Com 90 anos completados este ano, a arqueóloga Niéde Guidon conta à Mongabay sobre seu trabalho à frente do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, maior e mais antigo conjunto de arte rupestre das Américas.
Além de ajudar na criação do Parque Nacional, nos anos 1970, Guidon inovou ao contribuir para o desenvolvimento social da população do entorno: fomentou a construção de escolas, incentivou o turismo, abriu uma fábrica de cerâmica e transformou donas de casa da região em “guardiãs” do parque.
Nos anos 1980, Guidon desafiou a chamada Teoria de Clóvis, segundo a qual o Homo Sapiens teria chegado ao continente há 12 mil anos, pelo Estreito de Bering; a arqueóloga diz ter encontrado vestígios humanos de 32 mil anos atrás na Serra da Capivara.
Hoje o Instituto Olho D’Água, criado pela atual chefe do parque, dá continuidade ao legado de Guidon, trabalhando com a chamada arqueologia colaborativa, que integra a população às ações de preservação do patrimônio pré-histórico.
Niéde Guidon não faz mais suas longas caminhadas pelo Parque Nacional da Serra da Capivara. Reclusa desde os tempos de pandemia de covid, a arqueóloga, que se aposentou da presidência da Fundação Museu do Homem de Americano (Fumdham) em 2020, se acostumou com o isolamento. “Com 90 anos, penso que já trabalhei bastante. Meus amigos, os jogos de vôlei e tênis e ainda alguma leitura me acompanham [no dia-dia]”, conta a pesquisadora franco-brasileira à Mongabay.
Guidon mora com seus cachorros em uma casa aos fundos da Fumdham, em São Raimundo Nonato, sertão do Piauí, há 30 anos. E, entre idas e vindas entre Brasil e França, ameaças de poderosos e conquistas científicas, ela celebra a reabertura, depois da pandemia e da insegurança causada pela gestão Bolsonaro, do Parque Nacional que ajudou a criar.
A cientista, que fez aniversário em 12 de março, recebe neste ano uma série de homenagens por seus 90 anos, das quais seleciona a dedo naquelas que dará o ar da graça – tendo contraído chikungunya em 2016 , hoje Guidon convive com uma artrose, o que dificulta sua locomoção. Um destes eventos aconteceu no último dia 9 de junho, fazendo com que a pequena São Raimundo Nonato, ficasse em festa.
Para lá viajaram o cônsul-geral da França no Recife, Jérémie Faucon, o governador em exercício do Piauí, Themístocles Filho, e outras personalidades políticas e acadêmicas que desembarcaram no aeroporto reinaugurado do município – um desejo antigo da arqueóloga, taxada como “megalomaníaca” por apostar, ao longo da vida, em uma série de projetos sociais, estruturais e científicos na região do parque.
“Existe um Piauí e uma São Raimundo Nonato antes e depois de Niéde Guidon”, contou à imprensa local a prefeita da cidade, Carmelita Castro, uma das presenças na cerimônia que aconteceu no espaço da Fumdham, instituição sem fins lucrativos criada por Guidon na década de 1980 com o objetivo de administrar o parque, que abriga alguns dos sítios arqueológicos mais importantes do mundo. Hoje a área é mantida em parceria com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), e o apoio de diversos órgãos, como o Ibama.
Na ocasião da homenagem, lá estava também o professor e pesquisador da Université Paris Nanterre, Eric Boëda, hoje chefe da missão franco-brasileira que acompanhou Guidon desde o início das descobertas no parque. Uma espécie de sucessor da professora no campo arqueológico. Naquele dia, o cônsul confirmou a intenção do governo francês em investir em uma nova missão na região. Niéde está feliz.
Desafiando o consenso na arqueologia
Paulista de Jaú, Niéde Guidon ouviu falar em São Raimundo Nonato pela primeira vez há 60 anos, enquanto trabalhava no Museu Paulista da USP, onde fez graduação em História. À época, montava uma exposição com fotografias de pinturas pré-históricas achadas em Lagoa Santa, Minas Gerais, consideradas as únicas do tipo no Brasil. Foi ao receber no museu o então prefeito de Petrolina que Guidon teve contato com a existência de “uns desenhos de caboclos”, nas palavras do homem, parecidos com os que estavam na mostra – as fotografias retratavam um abrigo sobre rochas na Serra da Capivara, no Piauí.
Guidon se animou com o que viu e, nos preparativos para conhecer o lugar, foi pega por vários contratempos. Entre eles, o fatídico ano de 1964, primeiro da Ditadura Militar que assombrou o país, levando a pesquisadora para o exílio na França – país onde, anos antes, tinha feito uma especialização em Arqueologia Pré-histórica pela Sorbonne. A arqueóloga só chegaria a São Raimundo Nonato em 1973, depois de oito anos em Paris.
A partir daquele ano, pelo resto de sua vida, Niéde Guidon seria conhecida por todos na cidade como “doutora”. Ela mudaria o destino não só de muitos habitantes da região, mas os rumos da arqueologia brasileira com muita persistência – e brigas enérgicas.
Uma de suas teses mais conhecidas é sobre a datação do povoamento das Américas: Guidon encontrou vestígios de fogueiras no sítio arqueológico do Boqueirão da Pedra Furada que acredita datar de 32 mil anos AP (antes do presente), tendo publicado na revista Nature um artigo sobre o tema, em 1986. Causou um frenesi na arqueologia ao colocar em xeque a chamada Teoria de Clóvis – que data o povoamento da América há cerca de 12 mil anos A.P., por meio da travessia do Estreito de Bering. Segundo Guidon, o Homo sapiens teria chegado ao continente há pelo menos 100 mil anos, vindo da África.
Pesquisadores e arqueólogos, principalmente norte-americanos, contestam até hoje suas teorias, embora elas ganhem mais consistência a cada a ano com descobertas no campo da genética, da bioquímica, e com uma safra de pesquisadores confiantes na datação proposta por Guidon
“Hoje estou aposentada, mas, posso afirmar que as teorias científicas sempre precisam ser provadas. Acredito que nossos trabalhos foram feitos com muita seriedade, conhecimento e profissionalismo. Se ainda há quem tenha dúvidas, deve trabalhar da mesma forma e, então, discrepar ou concordar com as devidas justificativas”, propõe a arqueóloga.
Um Parque Nacional no meio do sertão
“Nos primeiros anos aqui [na Serra da Capivara], percebemos que a pobreza que reinava na região nunca ia permitir proteger o legado pré-histórico do parque. Uma pessoa com fome só pensa como vai resolver o problema imediato”, conta Guidon.
Ela relembra do principal entrave de quando chegou ao município de Coronel José Dias, vizinho a São Raimundo Nonato. A pesquisadora tinha à sua frente a dura realidade da vida dos sertanejos que, sobrevivendo à base de uma tímida agricultura, não tinham acesso a energia elétrica, educação e saúde. Debaixo de suas terras, não imaginavam o tesouro pré-histórico ali escondido: mais de 800 sítios arqueológicos com pinturas e gravuras rupestres datadas com até 12 mil anos de idade.
No decorrer do tempo, enquanto desenvolvia a pesquisa nos sítios da região junto a uma equipe de várias partes do Brasil e do mundo, Guidon começou a mobilizar autoridades, instituições públicas e privadas e políticos para olhar para a Serra da Capivara. Seis anos depois de chegar ao interior do Piauí, em 1979, ela conseguiu que o Governo Federal criasse o Parque Nacional da Serra da Capivara, área com 100 mil hectares que abrange os municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias. O início de um sonho.
Mas não bastava delimitar a área. Era preciso também fazer um trabalho social no cotidiano dos moradores da região. Um dos passos mais importantes foi a criação, em 1986, da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade administrativa do parque que, desde o início, teve como meta importante o desenvolvimento sócio-econômico-cultural ao incluir, no Plano de Manejo, a integração da população ao entorno às ações de preservação do lugar.
Com a criação do parque, muitas famílias que habitavam a Serra da Capivara precisaram deixar a área. Niéde Guidon, à época, fez o possível para realocar esses moradores em outras casas. Encarou como uma batalha pessoal o direito à moradia, mas encontrou entraves nas políticas locais, e as consequências foram diversas – dos que melhoraram de vida e aproveitaram as novas políticas, aos que perderam sua terra e foram embora. O processo é contado em detalhes no livro Niéde Guidon: Uma Arqueóloga no Sertão, da jornalista Adriana Abujamra, lançado em abril deste ano.
“Falar de Niéde é falar do passado, da Caatinga, do meio ambiente. Niéde traz tantas histórias dentro de sua história, como o seu trabalho para empoderar as mulheres que estavam ao seu lado”, explica Abujamra à Mongabay. Para a jornalista, a imagem da “doutora” chegando no sertão guiando uma camionete Rural, de calças jeans e sendo dona de si é algo muito simbólico. “Até hoje em dia, o Nordeste é um lugar de altos índices de feminicídio. Agora imagina, na década de 1970, uma mulher chegar ao parque em uma posição de poder. Dirigindo, contratando peões, incentivando as mulheres a se libertarem da submissão”, completa a escritora.
Uma das ações mais conhecidas de Guidon foi a promoção de muitas donas de casa da região a de guardiãs do Parque Nacional da Serra da Capivara. Conhecidas popularmente como “guariteiras”, essas mulheres ficam nas portarias do parque para orientar o público, proteger o perímetro e impedir a caça de animais silvestres.
Tudo começou quando, certo dia, a arqueóloga, em uma de suas caminhadas, encontrou uma das guaritas aos pandarecos. Na discussão que teve com o segurança, ela ouviu uma explicação machista sobre “quem deveria limpar o lugar” e resolveu, então, tornar a função um ofício feminino. Ao longo das décadas, outras funções exclusivamente masculinas foram desmistificadas e muitas mulheres hoje têm a própria renda, seja trabalhando no comércio local, na fábrica de cerâmica, ou no próprio parque.
Incentivo ao desenvolvimento social
A atual chefe do Parque Nacional da Serra da Capivara, Marian Rodrigues, conta que cresceu na comunidade de Várzea Grande, hoje Coronel José Dias, e via o movimento das pesquisadoras com muita curiosidade quando pequena. Seu pai, único a ter carro na década de 1970, as levava para os sítios arqueológicos.
“Nós tínhamos aquele imaginário de que elas estavam tirando ouro dali, porque sempre falavam de um ‘tesouro arqueológico’”, conta Rodrigues. “Eu tinha muita vontade de entender o que era aquilo, então, na época, fui fazer magistério, uma das únicas profissões que as mulheres podiam seguir”. Ela acompanhou, desde o início, toda a transição da área que foi demarcada como parque, as revoltas, as conquistas e lendas que cercavam Niéde Guidon, muitas vezes taxada de megalômana.
Não era para menos. Um dos exemplos mais singulares da atuação de Guidon na Serra da Capivara aconteceu justamente na década de 1990, quando os projetos da Fumdham estavam indo de vento em popa. Nascia o Nacs (Núcleo de Apoio às Comunidades), que fomentou a construção de postos de saúde e escolas de tempo integral neste rincão que era o interior do Piauí. Professores de São Paulo se mudaram para a região, além de outros educadores de universidades, como a USP, que rechearam as disciplinas com currículos de primeiro mundo – tratavam temas como meio ambiente, arte e música popular de forma pioneira.
“Fui tendo contato com essas ideias preservacionistas e entendi que eu podia ser além de ser professora primária. Queria procurar respostas para entender o que acontecia com a comunidade, com o parque, e pude me aprofundar na pesquisa”, ressalta Rodrigues, que trabalhou nas escolas na época.
Marian Rodrigues trabalhou por 12 anos na Fumdham, sempre com o desejo de “Ser doutora”. Em contato com acadêmicos de várias partes do mundo que chegavam à fundação para trabalhar nos sítios arqueológicos do parque, a professora, anos mais tarde, quando enfim fez seu doutorado em Portugal, criou o Instituto Olho D’Água, organização sem fins lucrativos baseada no conceito da chamada arqueologia colaborativa.
“A gente quer promover uma relação entre a comunidade e o parque, sobre como projetos de arqueologia devem ser realizados tendo a parceria da população em todo processo”. Em julho deste ano, o Instituto celebrou uma década de funcionamento.
O projeto de Marian Rodrigues segue os ideais de Niéde Guidon, pioneira quando o assunto é educação no sertão. O Instituto Olho D’Água já capacitou centenas de pessoas da região para trabalharem no comércio e turismo. Das lutas de Niéde, que chegou à região de São Raimundo Nonato quando não havia nem saneamento básico, uma série de demandas se concretizou ao longo do tempo, como a construção de uma fábrica de cerâmica, restaurantes, hotéis e pousadas, o desenvolvimento da apicultura na região e o tão falado aeroporto no município de São Raimundo Nonato.
“Quando a doutora fez 90 anos, fui à casa dela levar umas flores, ela olhou pra mim e falou: ‘cuide bem do parque, viu?’ Me deu até um nervoso”, revela Rodrigues, emocionada.
“Sempre digo que só fiz meu trabalho e agora vejo a região mudando rapidamente, crescendo com uma importante participação da população local”, diz Guidon. “Os jovens cada vez migram menos porque aqui acham trabalho, as iniciativas privadas aumentam a cada dia, as pessoas já não esperam que tudo venha do governo. As duas atividades que iniciamos na expectativa de um dia a região atingir o desenvolvimento, ou seja, o turismo e a apicultura, hoje caminham praticamente sozinhas e com sucesso. Ainda falta, mas, me parece que agora é sem retorno. A Serra da Capivara está no mapa do mundo.”
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Imagem do banner: Niéde Guidon segura crânio de Zuzu, esqueleto de 9.600 anos encontrado na Serra da Capivara. Foto: André Pessoa