Enquanto o Brasil tenta reverter os estragos ambientais do governo Bolsonaro, encontrar alternativas sustentáveis e economicamente viáveis para a região amazônica continua sendo um desafio.
Especialistas defendem a agrofloresta como uma alternativa agrícola sustentável à monocultura de soja e à pecuária. Projetos bem sucedidos podem restaurar pastagens degradadas e fornecer uma renda estável para pequenos agricultores.
Um desses projetos é o Reca, cooperativa agropecuária sustentável e pioneira da agrofloresta na Amazônia brasileira, com mais de 30 anos de experiência.
No entanto, especialização, financiamento, escala e assistência técnica ainda são desafios significativos para seu desenvolvimento.
Hamilton Condack sorri e aponta para um imponente ipê enraizado no terreno no qual ele mora e produz alimentos. “Quando comprei a chácara, já tem uns 15 anos, o cara que veio limpar a capoeira queria derrubar o ipê por 500 reais”, diz Condack sobre o ipê, uma das madeiras nobres mais valiosas da Amazônia, cobiçada por madeireiros. “Hoje dizem que vale uns 15 a 20 mil reais, mas eu não vendo nem por 100 mil.”
Condack adquiriu sua terra em estado degradado, cheia de mato e arbustos, depois que os proprietários anteriores a desmataram para a criação de gado e então se mudaram quando os solos se esgotaram.
Ele começou a trabalhar trazendo o pasto improdutivo de volta à vida usando sistemas agroflorestais, um método agrícola de uso misto onde as plantações imitam as florestas naturais. Com o tempo, os nutrientes do solo retornaram.
Hoje o sítio de Condack é um oásis de espécies vegetais e arbóreas, incluindo cupuaçu, açaí e andiroba — vendidas para a produção de bens de alto valor, como geleia, polpa e óleo, na cooperativa agropecuária sustentável que ele comanda.
Conhecida pela sigla Reca (Reflorestamento Econômico Consorciado e Adensado), a cooperativa conta com mais de 300 famílias associadas. Com sede em Nova Califórnia, distrito de Porto Velho, em Rondônia, é pioneira no sistema agroflorestal na Amazônia brasileira.
“O sistema agroflorestal para as pequenas famílias de agricultores é uma alternativa não só ambientalmente correta mas também economicamente viável”, diz Condack. “A gente tem a prática do desenvolvimento da cultura de um produto orgânico e a restauração das áreas de floresta, que foram destruídas.”
Terra de cultivo de um dos membros do Reca, pioneira do sistema agroflorestal na Amazônia brasileira. A cooperativa conta com mais de 300 famílias associadas com sede em Nova Califórnia, no estado de Rondônia. Foto: Avener Prado/Mongabay
À medida que o planeta enfrenta fome crescente e o aumento de secas, chuvas torrenciais e inundações causadas pelas mudanças climáticas, especialistas e autoridades do mundo todo cada vez mais defendem a agricultura regenerativa para enfrentar as diversas crises planetárias.
Os defensores da agrofloresta no Brasil dizem que esta é uma alternativa sustentável às monoculturas de soja e à pecuária que poderia ajudar a restaurar cerca de 30 milhões de hectares de pastagens degradadas na Amazônia.
Eles argumentam que sistemas agroflorestais bem planejados e geridos podem fornecer uma renda decente e estável para os pequenos agricultores da Amazônia, muitos dos quais são extremamente pobres, ao mesmo tempo que protegem o meio ambiente ao aumentar a biodiversidade e os estoques de carbono.
“Ela é talvez uma das únicas ferramentas que a gente tem para realmente fazer uma agricultura regenerativa e que esteja atrelada não só a metas climáticas, mas também a metas de redução da pobreza e redução da fome”, explica o consultor Tomaz Lanza, especialista em agrofloresta e doutor em Agronomia.
Muitas vezes referidos pela sigla SAFs, os sistemas agroflorestais combinam espécies tão variadas como açaí, andiroba, copaíba, cupuaçu, cacau e banana, além de culturas como milho e mandioca, com árvores em áreas relativamente pequenas – uma prática com centenas de anos.
“As populações da Amazônia vem praticando sistemas florestais desde que desenvolveram a agricultura, 2 mil anos antes da invasão europeia no Brasil”, disse Judson Valentim, agrônomo e pesquisador da Embrapa, à Mongabay.
Baixos rendimentos e malária
O Reca, com mais de 30 anos de experiência, é para muitos um exemplo do que poderia ser a agricultura sustentável na Amazônia.
A Mongabay esteva nas terras Reca dois dias depois de Luiz Inácio Lula da Silva ter vencido as eleições presidenciais. O agora presidente prometeu colocar a proteção da Amazônia no topo de sua agenda e sinalizou taxas de juros mais baixas no crédito rural para produções sustentáveis e recuperação de áreas degradadas.
O Reca fica a 354 quilômetros da capital de Rondônia, Porto Velho, já quase na divisa com o Acre, com acesso pela rodovia BR-364, onde plantações de soja e fazendas de gado se estendem até o horizonte, e os abutres, muitas vezes vistos se alimentando de carcaças de animais mortos, são as únicas aves à vista.
Na viagem, a Mongabay ultrapassou bloqueios de estradas montados por apoiadores de Jair Bolsonaro – um deles visivelmente armado com uma pistola –, que naquele momento continuava muito popular em Rondônia. O estado deu a ele a segunda maior votação para a reeleição, perdendo apenas para Roraima, outro estado amazônico onde crimes ambientais como desmatamento e mineração ilegal dispararam durante o mandato de Bolsonaro – sobretudo em terras onde vivem os indígenas Yanomami, deflagrando uma grande crise humanitária.
O desmatamento em Rondônia em 2021 atingiu 1.673 quilômetros quadrados, o nível mais alto em mais de uma década, de acordo com o sistema Prodes, do Inpe (Insituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Em Nova Califórnia, onde fica o Reca, doze caminhões com madeira ilegal foram apreendidos em dezembro.
O estado tem o sexto maior rebanho bovino do Brasil, com 15,1 milhões em 2021, enquanto a produção de soja mais que dobrou nos últimos 10 anos, para 400 mil hectares, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) .
A história do Reca começou em 1984, quando o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) cedeu lotes de floresta a agricultores que migraram do sul para a Amazônia.
“Chegamos aqui, em Nova Califórnia, com o intuito de produzir o que produzíamos no sul”, contou Bernardete Mattos Lopes, agricultora que se mudou de Santa Catarina nessa época, à Mongabay. No entanto, ela e outros logo perceberam que as condições na floresta tropical eram muito diferentes do clima subtropical de seu estado natal. Os rendimentos das colheitas eram muito mais baixos.
“Nós não tínhamos mercado local, não tinhamos comércio local, não tinhamos como escoar a produção”, disse ela. “E começou a ficar difícil. A malária pegava todo mundo, a doença não deixava trabalhar”
Os colonos se uniram, trabalhando com as populações tradicionais de seringueiros da região para descobrir novos produtos como cupuaçu, castanha e pupunha, deixando para trás culturas tradicionais do sul, como o café.
A cooperativa foi fundada oficialmente em 1989. Hoje, o Reca vende produtos de alto valor, como geleia e polpa de frutas, para todo o Brasil e até para exportação, sendo os produtos de açaí e cupuaçu os de maior rendimento. A cooperativa também mantém um programa de créditos de carbono com a gigante de cosméticos Natura, por meio do qual os agricultores recebem uma compensação econômica por proteger a floresta e reduzir as emissões de carbono na cadeia produtiva da empresa.
Ao lado da Cooperativa Agropecuária Mista de Tomé-Açu (Camta), no estado do Pará, especialistas consideram o Reca o exemplo mais bem-sucedido de agrofloresta na Amazônia brasileira.
Para Valentim, da Embrapa, grande parte do sucesso do Reca se deve ao seu modelo de organização como cooperativa. Ele elogia os benefícios econômicos do modelo agroflorestal não apenas como uma forma de tirar os pequenos agricultores da pobreza, mas também como uma perspectiva para o futuro, detendo a migração amazônica e o avanço da fronteira do desmatamento.
“Com 5 hectares de um sistema agroflorestal com açaí e um consórcio de culturas, por exemplo, você consegue ocupar toda a mão de obra e colocar essa família na classe média brasileira”, explica.
Os sistemas agroflorestais são mais resilientes economicamente porque os produtores estão menos expostos a choques de preços se o valor de um produto mudar, mas também ambientalmente, o que é fundamental em um momento de secas e inundações cada vez mais aceleradas.
Desafios imensos
No entanto, apesar do burburinho utópico sobre agrofloresta e agricultura regenerativa como um todo, há sérios desafios de especialização, financiamento e tecnologia para sua implantação na Amazônia brasileira.
“Os desafios são imensos”, disse Joice Ferreira, ecóloga e pesquisadora da Embrapa, à Mongabay. “Mesmo depois de tantos anos e tantas décadas de pesquisa, de incentivos, ainda não alcançamos todo o potencial.”
A assistência técnica é um dos principais problemas, segundo Valentim, da Embrapa. Apenas uma minoria de produtores em todo o Brasil tem acesso a ela. “Você não tem informação profissional adequada para atender essa demanda de implantação de sistemas”, afirma. “Com a agrofloresta, pode levar de cinco a oito anos para entrar em plena produção. Você teria que ter assistência técnica por um longo período.”
Valentim acrescenta que o acesso ao crédito, componente essencial para a agricultura brasileira em escala, é insuficiente para agricultores familiares e agroflorestais e está muito mais direcionado para a grande agricultura e produção de commodities.
“Existem algumas linhas iniciais de crédito para sistemas multidiversos. Mas ainda não é adequado”, diz. “Muitas vezes, o prazo de pagamento é muito curto. Isso não é compatível com o ciclo de algumas culturas em sistema agroflorestal, como açaí, cupuaçu e outras espécies que às vezes demoram quatro ou cinco anos para iniciar a produção.”
Ferreira dz que os problemas estruturais da Amazônia brasileira, como interrupções de energia, estradas precárias e dificuldade de acesso a mercados — ainda mais problemáticos no manejo de frutas delicadas em altas temperaturas — dificultam a implantação generalizada dos SAFs.
“A proliferação do gado na Amazônia não é uma coincidência”, diz ela. “É tão comum porque combina perfeitamente com um lugar onde não há estrutura.”
Depois, há as questões de aplicação do modelo agroflorestal em escala. O especialista Lanza diz que o Brasil ainda carece de pesquisa e tecnologia para aplicar modelos agroflorestais em mais de 10 hectares.
“A adoção em larga escala ainda é um desafio muito grande porque não temos maquinários adaptados”, afirma ele. “São sistemas mais complexos, então os custos operacionais podem ser altos em escala. Acredito mais na agrofloresta em pequena e média escala. Acho mais viável ter cem lotes agroflorestais de um hectare do que um de 100 hectares, por exemplo.”
Em curto e médio prazo, portanto, ele diz que o fortalecimento do modelo cooperativo que tem o Reca é a solução mais eficaz, assim como uma reforma agrária geral no Brasil.
Para Ferreira, da Embrapa, políticas públicas que estimulem a produção de pequenos agricultores, como a compra da merenda escolar — política que o Brasil já implementou, com sucesso, no passado — são fundamentais para o crescimento dos modelos agroflorestais na Amazônia.
“Esse tipo de política pública não era específica para sistemas agroflorestais”, diz ela. “Mas criou uma demanda para a compra de uma variedade de produtos.”
O Reca espera financiar novas iniciativas com o apoio do Fundo Amazônia por parte da Noruega, congelado durante a presidência de Bolsonaro e reativado por Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro dia de mandato. Em 2018, a cooperativa recebeu R$ 6,4 milhões do fundo para fortalecer sua cadeia produtiva, recuperar áreas degradadas e capacitar agricultores em técnicas agroflorestais. Graças a esses recursos, a cooperativa conseguiu, entre outras coisas, alavancar a incipiente produção de óleos vegetais, hoje um de seus principais produtos.
De volta à sua fazenda, o líder do Reca, Hamilton Condack, fala sobre as boas perspectivas para a cooperativa e para a agrofloresta na Amazônia brasileira: “Eu acredito que o trabalho da gente tem sucesso porque o sistema agroflorestal hoje é a cultura do futuro.”
Este relatório é o primeiro de uma série de três partes produzida com o apoio do Instituto Serrapilheira.
Imagem do banner: Assim como outros colonos da região, Daniel Berkembrock, integrante do Reca, mudou-se do sul do Brasil para a Nova Califórnia na década de 80. Foto: Avener Prado/Mongabay.