O Quilombo de Bombas, no estado de São Paulo, acolheu com satisfação uma decisão judicial que garante o título de propriedade de seu território ancestral, hoje sobreposto ao Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar).
Com a decisão, a comunidade passará a coadministrar o território com a Fundação Florestal, responsável pela administração das áreas protegidas do estado; isso também significa que a comunidade é livre para usar os recursos naturais da forma que achar melhor.
Os órgãos governamentais envolvidos no processo reconheceram que os quilombolas tendem a estar entre os melhores administradores ambientais do país.
Apesar da vitória, a maioria dos quase 500 quilombos em todo o Brasil permanece oficialmente não reconhecida, com apenas um em cada oito quilombolas vivendo em territórios formalmente titulados.
Após vencer uma ação judicial histórica no final do ano passado, uma comunidade tradicional quilombola finalmente obteve o reconhecimento legal de suas terras localizadas no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), em São Paulo, uma área protegida.
Segundo especialistas jurídicos, a decisão é uma vitória significativa para a comunidade do Quilombo de Bombas, que vive na área há mais de cem anos. O reconhecimento legal de sua terra também estabelece um precedente importante para outras comunidades no Brasil cujos territórios se sobrepõem a unidades de conservação de proteção integral.
O estado de São Paulo terá agora que registrar o território ancestral de 3.200 hectares na Mata Atlântica como propriedade legal da comunidade. Além disso, o governo deverá apresentar um plano de trabalho para a construção de uma estrada de acesso ao quilombo.
Como parte desse processo, a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp, órgão fundiário do estado) deve realizar um levantamento fundiário atualizado no prazo de seis meses e iniciar o processo de regularização fundiária dentro de 10 anos. O não cumprimento desses prazos acarretará multas.
A decisão, proferida em 29 de dezembro de 2023 pela juíza Hallana Duarte Miranda, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, significa que a comunidade de Bombas passará a coadministrar o território com a Fundação Florestal (FF), órgão do governo estadual. Isso também significa que a comunidade é livre para usar os recursos naturais locais da forma que achar melhor, já que a área não fará mais parte do Petar, administrado pela FF.
“Chegou novamente a hora de trabalharmos em paz, sem opressão”, diz Edmilson Furquim, líder da comunidade de Bombas. “Sabemos que temos outras leis a cumprir, mas esta decisão irá melhorar muito a nossa situação.”
‘Forte ligação ancestral’ com a terra
O Alto Ribeira, região rica em cavernas, foi declarado um parque estadual em 1958, em uma áder quilombola de Bombas. “Sabemos que temos outras leis a cumprir, mas esta decisão irá melhorar muito a nossa situação.”rea que se sobrepunha ao território tradicional do Quilombo de Bombas. As regras de utilização das áreas protegidas significaram que as práticas centenárias de subsistência dos habitantes foram proibidas por lei, deixando-os incapazes de construir novas estradas, cultivar alimentos em suas hortas tradicionais ou criar gado. Como resultado destas restrições, hoje a comunidade não tem água encanada, rede de esgoto, eletricidade ou acesso a atendimento médico regular ou educação primária e secundária.
“A sobreposição de uma área de proteção integral, como foi o caso do [Alto Ribeira], sobre um território tradicional que já existia ali há séculos é um exemplo típico de política ambiental retrógrada e ineficaz”, diz Marcondes Coelho, analista socioambiental de transparência e justiça climática no Instituto Centro de Vida (ICV).
Os quilombolas têm uma “forte ligação ancestral” com a terra, por isso a respeitam, afirma Luiz Keto, coordenador da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq). De fato, o modo tradicional de cultivo no Vale do Ribeira, conhecido como Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, foi tombado como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil em 2018.
O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) parece ter reconhecido isto no que diz respeito à recente decisão judicial sobre a reivindicação de terras de Bombas. Em comunicado à Mongabay, o órgão disse que, embora a área seja retirada do parque estadual, a conservação ambiental continuará em toda a região, “considerando os princípios agroecológicos e de sustentabilidade contidos no conhecimento ancestral dessas comunidades quilombolas”.
Precedente legal
O processo de reconhecimento formal da reivindicação territorial do Quilombo de Bombas começou em 2003, mas teve pouco progresso nas duas décadas seguintes. De acordo com o Incra, a comunidade obteve em 2005 um certificado de autorreconhecimento da Fundação Cultural Palmares. Nesse mesmo ano, o Incra iniciou o processo administrativo de regularização fundiária. O Itesp publicou estudos técnicos em 2014, mas o processo permaneceu no limbo desde então.
“Uma das dificuldades de regularização foi a sobreposição do parque com o território, o que impediria a sequência de trabalho do Incra porque existem áreas específicas no território cuja regularização cabe ao município”, disse um porta-voz do Incra à Mongabay. Além disso, o órgão afirmou que a escassez do orçamento federal impossibilitou a conclusão das etapas finais da regularização fundiária, que incluem levantamento fundiário, descrição da área solicitada e cadastramento de famílias, entre outras medidas, para concluir a titulação.
Em resposta ao atraso, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo entrou com uma ação civil contra o Itesp e outros órgãos estaduais em 2014. Isso culminou com a ordem judicial de dezembro do ano passado, para que o governo estadual concedesse à comunidade a propriedade de seu território.
“A decisão é um marco para a defesa dos direitos humanos e da conservação da natureza, pois reconhece plenamente o direito da comunidade ao seu território – levando em conta, é claro, suas práticas tradicionais de conservação florestal”, diz Coelho, do ICV. Ele acrescentou que a decisão estabelece um precedente muito importante para os direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais e pode ter um impacto direto na proteção de valores culturais, coesão social, segurança alimentar e acesso a recursos naturais, entre outros.
Keto, da Conaq, disse que, sem títulos de terra, os quilombos são mais vulneráveis a invasões e exploração por empresas de mineração, agronegócio, projetos de infraestrutura e outras formas de uso indevido de recursos naturais.
Mais de 2 mil anos para titular todos os territórios quilombolas
O ritmo lento com que se processou a reivindicação territorial do Quilombo de Bombas reflete uma tendência mais ampla. Dos 494 quilombos existentes no Brasil, apenas 147 foram titulados, de acordo com o censo de 2022. O censo também mostra que apenas um em cada oito quilombolas vive em um território oficialmente reconhecido.
Coelho atribui a natureza lenta e burocrática do processo de titulação aos recursos técnicos e financeiros limitados e à falta de compromisso das autoridades públicas, entre outras questões. Embora os direitos quilombolas já tenham sido reconhecidos pela Constituição brasileira, Coelho diz que as famílias ainda enfrentam muitos desafios, entre eles o racismo estrutural, institucional e ambiental.
As comunidades indígenas no Brasil enfrentam desafios semelhantes, mas a situação é um pouco diferente devido às disparidades no processo de reconhecimento territorial, que, no caso dos quilombos, é de responsabilidade da Fundação Cultural Palmares, um braço do Ministério da Cultura. Como resultado de seus recursos limitados, Coelho diz que poderia levar mais de 2 mil anos para titular todas as reivindicações territoriais de quilombos que aguardam processamento pelo Incra.
“Ainda enfrentamos um cenário grave de lentidão na titulação de territórios quilombolas e de conflitos socioambientais”, diz Rafaela Santos, quilombola de Rondônia e advogada da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (Eaacone), equipe de defesa jurídica que apoia quilombos da região do Vale do Ribeira, onde Bombas está localizada. “Isso prejudica a sobrevivência, a subsistência e a existência da população quilombola.”
Nem o governo do estado de São Paulo e nem o Itesp emitiram uma declaração sobre a recente decisão judicial; as autoridades também não responderam aos pedidos de informação da Mongabay até a publicação deste artigo. A Fundação Florestal afirmou em nota que a “compatibilidade” entre áreas protegidas e territórios quilombolas favorece a “conservação da sociobiodiversidade”.
“A FF já vem realizando ações em conjunto com as comunidades quilombolas nas unidades sob sua gestão”, afirmou o orgão, acrescentando que “não deve haver antagonismo entre grupos que lutam por justiça ambiental e climática”.
Imagem do banner: Os líderes quilombolas Edmilson Furquim e Elza Ursulino na varanda de sua casa no território de Bombas. Foto: Júlio César Almeida/ISA