Há 24 anos um líder indígena foi queimado vivo e morto na capital federal como uma “brincadeira”. Hoje, pouco parece ter mudado, dizem os indígenas que vivem em Brasília.
Desde a sua fundação, em 1960, Brasília tem atraído líderes indígenas e ativistas com o intuito de levar suas reivindicações ao centro do poder do país. Alguns, como Beto Marubo, que obteve êxito para obter suprimentos de saúde e apoio para sua comunidade na Amazônia durante a pandemia de COVID-19, dizem que têm melhores chances de alcançar seus objetivos estando na capital.
Outra figura de destaque é a deputada federal Joenia Wapichana, a primeira indígena eleita para o Congresso, que tem como missão barrar a agenda antiindígena do presidente Jair Bolsonaro.
Mas muitos indígenas que vivem na capital federal dizem que não se sentem em casa e relatam frequentes incidentes de preconceito e violência. Īrémirí Tukano, graduado em eventos e estudante de turismo na Universidade de Brasília (UnB), afirma que seu objetivo é aprender o conhecimento dos não-indígenas para levá-lo para seu povo.
BRASÍLIA — Em abril de 1997, um líder indígena foi assassinato brutamente na capital federal. Galdino Jesus dos Santos, 44, estava em Brasília para participar de manifestações exigindo a demarcação do território de seu povo Pataxó-Hã-Hã-Hãe, na Bahia. Na noite de 20 de abril, ao voltar de uma reunião por volta da meia-noite, ele foi impedido de entrar na pensão onde estava hospedado e dormiu em um ponto de ônibus próximo ao local. Cinco jovens de famílias abastadas o viram sozinho. Eles jogaram gasolina em seu corpo e atearam fogo.
Galdino morreu horas depois no hospital com queimaduras em 95% do corpo. Era uma “brincadeira”, seus agressores diriam mais tarde à polícia. Um juiz federal aceitou a alegação, inocentando quatro deles das acusações de homicídio e sentenciando o quinto, de 17 anos na época, a três anos de detenção juvenil pela acusação de lesão corporal. Dois dos agressores eram filhos de juízes.
Vinte e quatro anos depois, indígenas que vivem em Brasília ainda denunciam preconceito e violência contra eles.
Nascido em uma aldeia indígena no estado do Amazonas, Īrémirí Tukano conta que passou por inúmeros episódios de violência e discriminação desde que se mudou para Brasília, há 13 anos. Mas um em particular o magoou profundamente, relata. Foi em 2012, quando trabalhava como estagiário no Ministério da Cultura.
“Uma vez eu fui entregar um documento na sede na Esplanada [dos Ministérios] e um dos servidores me perguntou se eu era indígena. Eu falei que sim. E ele falou assim: ‘O que você está fazendo aqui? Você tem que voltar para o mato, você não tem nada para fazer aqui”, Īrémirí Tukano relembra. “Isso me machucou muito e hoje eu me lembro e carrego isso. Eu não quero que meus filhos passem por isso”.
Graduado em eventos pelo Instituto Federal de Brasília (IFB) e estudante de turismo na Universidade de Brasília (UnB), Īrémirí Tukano diz que só se sente “incluído” na cidade durante o Acampamento Terra Livre, a maior concentração indígena do país. O evento, realizado todo mês de abril, reunindo grupos de todo o Brasil, é o mesmo que Galdino havia participado antes de sua morte. Desde que a pandemia de COVID-19 estourou em 2020, o evento tem ocorrido de forma remota, pela internet.
O povo Tukano, que se autodenomina Ye’pâ-masa ou Daséa, é o grupo étnico mais numeroso na família linguística Tukano Oriental — cerca de 4,6 mil indivíduos — no estado do Amazonas. O contato de não-indígenas com o povo Tukano remete ao século XVIII, atrelado a massivas incursões dos colonizadores portugueses em busca de escravos. No final do século XIX, missionários franciscanos e salesianos retiraram crianças à força de suas aldeias para serem educadas em escolas ou internatos, onde foram ensinadas a rejeitar os valores e modos de vida de seus pais, encorajadas a casar-se dentro de seus próprios grupos e proibidas de falar as línguas que lhes conferiam identidades múltiplas e interconectadas.
A luta de Īrémirí Tukano pelo reconhecimento de sua identidade indígena é comum entre os indígenas que vivem em áreas urbanas em todo o Brasil.
Brasília foi construída na década de 1960 para substituir o Rio de Janeiro como capital do Brasil. Sua localização na região central do país quase não apresentava vida urbana, mas abrigava grupos indígenas, afirma a antropóloga da UnB Thais Nogueira. Muitos indígenas foram trabalhar na construção de Brasília, projeto que visava levar desenvolvimento ao interior do país. Mas o papel dos povos indígenas e quilombolas na construção da nova capital do país foi praticamente apagado da história oficial.