos visitantes, quando na verdade nascemos e vivemos aqui muito antes de qualquer porto existir”, diz Cláudia.

Mesmo assim, a Codeba — além de suas ações diretas no território — tentou intervir na ACP para atuar como parte interessada, defendendo a expansão do porto de Aratu-Candeias e o Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ) do terminal. Na ação, MPF e DPU afirmam que há uma engrenagem em curso formada por contratos de aforamento, ações judiciais e omissões do poder público, convergindo para fragilizar a permanência quilombola e liberar a área para a expansão portuária.
“Não é só o porto que quer crescer aqui, é o poder querendo dizer que a nossa vida vale menos que o lucro deles. Mas nós não vamos sair. Se o Estado não reconhece o nosso direito, nós reconhecemos. Esta terra é nossa por ancestralidade e por resistência. E é aqui que vamos continuar, mesmo que tentem nos empurrar para fora todos os dias”, conclui Tânia.
O impasse jurídico levou o Ministério da Igualdade Racial (MIR) a recomendar formalmente que a Codeba desista da ação possessória movida contra a comunidade desde 2019, por entender que sua manutenção aprofunda um clima de intimidação e mina as condições necessárias para um diálogo legítimo. A pasta destaca que a autoridade portuária promoveu sucessivas tentativas de remoção e deslegitimação da comunidade, chegando a suprimir a área quilombola de seus próprios mapas oficiais e substituí-la por uma zona de mata. Para o MIR, a desistência da ação seria um passo fundamental para reconstruir a confiança e permitir que a comunidade participe de forma plena e segura de qualquer processo decisório sobre seu território.
Procurada, a Companhia das Docas do Estado da Bahia afirmou à Mongabay que “não há impedimento de acesso de pessoas à comunidade de Boca do Rio por meio do Porto Organizado de Aratu-Candeias”. A estatal diz que os controles de entrada são obrigatórios por lei e necessários para garantir a segurança das áreas operacionais — que lidam com produtos sensíveis e perigosos —, além de assegurar o alfandegamento e a manutenção de certificações emitidas por órgãos como a Comissão Estadual de Segurança Pública nos Portos (Cesportos). Segundo a empresa, não há registros de violações ao direito de ir e vir da população.
A Codeba destacou ainda que administra o porto desde 1975, está comprometida com políticas públicas de inclusão e ESG e mantém-se aberta ao diálogo para buscar soluções de conflito com moradores da área de influência do terminal. Sobre as ações judiciais, a companhia informou que elas estão sob responsabilidade do Ministério Público Federal e do Judiciário e, por política de governança, não comenta processos em andamento.
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Imagem do banner: Pescador tradicional na Baía de Aratu (BA), em frente ao Porto de Aratu-Candeias. Foto: Leandro Barbosa.