Estudo analisou 129 territórios indígenas na Mata Atlântica entre 1995 e 2016 e concluiu que, onde houve formalização da posse, a cobertura florestal aumentou em um média de 0,77% ao ano.
Entre as razões apontadas pelos pesquisadores, está o fato de que os indígenas se sentem mais encorajados a recuperar a floresta com a certeza de que serão protegidos.
Um exemplo é a Terra Indígena Piaçaguera, no litoral de São Paulo, que aumentou em 2% a cobertura florestal depois de duas décadas de luta pelos direitos à terra.
Peruíbe, litoral sul de São Paulo. No dia 2 de outubro de 2020, uma decisão do Supremo Tribunal Federal em Brasília refutou a tese do marco temporal e confirmou a homologação da Terra Indígena Piaçaguera, assinada em 2016 por Dilma Rousseff. O veredicto da corte trouxe certo alívio para as famílias da última porção de terra tupi-guarani à beira-mar na região Sudeste.
Vivendo em meio à Mata Atlântica e a um arrastado processo de demarcação iniciado em 2000, ano que retornaram a habitar o local depois de serem expulsos por posseiros, os indígenas resistiram a duas décadas de cobiça e destruição de seu território, cuja área de 2.795 hectares abriga onze aldeias e 358 moradores.
Por oito anos, conseguiram rechaçar o assédio do empresário Eike Batista, considerado à época como a pessoa mais rica do Brasil, que tentou convencê-los – em vão – a vender parte de suas terras para construir no local o maior porto do país, com 500 mil metros quadrados.
Em 2011, suspenderam a outorga que permitia a uma mineradora extrair areia na região, deixando para trás um rastro de imensos buracos abertos em cinco décadas de exploração predatória. Na justiça, a empresa que se diz proprietária de quatro glebas sobrepostas à TI Piaçaguera criou seguidos empecilhos à demarcação.
Sete anos depois, repeliram as iniciativas de um empreendimento que previa a implantação de uma usina termelétrica e um terminal marítimo em Peruíbe, e também de um gasoduto e uma linha de transmissão que cortariam o litoral até a região de Santos e Cubatão.
“Tinha muita coisa ruim acontecendo, porém isso mudou bastante depois que fizemos a primeira comunidade e mais tarde saiu a homologação”, diz a liderança indígena Catarina Delfina, uma das responsáveis pela reocupação do território no início do século 21.
“A restinga melhorou e a floresta cresceu. Mas ainda tem gente de olho nas nossas terras ancestrais, que eram ponto de encontro entre indígenas que vinham do litoral norte e sul antes dos portugueses chegarem. Peruíbe só tem espaço para crescer aqui e os não indígenas querem se apropriar por ser um lugar perto da praia, onde vale mais dinheiro”, acrescenta.
Chamada em sua língua original por Nimbopyruá, Catarina, de 73 anos, se diz satisfeita por preservar a floresta e a ancestralidade de seu povo, mas afirma que só vai sossegar quando considerarem inconstitucional a assombrosa tese do marco temporal. “A demarcação e homologação são importantes para podermos trabalhar em cima do território, trazer projetos e incrementar coisas dentro da aldeia, como a escola e ações de reflorestamento. Já pensou se estas terras forem revogadas novamente?”
Onde tem indígena, a floresta aumentou
A fala da líder tupi-guarani sobre a importância da posse legal encontra respaldo no estudo publicado recentemente na revista científica PNAS Nexus, que demonstrou como a conclusão de todos os estágios do processo de demarcação em Terras Indígenas reduziram o desmatamento e aumentaram o reflorestamento na Mata Atlântica brasileira.
O trabalho analisou 129 territórios indígenas, incluindo a TI Piaçaguera, entre 1995 e 2016. O resultado mostrou que houve um acréscimo médio de 0,77% ao ano na cobertura florestal (o que pode se acumular ao longo de décadas) após a formalização da posse em comparação com as terras sem posse ou com o processo incompleto. A TI Piaçaguera, segundo o estudo, ganhou 55 hectares de área de floresta no período, equivalente a 2% de sua extensão.
Em algumas Terras Indígenas, o acréscimo de área de floresta superou os 20% do total do território. É o caso da TI Toldo Pinhal e da TI Toldo Chimbangue, ambas em Santa Catarina e habitadas pelo povo Kaingang, que registraram aumento, respectivamente, de 27,8% e 21,1% no período estudado.
“O estudo focou em tendências médias e não teve a intenção de olhar para casos específicos. Mas existem possibilidades para explicar as circunstâncias. Uma delas é a presença de não indígenas nos territórios antes da posse, já que após a posse eles são proibidos de usar as terras”, explica a especialista em reflorestamento de florestas tropicais, Rayna Benzeev, pesquisadora da Universidade da Califórnia e primeira autora da pesquisa. “Outra possibilidade é que, uma vez homologadas, o Governo Federal seja obrigado por lei a fazer valer os direitos das TIs, e os indígenas podem investir mais quando há certeza de que serão protegidos.”
De acordo com Benzeev, a demarcação está paralisada em muitas Terras Indígenas no Brasil e o novo governo tem a oportunidade de reverter essa tendência ao defender a Constituição brasileira e conceder aos povos indígenas direitos de autodeterminação. “Nossas descobertas trazem um argumento ambiental para o reconhecimento dos direitos legais à terra dos povos indígenas na Mata Atlântica do Brasil”, conclui.
Coautor do estudo, Marcelo Rauber, pesquisador da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), lembra que a Mata Atlântica é o bioma mais devastado do Brasil, pressionado há séculos por fatores como urbanização, desenvolvimento econômico e altas densidades populacionais.
“É a primeira análise rigorosa do efeito da posse em Terras Indígenas neste bioma e preenche uma lacuna da maioria das teses anteriores que avaliaram esta relação em locais remotos” , afirma o acadêmico, que tem uma trajetória de estudos em políticas públicas para povos indígenas e conflitos fundiários envolvendo demarcações no Brasil.
Ao contrário da Floresta Amazônica, onde o desmatamento acelerou a partir da década de 1970 e 80% da selva continua de pé, a Mata Atlântica, um dos pontos de maior biodiversidade do mundo, vem sendo agredida desde o início do século 16, sendo que as maiores taxas de desmate ocorreram nos últimos dois séculos, reduzindo o tamanho de sua cobertura original a 12%.
Em terras Pataxó, a luta continua
“Grande parte dos conflitos relacionados a demarcações se encontram na Mata Atlântica, nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste, não na Amazônia, onde boa parte das terras está homologada. Lá eles sofrem mais com problemas de outra ordem, como pilhagem e invasão”, explica Rauber.
O pesquisador aponta os territórios Pataxó de Barra Velha e Comexatiba, no extremo sul da Bahia, como exemplos de áreas que ainda estão aguardando o processo de homologação e apresentam mais pressão de desmatamento e conflitos fundiários.
“É um local reivindicado desde 1950 e, a partir da década de 80, teve um intenso desmatamento da área que nao é homologada para uso da mineração de areia e agropecuária, principalmente gado”, diz Rauber. “A floresta que sobrou só foi conservada pela existência do Parque Nacional do Monte Pascoal, que está sobreposto às terras pleiteadas.”
A Unidade de Conservação foi criada em 1961 com 22.383 hectares, dos quais 8.500 foram destinados a abrigar as comunidades indígenas, representando o único território Pataxó legalizado no sul da Bahia.
No início de 2023, por ocasião do assassinato de dois jovens Pataxó, movimentos indígenas se reuniram com a Polícia Federal e a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) para cobrar urgência na investigação e reinvindicar a presença da Força Nacional a fim de impedir o avanço dos ataques contra a etnia.
O cacique Aruã Pataxó, presidente da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia (Finpat), enfatiza a necessidade da efetiva demarcação para conter a violência.
“Lutamos muito pela formalização da posse das nossas terras. Agora estamos na TI de Barra Velha e Comexatiba em um processo de autodemarcação”, diz o líder Pataxó. “E temos com isso perdido vidas. Quatro jovens indígenas foram assassinados pelo braço armado do estado da Bahia. Policiais Militares estão servindo de pistoleiros para fazendeiros. Cinco agentes foram presos e acusados destes assassinatos e até o momento nenhum mandante destes crimes foi preso”.
Por outro lado, o cacique Aruã reforça o acesso às políticas públicas que a segurança jurídica proporciona e as ações afirmativas dentro do trecho já homologado de 9 mil hectares da Terra Indígena Barra Velha, localizad0 dentro do Parque Nacional (os Pataxó pleiteiam a expansão da TI para 44 mil hectares).
“Há exemplos exitosos de projetos agroflorestais e agricultura familiar como na aldeia Meio da Mata, em Porto Seguro”, lembra Aruã. “Temos também o projeto de reflorestamento da Cooperativa de Florestamento e Reflorestamento da aldeia Pataxó de Boca da Mata (Cooplanjé), que tem acessado recursos por meio de editais de financiamento público.”
À espera da posse nos territórios Guarani
Assim como os Pataxó, o povo Guarani está cansado de esperar por seus direitos e cobra atitude do novo governo. Em fevereiro deste ano, uma comissão que reúne comunidades indígenas Guarani de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, enviou um manifesto contundente às autoridades.
Endereçado ao presidente Lula e à ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, o documento diz: “Essas terras só não foram demarcadas antes porque a caneta do governo anterior [de Jair Bolsonaro] trabalhou contra os povos indígenas — paralisando as demarcações de maneira ilegal quando já estava tudo encaminhado”.
O texto afirma ainda que doze TIs situadas na região da Mata Atlântica estão sem pendências e prontas para serem demarcadas. Oito aguardam a portaria declaratória do Ministério dos Povos Indígenas e quatro já podem ser homologadas.
Este é o caso da Terra Indígena Tenondé Porã, localizada no extremo sul da cidade de São Paulo e partes dos municípios de Mongaguá, São Bernardo do Campo e São Vicente, onde vivem 1.500 pessoas.
Com 15.969 hectares, o território Guarani teve a portaria declaratória assinada em 2016. O termo garante de forma definitiva a posse permanente e autoriza as etapas conclusivas do processo: a colocação dos marcos físicos nos limites e a desintrusão das áreas ocupadas por não indígenas mediante a indenização de benfeitorias, formalizando em seguida a homologação presidencial e o registro final da Terra Indígena. Desde então, porém, aguarda a canetada da Presidência da República.
A expectativa de homologação é alta e prevê recuperar 90 hectares de floresta. Enquanto a chancela não vem, os Guarani já atuam em áreas degradadas com o plantio de árvores nativas e frutíferas.
“A portaria declaratória de 2016 trouxe uma vida mais tranquila a todos. Segurança física, alimentar, cultural e espiritual. Já temos um sucesso que nos alegra muito com a plantação de árvores nativas em risco de desaparecer, como cambuci, jaracatiá e palmito jussara”, conta a líder Jera Guarani, que nasceu e cresceu na aldeia Tenondé Porã quando ela tinha apenas 26 hectares demarcados em 1987.
“Passei a vida toda nessa área minúscula, onde pude ver as pessoas perderem tudo. E agora estamos em 14 aldeias, onde nas áreas de mato tem caça, matéria-prima, ervas que curam e todos os tipos de bichos da Mata Atlântica. Estamos todos muito felizes.”
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2022/06/como-os-guarani-de-sao-paulo-estao-voltando-a-plantar-seus-cultivos-ancestrais/
Imagem do banner: trilha em território Pataxó sobreposto ao Parque Nacional do Monte Pascoal, no sul da Bahia. Foto: André Olmos