No Alto Rio Negro, estado do Amazonas, mulheres do povo Tukano mantêm viva a tradição oleira herdada de seus antepassados; suas peças de cerâmica hoje são vendidas em metrópoles como São Paulo, mas ainda carecem de incentivo para conquista de espaço no mercado.
O processo de produção das cerâmicas Tukano é uma expressão cultural do chamado Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, conjunto de práticas que revela a grande competência dos povos amazônicos no manejo da floresta.
TARACUÁ, Amazonas – Na Amazônia, o elo entre elementos forma a paisagem cultural da floresta. Terra, mata e água são componentes de uma complexa rede de relações que os povos locais compreendem como o “manejo do mundo”. Uma das formas como isso se apresenta é a arte cerâmica do povo Tukano, no Alto Rio Negro.
Em comunidades como Taracuá, localizada às margens do baixo Rio Uaupés – o segundo maior tributário do Rio Negro –, o trabalho de resgate do conhecimento ancestral mantém viva a tradição oleira até os dias de hoje. As últimas anciãs, detentoras dos saberes que incorporam a manufatura da cerâmica na região, transmitiram às filhas e netas um legado que imprime resistência e conecta passado e presente na Amazônia.
Fundada em 1987, a Associação das Mulheres Indígenas da Região de Taracuá (Amirt), a primeira integralmente feminina do Alto Rio Negro, ocupa lugar de destaque na cadeia produtiva da arte local. A comunidade compreende o “Triângulo Tukano” – Taracuá, Yauaretê e Pari-Cachoeira –, área delimitada por três distritos que, desde as primeiras décadas do século 20, conta com a presença dos missionários católicos salesianos.
O contato com o modelo de colonização trazido pelos europeus acarretou perdas significativas para as populações tradicionais, tais como a substituição gradativa dos artefatos confeccionados há milênios pelas mercadorias dos pehkasã – os não indígenas, em Tukano. Entretanto, a mobilização das ceramistas estimulou mulheres de diferentes gerações a se unir na luta pelo fortalecimento da identidade sociocultural e pela defesa de seus direitos, previstos na legislação vigente.
Carlos Augusto da Silva, conhecido como Tijolo, arqueólogo indígena, descendente das etnias Munduruku e Apurinã, esclarece que a cerâmica faz parte de um sistema de diálogo criado pelos povos da Amazônia para administrar a floresta. “Eles sabem quando colher as matérias-primas, como armazenar e lidar com os recursos naturais à sua volta. É assim que interagem com o meio, compartilhando com plantas e animais o ambiente ao redor”, comenta Tijolo, que é professor doutor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Há, portanto, uma conexão direta entre o trabalho das ceramistas e a construção de paisagens. Os diferentes tipos de queima são exemplos de uma contribuição intelectual milenar dos povos originários, capaz de gerar solos férteis, como as Terras Pretas Antropogênicas (TPAs). As casas de forno, onde o uso adaptado do fogo pelas mulheres é uma constante, constituem centros de cultivo da terra extraordinários.
“O fogo já vem do começo. Quando voltamos do mato, queimamos primeiro a casca do caraipé [conjunto de árvores nativas usadas para reduzir a plasticidade da argila]”, relata a artesã Maria Lucimar Araújo Costa. “Após modelar as panelas, as vasilhas, colocamos uma ao lado da outra para moquear [etapa em que as peças são postas em contato com o calor emanado das chamas, ainda baixas]. É um processo longo. Tiramos e botamos a cerâmica de acordo com o tempo, depois viramos de novo. Tudo tem o acompanhamento do fogo, ele é muito importante.”
Na Amazônia, o manejo do ambiente ao longo do tempo garante a regeneração cíclica da biodiversidade. Há um grupo representativo de espécies vegetais com as quais as ceramistas interagem, seja durante a coleta da argila, extraída para a confecção das peças, seja na distribuição das plantas cultivadas nos quintais e nas roças. As mais de 20 mulheres associadas à Amirt são também “donas de roça” – nomenclatura utilizada pelos povos rionegrinos para qualificar àquelas que desempenham um papel fundamental no cotidiano das comunidades.
Futuro ancestral
A arte Tukano de fazer cerâmica compõe o chamado Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, reconhecido em 2010 como patrimônio cultural imaterial pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Alguns dos bens inventariados nesse sistema são plantas cultivadas, redes sociais de trocas de sementes, sistemas alimentares e artefatos da cultura material, o que inclui a arte cerâmica confeccionada em Taracuá. Sua disseminação é essencial para o resguardo da alta agrobiodiversidade da floresta. Entre hortas e pomares, no ir e vir das casas de forno para as moradias, os residentes acondicionam os produtos da roça, tiram azeite de pupunha, descascam mandioca, amolam terçado, ajeitam polpa de cupuaçu.
As mulheres rionegrinas carregam consigo o conhecimento tecnológico escrito na memória de seus povos. A queima das peças é tão bem feita por elas que as artesãs obtêm a medida ideal entre leveza e resistência. “A cerâmica é como um coração dentro do sistema. Há uma relação sentimental muito forte entre as populações locais e esta arte”, reitera o arqueólogo Tijolo.
A produção se divide em diversas etapas: cerca de 12 dias dedicados ao ofício, dos ritos que antecedem a coleta ao acabamento. Segundo a narrativa mítica dos Tukano, Di’i Mahso (Vovó Argila) é a guardiã das jazidas de argila, locais sagrados para as artesãs. A defumação – que exige extrema habilidade das ceramistas ao manejar o fogo – confere às peças, enegrecidas pelo contato com a fumaça, uma das marcas do povo Tukano.
“Nosso trabalho é muito importante. Vem dos antepassados e hoje nos estimula cada vez mais”, diz Rosalina Vasconcelos Solano, ceramista e presidente da Amirt. “Para nós, é um privilégio colaborar com a organização da comunidade, porque a associação é a única em atividade em Taracuá, e representa a região. Quando falam em sustentabilidade, o que pensamos é naquilo que vai ser melhor para todos.”
A valorização dos saberes tradicionais e da ciência mateira fortalece as cadeias produtivas sustentáveis, que conservam e restauram a vegetação nativa, além de garantir o bem viver das populações locais. “Para mim, trabalhar com as nossas próprias mãos é algo muito valioso: ensinar os nossos conhecimentos pra outras pessoas, pros nossos filhos, e nossos filhos vão ensinar para os filhos deles e assim a cultura vai expandindo”, afirma Maria Suzana Menezes Migues, uma das ceramistas veteranas da associação.
A maior parte das vendas da Amirt é destinada à Wariró, marca coletiva ligada à Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Com o Amireta, barco adquirido em 2018, a associação presta serviços para as comunidades indígenas, além de escoar a cerâmica e os produtos das roças locais. As peças produzidas pelas mulheres Tukano chegam a lojas de São Gabriel da Cachoeira, Manaus e São Paulo.
“Eu me sinto livre ao saber que temos uma renda familiar que não tínhamos antes, que as mulheres ganham mais autonomia e plantam uma sementinha para o grupo. Nós temos na natureza remédio, alimento, água limpa. Esta é a nossa casa. Nunca fomos guardiões porque somos os donos desta terra. Nós sempre estivemos aqui”, declara Suzana.
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A reportagem integra o projeto “Amazônia: fogo contra fogo” e foi produzida com o apoio do Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center.
Imagem do banner: Maria Lucimar Araújo Costa desenha grafismos Tukano em peça, utilizando técnica conhecida como pintura em negativo. São necessárias algumas camadas de argila para proteger os grafismos em etapa posterior, a defumação. Foto: Maurício de Paiva