O censo de 2010 foi o primeiro a mapear a presença dos povos indígenas em todo o país, mas a presença do termo pardo no quesito cor e raça é questionado por ativistas indígenas que alegam que a expressão tem sido usada há muito tempo para tornar as identidades indígenas “invisíveis”.
Líderes indígenas estão fazendo uma grande mobilização, convocando povos nativos de todo o país a se autodeclararem indígenas no próximo censo, que será realizado em 2022.
Obter dados precisos sobre o número e a distribuição dos povos indígenas, especialmente nas áreas urbanas, é fundamental para orientar políticas específicas para os povos indígenas, afirmam os especialistas.
*“Tudo é indígena,” afirma Júlio César Pereira de Freitas Güató, uma das lideranças indígenas promovendo a campanha. “O resto é invasão.”
RIO DE JANEIRO — Quando a frota portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral desembarcou no Brasil em 1500, Pero Vaz de Caminha, fidalgo português que se destacou como escrivão da expedição real, escreveu um detalhado relatório oficial para a Coroa portuguesa, datado de 1º de maio daquele ano. O documento, conhecido como a “Carta de Caminha”, é considerado um dos três únicos documentos oficiais sobre o “descobrimento” — termo substituído posteriormente por conquista ou invasão. Em sua carta, Caminha descreveu o povo nativo como pardo: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas… A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos”.
Mais de cinco séculos depois, o termo pardo continua vivo. É uma categoria oficial de cor e raça no questionário do censo brasileiro para designar pessoas de raça mista, incluindo aqueles de herança indígena-negra e indígena-branca. Mas os líderes indígenas veem o termo como um dos principais fatores por trás do número perenemente subestimado de indígenas no Brasil e a consequente falta de políticas públicas voltadas para a população nativa, principalmente em áreas urbanas, onde eles são mais “invisíveis”.
“Lá pelo século 18 muitas famílias nossas adotaram a expressão pardos para não serem escravizados ou mortos. Quem lê a história dos nossos antepassados sabe que essa ocultação foi um recurso para a sobrevivência de muitos coletivos de povos originários aqui nesse território”, diz Ailton Krenak, um dos líderes indígenas mais proeminentes no país. “Essas categorias foram criadas para ocultar nossa identidade e apagar nossa memória”.
Krenak fez essa análise no evento “Não sou pardo, sou indígena”, promovido em abril como parte de um esforço de mobilização indígena nacional para estimular a autodeclaração no próximo censo de indígenas que se identificaram como pardos em censos anteriores. O evento destacou os termos pardo e mestiço como um “truque colonial” que produz categorias de pobreza ao desencadear a exclusão do reconhecimento da identidade indígena na sociedade e o consequente descumprimento de seus devidos direitos.
De acordo com o censo de 2010 (o próximo censo só será publicado em 2022), existem cerca de 900 mil indígenas em todo o Brasil, o que representa menos de 0,5% da população total. Mais de um terço da população indígena do Brasil, ou cerca de 315 mil indivíduos, vive em áreas urbanas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os brasileiros autodeclarados pardos somavam 82,28 milhões ou 43% da população total, segundo dados do censo.
Líderes indígenas afirmam que os números apresentados para a população indígena do Brasil são subestimados, dada a autodeclaração de muitos nativos como pardos para tentar fugir do preconceito arraigado da sociedade em geral contra os povos originários.
“É preciso que a gente nao esqueça o processo histórico e saia desse momento que nós estamos agora para uma configuração dessa comunidade plural no Brasil, onde a constituição de termos como pardo, mestiço, caboclo e todas essas outras categorias que foram se instituindo dentro do colonialismo, que não seja só uma citação, mas sejam percebidos com todo seu peso histórico e violência colonial que nos exige olhar também a questão do racismo”, afirma Krenak. “O racismo estrutural, como é hoje percebido, aquelas marcas que desde o século 17 e 18 foram carimbadas nas nossas peles como ferro de marcar animais”.
Ao longo da história, há vários termos, além de pardo, aos quais os indígenas foram associados, diz Krenak, incluindo caboclo, sertanejo e gentio, cujas definições variaram ao longo do tempo. Mas todos esses termos influenciaram diretamente como os povos indígenas se identificaram e os impactos são refletidos no censo atual.
Ailton Krenak diz que é preciso haver um debate sobre os métodos de coleta do censo e as categorias usadas pelo IBGE para definir cor e raça. Ele também pede que se repense os estudos sociais sobre os pardos e os povos indígenas no Brasil. Krenak aponta para censos em outros países, incluindo os Estados Unidos, onde “não tem dúvida de quem é negro e [quem é] indígena”. A incerteza no Brasil, diz ele, se reflete na falta de políticas voltadas para a população indígena, já que a maioria dos pardos acaba enquadrada como negra — que representa 7.61% da população — para as políticas sociais.
Em seu artigo “Entrando e saindo da‘ mistura ’: os índios nos censos nacionais”, João Pacheco de Oliveira, professor titular e curador das coleções etnográficas do Museu Nacional descreve como a presença indígena no Brasil foi demograficamente escondida ao longo do tempo. Segundo ele, a categoria pardo, tanto no censo quanto na formulação de políticas demográficas, “parece não ter outra função do que a de servir como instrumento do discurso da mestiçagem e reunir evidências numéricas que reforcem as suposições ideológicas quanto à tendência ao “branqueamento” progressivo da população brasileira”.
Ele acrescenta que o valor da diversidade é combatido por esforços para negá-lo por meio do “discurso da mestiçagem”, que é apresentada como uma solução justa e pacífica para os conflitos raciais, mas na realidade anula as diversidades culturais e étnicas. Pacheco chama isso de “racismo à brasileira”, que tenta se passar por uma característica do brasileiro “cordial”. Para Oliveira, a categoria pardo é “o canal por onde navega essa problemática”, fazendo com que os indígenas tenham sido “melting pot”(caldeirão) nos censos realizados no século 20.
“A categoria ‘pardo’ é um indicador genérico para a mistura entre diferentes grupos de cor. Este não é em absoluto o significado da condição de indígena, que remete a um status jurídico diferenciado e não a uma situação de pretensa homogeneidade interna e distintividade externa quanto à cor”, afirma Oliveira. “Ao declarar-se como ‘índio’ ou ‘Hindígena’, o recenseado não está pretendendo inserir- se em uma classificação quanto à cor, mas dizer da especificidade de seus direitos e de sua relação com o Estado”.
Para o professor, os indígenas do Brasil “não têm homogeneidade cromática nem possuem traços físicos que possam singularizá-los perante outros segmentos da população”, o que significa que podem ser facilmente classificados como negros ou brancos. “Em definitivo, a condição de ‘índio’ nada tem a ver com pressupostos quanto à unidade racial ou de cor”.
O IBGE reconhece a dificuldade de alguns indígenas em responder às perguntas sobre cor e raça do censo. Em um teste piloto do censo de 2022, muitos indígenas tenderam a responder com as informações de sua certidão de nascimento, diz Marta de Oliveira Antunes, coordenadora do grupo técnico do IBGE para povos e comunidades tradicionais.
Ela cita o caso da resposta de uma indígena etnia Kaingang: “Ah, eu odeio essa pergunta”. Quando questionada sobre o motivo, ao terminar de responder o questionário, ela respondeu: “Porque no meu documento eu sou a única da minha família que estou como parda”. Quando o recenseador perguntou se ela não era parda, a indígena Kaingang respondeu: “Pra vocês do Estado eu sou, mas eu não sou … Eu sou indígena”.
Também existem problemas na tradução do termo pardo para indígenas que não falam português. Na língua Yanomami, observa Marta, pardo significa “cor de morto”. “O guia ficou rindo da minha cara por um tempão, quando eu tentei entender como é que ele estava fazendo as traduções”, conta Marta. “Preto e amarelo, eles traduzem pela cor mesmo. Branco é os não-Yanomami, somos nós, qualquer um de nós, independente de nossa cor ou raça. E indígena para eles era Yanomami, era a tradução. Então a pergunta não fazia o menor sentido”.
Apesar das críticas crescentes, a categoria pardo permanecerá no censo de 2022, diz Marta, por ter se tornado um termo consolidado nos últimos censos. Mas ela antecipa que haverá várias mudanças na metodologia do censo para permitir a coleta de informações mais fidedigna sobre os povos indígenas.
Uma das novidades é a pergunta: “Você se considera indígena?”, que será aplicada em todas as áreas urbanas previamente identificadas pelo IBGE com um número significativo de indígenas, cuja presença não havia sido detectada em censos anteriores. Isso porque muitos entrevistados tendiam a responder a questões de cor e raça de acordo com o que estava escrito em suas certidões de nascimento e outros documentos oficiais. O IBGE também alterou o termo aldeia para agrupamento indígena para abranger mais realidades de ocupação territorial indígena, incluindo também as comunidades indígenas no contexto urbano.
Marta diz que o acréscimo dessa última questão no censo de 2010 em terras indígenas aumentou em 15,3% o índice de autodeclaração. Ela cita o caso dos indígenas Cinta Larga, em Rondônia, que embora tenham sua identidade “muito bem construída”, a maioria se autodeclarou de cor preta. Mas, ao acrescentar a pergunta se eram indígenas, a identidade indígena deles pôde ser registrada no censo, diz Antunes. “A pergunta de cor ou raça não conseguia dar conta, porque é uma forma de classificação étnico-racial muito da sociedade não-indígena e muito imposta pela colonialidade”.
“Se dentro das terras [indígenas] as pessoas [em] que são tratadas como indígenas pelo Estado nas políticas públicas o tempo inteiro são vistas como indígenas, são percebidas como indígenas, estão se declarando de outra cor ou raça, o que é que acontece fora das terras indígenas?”, questiona Marta. Ela observa que não-brasileiros também têm dificuldade com a classificação étnico-racial brasileira, pois as nossas categorias não são as mesmas usadas em outros país.
Pandemia COVID-19 escancara ‘desigualdades e preconceitos’
A pandemia COVID-19 trouxe à tona como a falta de reconhecimento oficial da identidade indígena afeta os indígenas brasileiros que vivem em áreas urbanas. O cineasta e professor de língua portuguesa Elvis Ferreira de Sá, conhecido como Hugo Fulni-ô, da etnia Fulni-ô, vive em uma Terra Indígena (TI) próxima à cidade de Águas Belas, em Pernambuco. Ele diz que foi vacinado contra a COVID-19, mas viu indígenas na cidade, a apenas 500 metros da TI, tendo esse direito negado.
“Indígenas aldeados e urbanos. Ter essa nomenclatura nos traz impacto negativo para os indígenas que estão nas cidades. Vacina, só teve para aldeados. É como se fosse descartado o Índio. Foi um preconceito”, Hugo Fulni-ô, mestre em lingüística pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), diz à Mongabay em entrevista por telefone. “[O indígena] Pode [estar na área] rural ou urbana. Não importa o lugar”.
A situação descrita por ele é apenas um entre muitos casos semelhantes em todo o Brasil, revelando a luta constante que os indígenas enfrentam não só para serem reconhecidos como indígenas nas cidades, mas também para ter acesso às políticas públicas diferenciadas nas TIs.
Em março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que os indígenas deveriam ser incluídos no grupo prioritário do plano de vacinação do governo federal por motivos históricos, culturais e sociais que tornavam os indígenas mais vulneráveis a doenças infecciosas, com mortalidade superior à média nacional.
Mas a implementação dessa prioridade não tem sido atendida nas áreas urbanas.
Em alguns locais, o Ministério Público Federal (MPF) teve que ingressar com ações judiciais para garantir a vacinação dos indígenas nas cidades. Foi o caso do estado do Amazonas, onde o MPF acaba de obter uma decisão da Justiça Federal determinando a inclusão de todos os indígenas do Amazonas na primeira fase da vacinação prioritária contra a COVID-19.
“Há Indígenas em contexto urbano no Amazonas inteiro”, o procurador da República Fernando Merloto Soave, autor da ação, disse à Mongabay. Para ingressar com a ação, ele reuniu informações atualizadas sobre a população indígena urbana do estado a partir de associações indígenas e com estudos epidemiológicos demonstrando que os indígenas apresentam maior vulnerabilidade a doenças infecciosas como a COVID-19.
Em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, a vacinação dos indígenas só ocorreu depois de uma ação do MPF. “A COVID-19 escancarou desigualdades e preconceitos. Não tem como dissociar indígenas [de contextos] urbanos da priorização da vacina”, disse à Mongabay, por telefone, o procurador da República Marco Antonio Delfino, do Mato Grosso do Sul.
Para ele, a questão é “muito mais sobre racismo”, já que os indígenas sempre fizeram parte dos grupos prioritários para outras campanhas de vacinação, incluindo tuberculose e gripe, junto com a população carcerária, moradores de rua e portadores do vírus HIV. “Ninguém nunca questionou isso. Mas quando [os indígenas] têm acesso a algo que eu quero, mostra que essa discussão está muito mais ligada ao racismo que uma discussão técnica”, diz Delfino. Ele acrescenta que a prioridade dada aos povos indígenas levou à pergunta “por que o branco privilegiado tem que tomar vacina depois de indígena, ainda mais [em ambiente]”.
As várias faces da presença indígena em áreas urbanas
O censo de 2010 foi o primeiro a mapear a presença indígena em todo o Brasil, pois introduziu a opção indígena no quesito cor e raça para todos os cidadãos brasileiros; em censos anteriores, essa questão estava disponível apenas para uma amostra da população. O resultado foi uma notável diversidade indígena: 305 grupos étnicos e 274 línguas em todo o país.
Nas áreas urbanas, 297 etnias foram detectadas no censo; quatro delas — Tapajós, Aimoré, Tamoio e Karijó — haviam sido consideradas extintas em censos anteriores. Essa diversidade tende a ser ainda mais rica, pois 43% dos indígenas entrevistados disseram não conhecer sua etnia, enquanto a etnia de 5,5% foi classificada como mal definida, indeterminada ou não declarada, segundo o IBGE.
A série de reportagens especiais da Mongabay Indígenas nas Cidade, que termina com esta reportagem, mostra que as cidades com a maior população indígenas do país, em números absolutos, são: São Paulo, São Gabriel da Cachoeira, Salvador, Rio de Janeiro, Boa Vista e Brasília. Apenas duas dessas cidades, São Gabriel da Cachoeira e Boa Vista, estão em estados que compõem parte da Amazônia brasileira.
Ao longo desta série, diversos especialistas entrevistados pela Mongabay destacaram a forte presença indígena em Manaus, que é esperada como a cidade com o maior número de indígenas no censo de 2022.
O procurador da República Fernando Soave estima que haja pelo menos entre 12 mil e 15 mil indígenas vivendo em Manaus (no censo de 2010, São Paulo lidera a lista com 12 mil indígenas) usando como base 3 mil famílias indígenas que receberam alimentos, durante a pandemia COVID-19, da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime) e da Cáritas. Estimativas de algumas organizações apontam uma população indígena em Manaus muito mais alta: 30 mil.
“Praticamente a capital inteira é indígena”, diz Soave. “São mais de 20 ocupações indígenas urbanas em Manaus, em geral em áreas de risco, periféricas, áreas vermelhas, de tráfico, criminalidade e até risco de defesa civil”. Só no bairro Tarumã, diz o procurador, vivem 4 mil pessoas, em sua maioria indígenas.
Esse limbo é uma característica comum dos indígenas na cidade: a luta para ser reconhecido como indígena e também para ter acesso aos direitos constitucionalmente garantidos, enquanto os governos municipal, estadual e federal fazem um “jogo de empurra”, afirmam procuradores federais, lideranças indígenas e pesquisadores.
Mas tem tido avanços em algumas cidades. Em Manaus, diz Soave, iniciativas do Ministério Público Federal em aliança com outras instituições têm conseguido promover melhorias na saúde indígena, como a inclusão de pajés em tratamentos de cura em programas de saúde mental. Essa medida foi implementada depois da criação de um grupo de trabalho interministerial, que visa o atendimento diferenciado aos indígenas de forma mais ampla, com a contratação de agentes de saúde indígenas, além da adaptação da dieta de acordo com os hábitos da comunidade e uso de redes em vez de camas em hospitais, por exemplo.
“A ideia é replicar no Brasil todo. Não é passar na frente, é atendimento diferenciado. Às vezes, o cara quer uma rede no hospital, às vezes o cara come o peixe e o hospital não inclui peixe à dieta; e, às vezes, acaba prejudicando a saúde da pessoa”, diz Soave. Há também uma batalha, explica o procurador, tornar obrigatória a pergunta de cor e raça a qualquer pessoa atendida pelo sistema de saúde pública, o que facilitaria o atendimento diferenciado aos indígenas.
Soave diz que também está pressionando por um projeto na Câmara Municipal para a criação de centros culturais indígenas para sediar escolas indígenas para o ensino de questões tradicionais indígenas, com professores indígenas, complementando o currículo regular. A iniciativa também visa estabelecer um plano de carreira específico, incluindo cargos e salários, para os professores indígenas, levando em consideração seus saberes ancestrais, que são baseados na oralidade, em vez de exigirem diplomas e certificados oficiais.
Os povos indígenas estão presentes em áreas urbanas de todo o país de diversas maneiras. A lista das cidades com a maior proporção de moradores indígenas difere daquela com maiores números absolutos e concentra-se nas regiões norte e nordeste: Marcação (na Paraíba), São Gabriel da Cachoeira (AM), Uiramutã (Roraima), Baía da Traição (Paraíba), Carnaubeira da Penha (Pernambuco) e Pariconha (Alagoas). Apenas duas delas, São Gabriel da Cachoeira e Urimatã, estão localizadas na região amazônica.
Em muitas áreas, a luta indígena está diretamente ligada aos séculos de colonização, quando muitos indígenas foram deslocados para as cidades, ou as cidades simplesmente engoliram suas terras, como é o caso da TI onde vive Hugo Fulni-ô.
Embora a cidade de Águas Belas fique a uma distância de apenas 500 metros, todos os 5 mil Fulni-ô da TI praticam seus rituais tradicionais, segundo Hugo Fulni-ô. Todos os anos, diz, vão para uma localidade próxima, onde ficam três meses, de setembro a novembro, para o ritual do Ouricuri. A TI tem a demarcação oficial de 12 mil hectares por causa da “usurpação”, pois a terra ancestral corresponde a uma área muito maior, diz Hugo Fulni-ô. “Nosso povo foi convocado para a guerra do Paraguai. Aí veio a carta magna da princesa Isabel doando esse território, doando o que é nosso. Aí tem 75 mil hectares em estudo, engavetado na Funai(Fundação Nacional do Índio)”.
A diversificada presença indígena em ambientes urbanos está diretamente ligada ao processo de colonização que em muitas áreas pretendia “assimilar” os povos indígenas, afirma Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indígena Missionário (Cimi) na região sul.
“Desde os colonizadores chegaram, eles foram constituindo vilas… essas vilas, mansões, foram também sendo catalisadores, aquilo que atraiu os indígenas, desde muito cedo, desde a chegada dos colonizadores essa é uma prática que vem acontecendo. Uma prática era a atração, porque você atraindo você aí integrava”, explica ele. “Outra prática era repelindo, conforme também as cidades, as propriedades, as terras privadas iam avançando, os interesses econômicos iam avançando também, iam promovendo a expulsão dos indígenas que estavam próximos desses ambientes de interesse econômico urbano”.
Esse processo, observa ele, foi ainda mais intenso nas regiões Sul e Sudeste, até “não sobrar praticamente nada” em termos de terras indígenas.
Convocação para autodeclaração no censo de 2022
O próximo censo será feito de forma diferenciada em relação a vários quesitos para a população indígena, afirma Marta, do IBGE. Pela primeira vez, diz ela, há um antropólogo no IBGE, acompanhando de perto todo o processo do censo em áreas indígenas. Os recenseadores também têm trabalhado junto com as lideranças indígenas para não só para ter acesso às áreas indígenas e facilitar a comunicação com a comunidade, mas também para ajudar a ganhar a confiança dos residentes para obter as informações mais precisas possíveis.
“A gente só vai de 10 em 10 anos nessas áreas, algumas são caríssimas de acessar. E não é justo a gente sair com uma informação sem qualidade. Não é justo para os indígenas e não é justo pra sociedade”, destaca Marta.
Os indígenas também estão sendo pagos por seu trabalho como guias para os recenseadores, diz Marta, e estão muito envolvidos em campanhas para mostrar à população indígenas a importância de se auto declararem.
Obter os dados censitários os mais precisos possíveis é fundamental, pois isso tem impacto direto nas políticas públicas, afirma Ricardo Ventura Santos, pesquisador da escola nacional de saúde pública da Fiocruz e professor do Museu Nacional. Ele diz que é preciso analisar e “criticar” os dados do censo para aperfeiçoá-los, e os dados sobre a identidade indígena precisam ser refinados para se ter o retrato mais fiel possível dos residentes indígenas em áreas urbanas.
“Esse urbano é muito múltiplo, é muito diversificado, como rural também”, afirma. “A distribuição desses indivíduos entres espaços urbanos, a heterogeneidade no contexto urbano é muito importante… e isso influencia tudo… Primeiro, como é que você identifica os indígenas e outras minorias, e com esses dados, dá visibilidade à questão da desigualdade, moradia, onde as pessoas estão morando nas áreas urbanas, com quem estou morando, as condições de saneamento dessas áreas, das condições dos indicadores de violência”, explica Ventura. “A produção desses dados indígenas eu acho que repercute em todas as políticas públicas, seja ela qual for”.
Várias lideranças indígenas e especialistas entrevistados pela Mongabay criticaram a Fundação Nacional do Índio (Funai) por sua falta de assistência aos indígenas que vivem em áreas urbanas. Em nota, a Funai afirma que os indígenas em situação de vulnerabilidade social devem ser atendidos pela rede de assistência social, assim como todos os demais cidadãos brasileiros”, por meio do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e que a instituição “promove uma interlocução interinstitucional” com a União, estados e municípios. A instituição informou também que “trabalha para qualificar as políticas públicas voltadas aos indígenas que estão nas cidades”.
Embora a Funai não tenha dado informações específicas sobre as políticas para indígenas em áreas urbanas, a instituição tem “naturalmente” aumentado o atendimento aos indígenas em áreas urbanas diante da demanda crescente, disse à Mongabay uma fonte da Funai que trabalha na instituição há mais de uma década, que falou em condições de anonimato, em função de restrições impostas pelo governo federal para dar declarações à imprensa.
A fonte explicou que, se no passado, as questões ligadas aos indígenas no contexto urbano eram tratadas como “menos importantes”, agora não se discute o envio de ajuda alimentar aos indígenas em assentamentos urbanos informais, por exemplo. Em muitas áreas, explica a fonte, a emissão de documentos de identidade civil e aposentadoria responde pela maioria das demandas da Funai. A área de demarcação de terras é a única que está realmente voltada para fora do ambiente urbano, segundo a fonte.
Uma das vitórias comemoradas pelos indígenas foi o estabelecimento de um sistema de cotas que permitiu seu ingresso nas universidades. De fato, o número de indígenas que ingressaram na universidade saltou de 10.219 para 80.652 entre 2010 e 2019. Nesse mesmo período, o número de indígenas formados também aumentou de 1.022 para 6.718, segundo dados do censo do ensino superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
No entanto, ainda existem desafios no ambiente do campus.
Nascida no Rio, a professora de história no ensino público Marize Vieira de Oliveira Guarani foi a primeira indígena a ingressar no doutorado em educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, por meio do sistema de cotas para indígenas. No entanto, ela conta que um colega indígena foi rejeitado na cota de pardos por ser considerado “muito claro”, referindo-se à cor de sua pele. Segundo ela, havia muitas vagas para pardos e apenas uma para indígena.
Natural do Maranhão, o professor de línguas indígenas José Urutau Guajajara é mestre em lingüística pela UFRJ e doutorando em lingüística pela UERJ. Mas ele relata dificuldades para se adaptar ao sistema acadêmico.
“É muito difícil ter uma escola que vai entender o nosso tempo, entender o tempo do Guajajara. Nós somos dispersos… desde que entrei pra escola, eu nunca tirei uma nota máxima, nunca, nunca, era sempre… uma nota para passar de ano”, diz José Urutau à Mongabay, referindo-se à diferença do padrão de ensino indígena, baseado na oralidade. “E aí às vezes até me perguntava ‘Caramba, puxa vida… Será que eu não sou bom em nada? Eu não sou bom em matemática, não sou bom em ciências, também não sou bom em geografia, não sou bom em química, enfim… Todo mundo tem que ser bom em alguma coisa, sabe?”’.
“Mas um belo dia eu me deparei com o mapa e alguns parentes de outras regiões e aí eu vim a descobrir que eu tinha o mapa completo do Brasil, de todas as etnias, línguas [na minha cabeça] e aí parei: ‘Puxa, eu sou bom em alguma coisa’”.
Júlio César Pereira de Freitas Güató, do povo Güató, é um dos protagonistas do evento “Não sou pardo, sou indígena”, com o objetivo de estimular a autodeclaração em todo o Brasil.
“Tem um discurso oficial que não chega a 1 milhão, ocupando 13% do território”, afirma ele, acrescentando que discorda veementemente dessa estatística. Ele cita um estudo recente que detectou DNA indígena em 36% dos brasileiros.
O movimento indígena está pressionando o IBGE para revisar o método de coleta dos dados do censo. Muitos indígenas “não se autodeclaram indígenas porque só tem política pública para negros, quilombolas e pardos”, diz Júlio Güató, destacando que sem autodeclaração não há políticas públicas.
Nascido em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, Júlio Güató mora em São Paulo há 25 anos e é professor de língua portuguesa.
“A gente quando nasce indígena, já nasce com o propósito de resistir. Nascemos no contexto urbano, a cidade que invadiu as terras”, afirma ele, que diz que em Corumbá as terras dos povos indígenas foram engolidas pela cidade. “Tudo é indígena. O resto é invasão”.
Esta reportagem faz parte do especial Indígenas nas Cidades do Brasil e recebeu financiamento do programa de jornalismo de dados e direitos fundiários do Pulitzer Center on Crisis Reporting.
Mapas: Ambiental Media / Juliana Mori.
Infográficos: Ambiental Media / Laura Kurtzberg.
Pesquisa e análise de dados: Yuli Santana, Rafael Dupim e Ambiental Media.
Imagem do banner:“Retrato de estúdio: Retrato de grupo sentado de dez povos indígenas”, Artista desconhecido. Imagem cortesia do Horace W. Goldsmith Foundation Fund, por meio de Joyce e Robert Menschel, 2017.
Karla Mendes é editora e repórter investigativa da Mongabay no Brasil. Twitter: @karlamendes