A Black Jaguar Foundation planeja reflorestar 1 milhão de hectares ao longo dos rios Araguaia e Tocantins, na Amazônia e no Cerrado. O corredor natural de 2.600 quilômetros de extensão exigirá o plantio de cerca de 1,7 bilhão de árvores. Dezenas de milhares já foram plantadas.
O corredor natural será estabelecido em propriedades privadas, e terá objetivos ecológicos e econômicos, resultando tanto na conservação da terra quanto na produção agroecológica sustentável. Ele atravessará seis estados: Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Pará e Maranhão.
A BJF está bem financiada e organizada, então os maiores obstáculos para atingir a meta da ONG são os proprietários rurais, que precisam acreditar nos benefícios econômicos do corredor verde; 24 mil propriedades rurais estão incluídas no planejamento do corredor.
A Black Jaguar Foundation (BJF) tem apenas um objetivo, mas é um objetivo bem ambicioso: a ONG fundada pelo empresário e ambientalista holandês Ben Valks planeja reflorestar 1 milhão de hectares de vegetação da Amazônia e do Cerrado nas margens dos rios Araguaia e Tocantins.
O corredor natural de 2.600 quilômetros de extensão, quando concluído, terá 20 quilômetros de largura a partir de ambas as margens dos dois rios. Será necessário o plantio de cerca de 1,7 bilhão de árvores, de acordo com a organização, e servirá tanto para apoiar a produção agroflorestal quanto a preservação ambiental.
O projeto da BJF já está em andamento, com dezenas de milhares de árvores plantadas. Mas seu maior obstáculo está por vir: o cinturão verde será estabelecido apenas em terras privadas, o que exigirá a cooperação de proprietários possivelmente resistentes.
O mérito do projeto está não só em sua grandee escala – a restauração planejada atravessará seis estados brasileiros (Goiás, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Pará e Maranhão) –, como também na importância que terá para proteger a vida selvagem e proporcionar uma ligação entre dois dos maiores e mais importantes biomas do país: o Cerrado (que ocupa 48% da área do projeto) e a Amazônia (que corresponde a 52%). Ambos os biomas estão sob pressão intensa devido à expansão da pecuária e da monocultura.
Código florestal possibilita criação do corredor
Quando concluído, o território reflorestado formará o Corredor de Biodiversidade do Araguaia, conceito concebido em 2008 pelo biólogo Leandro Silveira, do Instituto Onça-Pintada. Na época, Silveira, um dos principais conservacionistas do maior felino das Américas, criou o Fundo para a Conservação da Onça-Pintada (FCOP). Agora, a BJF está trabalhando para tornar o corredor uma realidade.
Uma das tarefas do FCOP é mapear a distribuição de cinco espécies-chave na região, e estudar especialmente a ecologia das onças na zona do corredor. O papel desafiador, porém fundamental, da BJF é criar um corredor natural contínuo, conectando dois pontos verdes: os fragmentos existentes de vegetação nativa com a floresta recém-plantada que cobrirá terras atualmente desmatadas e degradadas em propriedades rurais privadas.
O Código Florestal brasileiro – transformado em lei federal em 1965 e revisado recentemente em 2012 – ajuda a tornar esse projeto viável. A legislação requer que todos os proprietários particulares na Amazônia e no Cerrado protejam uma proporção significativa de áreas naturais em suas propriedades. Essas áreas conservadas recebem diversas designações, incluindo áreas de preservação permanente (APP), reservas legais (RL) e áreas de uso restrito. Segundo a lei federal 12.651/2012, toda propriedade privada rural deve incluir uma APP e uma RL.
Entre as funções ambientais de uma APP está a preservação dos recursos hídricos. O principal objetivo de uma RL é a preservação da vegetação nativa, para garantir o uso econômico contínuo dos recursos naturais da propriedade de forma sustentável. O tamanho de uma RL depende do bioma no qual está localizada No Cerrado, a RL deve ocupar até 35% da área da propriedade; na Amazônia, até 80% deve ser conservado.
“Pensamos no que poderia ser uma forma viável de recuperar o corredor, então fizemos um estudo para identificar quantas e quais propriedades [privadas] estavam obedecendo à lei [do Código Florestal] e quais não estavam. Também descobrimos a localização e o tamanho das áreas degradadas nas RLs e APPs e quantificamos os benefícios e custos ambientais, econômicos e sociais do futuro corredor”, diz Andrea Lucchesi. Ela é professora de economia ambiental na EACH/USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo) e coordenadora do estudo de viabilidade.
Encomendada pela BJF e realizada por pesquisadores do EACH/USP e da Universidade de Illinois Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, a pesquisa identificou 24 mil propriedades na área do corredor, das quais 13.148 têm um deficit ambiental de RLs e APPs, totalizando 1 milhão de hectares. A equipe também mapeou outras características, incluindo a propriedade da terra e as áreas de vegetação nativa e espécies.
Contudo, o estudo só foi capaz de determinar a posse clara de 81% da área total do corredor verde proposto. “O problema é que o CAR [Registo Ambiental Rural, que registra todas as propriedades rurais do Brasil], é autodeclaratório, e encontramos muita sobreposição de terras entre propriedades, por exemplo”, diz a economista ambiental. Determinar os limites entre as terras e estabelecer a titularidade clara será um dos desafios para realizar o projeto do corredor.
Benefícios superam custos
O estudo concluiu que a restauração do corredor verde de 1 milhão de hectares, aliada à implementação de sistemas de produção agroflorestal na floresta restaurada, poderá resultar em US$ 21,1 bilhões [R$ 117,7 bilhões] em benefícios ambientais e econômicos ao longo dos próximos 50 anos (uma estimativa que depende dos ciclos de crescimento das árvores produtoras e das técnicas de manejo florestal).
Outros benefícios do projeto incluem a captura de 263 milhões de toneladas equivalentes de CO2 , uma redução de 527 toneladas de erosão do solo, rendimentos com a venda de produtos de madeira e outros, e a criação de mais de 37 mil empregos. O custo total do projeto é estimado em US$ 2,2 bilhões [R$ 12,3 bilhões].
As despesas serão cobertas pela BJF e incluirão a manutenção das áreas reflorestadas durante os três primeiros anos do projeto, além do monitoramento florestal no décimo e vigésimo anos depois do plantio. Cada proprietário rural que se juntar à iniciativa da BJF receberá seu próprio plano de restauração baseado no tamanho da área que possui, uma estimativa do nível atual de degradação da terra, além de sementes e mudas de espécies nativas que oferecem maior potencial de desenvolvimento econômico agroflorestal.
“Os dois modelos de restauração que adotamos seguem princípios ecológicos para a conservação da biodiversidade” e a restauração de florestas e vegetação nativa, mas o segundo modelo também segue “princípios econômicos que incluem o uso sustentável do solo para a geração de madeira e produtos agrícolas”, explica Dimitrio Schievenin, engenheiro florestal da BJF e coordenador do projeto. “As áreas [reflorestadas] não podem ser desfiguradas, nem podem ser totalmente desmatadas, e a remoção de uma ou duas árvores por hectare, quando estiverem crescidas, é comum em planos de manejo sustentável de florestas nativas.”
Um projeto nos estágios iniciais
Até agora, quase nenhum proprietário privado que assinou contrato com a BJF mostrou interesse em implementar um sistema de manejo de madeira em suas terras, alegando que o uso requer um processo muito burocrático e um trabalho custoso para cortar as árvores. Em vez disso, eles preferiram o extrativismo agrícola de algumas espécies florestais como o baru (uma castanha do Cerrado que tem alto valor nutricional), o pequi (fruto rico em óleo com muitos usos), o cupuaçu (fruto amplamente usado na cozinha da Amazônia), e o buriti (uma paleira cujos frutos são ricos em vitaminas A, B e C).
As primeiras mudas do corredor foram plantadas em 2018 na região de Santana do Araguaia (no sul do Pará) e em Caseara (no Tocantins) – ambos municípios localizados na zona de transição entre a Amazônia e o Cerrado, aproximadamente no centro do longo corredor. Em dezembro, o total de mudas chegou a 100 mil em 130 hectares, incluindo uma área piloto. O trabalho de campo ganhou ímpeto no último trimestre de 2020, quando 30 mil mudas foram plantadas.
“Antes da pandemia [de covid-19], o objetivo era chegar em março de 2021 com mais 250 mil mudas [com o plantio feito de outubro a março, na estação chuvosa], mas reduzimos esse número para 80 mil. No ano passado, alguns trabalhadores da equipe de campo contraíram o vírus e os proprietários de terras se trancaram em casa e recusaram sua entrada”, explica Schievenin.
Embora os números atuais estejam longe de atingir a próxima meta de plantio – 1 milhão de árvores até o fim de 2022, e 10 milhões até 2025 na área de Santana do Araguaia –, a BJF está confiante de que cumprirá o objetivo dentro do prazo.
“É desafiador, mas não é impossível. Até o ano passado, estávamos focados em obter os recursos financeiros para o primeiro milhão de árvores, o que praticamente já conseguimos. As áreas combinadas dos proprietários com os quais já assinamos contratos representam 40% dos 600 hectares necessários para esse milhão de árvores”, explicou a Coordenadora de Relações Institucionais da BJF. “Os outros 60% estão localizados nas propriedades de cinco novos fazendeiros com os quais estamos negociando.”
Obstáculos a superar
Ingo Isernhagen, pesquisador da Embrapa Agrossilvipastoril e membro do conselho da BJF, concorda que as metas da ONG são muito ambiciosas, mas observa que o projeto é muito promissor em termos ecológicos e econômicos para as áreas rurais do Brasil.
“O projeto cobre um longo gradiente latitudinal, norte-sul, que atravessa regiões do Cerrado e da Amazônia”, diz o biólogo da Embrapa. “O Brasil tem um grande passivo em áreas degradadas, e a iniciativa da BJF é um grande laboratório a céu aberto para a restauração de ecossistemas no centro do país, na região da fronteira agrícola.”
Como a área de trabalho atual do projeto está localizada na zona de transição da Amazônia para o Cerrado, “a equipe de campo precisa estar [muito] atenta às variações na fisionomia da vegetação e procurar fontes de sementes e mudas que levem em conta essas diferenças nas regiões. Há espécies muito versáteis [crescendo na área do projeto], mas uma mais típica do Cerrado não cresce necessariamente bem em ambientes do bioma da Amazônia e vice-versa.”
Outro desafio logístico: a coleta de sementes da ONG e o esforço de plantio de mudas requer um bom número de trabalhadores de campo. Contudo, Isernhagen explica que a escassez de mão de obra capacitada em restauração florestal tem sido um problema na região há alguns anos.
Essa falta de trabalhadores capacitados é compensada de alguma forma pelas técnicas de restauração da BJF: a ONG não só planta mudas manualmente, mas realiza a semeadura direta usando maquinário agrícola (o que traz ganhos em escala e diminui a neessidade de mão de obra). O projeto também conta em grande medida com a regeneração natural. “Há áreas que foram recentemente desmatadas e não passaram por muitos anos de cultivo, então há uma boa chance de a vegetação [nativa] se recuperar por conta própria”, diz o especialista da Embrapa.
O maior desafio até agora para a BJF, de acordo com os entrevistados, não é o lado técnico ou financeiro do projeto, mas sim o fato de depender da vontade dos donos de 24 mil propriedades rurais de aderirem ao projeto.
“Às vezes há muita resistência entre os proprietários; que têm perfis diversificados. Enquanto alguns concordam que a restauração ecológica traz ganhos para a produção agrícola e estão preocupados em estar dentro da lei, outros desconhecem as novas tecnologias e têm meia cabeça de gado por hectare em suas terras”, diz Isernhagem, e, portanto, não aceitam imediatamente as vantagens de participar da iniciativa.
“Nós procuramos mostrar os benefícios que eles terão além da regularização ambiental, tais como melhorar o clima e o solo, controlar pragas através da biodiversidade e manter os recursos d’água”, diz Shcievenin. “Infelizmente, não há uma sensação de urgência. Os proprietários rurais acreditam que a restauração [florestal] não será problema deles, mas sim de seus filhos ou netos. [Mas] aqueles que se juntaram à iniciativa até agora já tinham uma consciência ecológica.”
A arte da negociação
Um exemplo disso é Guilherme Tiezzi, proprietário de uma fazenda de 500 hectares no município de Caseara, no Tocantins. Quando ele ficou sabendo do plano do corredor verde, ficou, em suas próprias palavras, “super entusiasmado”. “Um mês depois eu estava em Amsterdã para falar com [o fundador da BJF] Ben [Valks]. Fui o primeiro fazendeiro a assinar o acordo”, contou Tiezzi.
Ele e a irmã herdaram a propriedade do pai, que tinha desmatado 60% da terra para dar lugar a pastagens para o gado. A visão do filho mais novo, contudo, era bem maior, e trabalhando junto com a ONG, o técnico agrícola investiu na construção do primeiro viveiro do projeto, que foi instalado nas terras de Tiezzi. A BJF plantou 500 mudas em 200 hectares da fazenda, que hoje serve como Reserva Privada do Patrimônio Natural (RPPN) dento das áreas de APP e RL da propriedade. Nos outros 300 hectares, o fazendeiro está desenvolvendo agroflorestas e sistemas integrados de plantio, floresta e criação de animais. Para esse fim, ele já plantou dezenas de espécies nativas e, no futuro próximo, espera introduzir galinhas, porcos e peixes à mistura.
“É mais fácil desmatar tudo e instalar monoculturas porque chove muito nessa região” e tudo cresce rápido, diz Tiezzi. “Mas se todos plantarem apenas soja, no médio prazo o solo degrada, os animais da área morrem e os ecossistemas param de se regenerar. Minha intenção é manter a floresta de pé e fazer negócio ao mesmo tempo. Como a BJF, eu acredito que o ganho econômico para os proprietários rurais é a forma de conseguir a restauração em grande escala.”
Contudo, Tiezzi é atualmente uma exceção, na visão de Eduardo Malta. Malta é especialista em restauração ecológica do Instituto Socioambiental (ISA) e foi um dos coordenadores de um projeto da ONG que, com parceiros, plantou 1 milhão de árvores em 300 hectares de APPs em apenas um ano (2017) em torno do Parque Indígena do Xingu.
“No Mato Grosso e no Pará, recebemos muitos olhares tortos dos proprietários. Eles achavam que perderiam área de produção”, lembra-se Malta de sua experiência no plantio do ISA.
“Mesmo assim, conseguimos convencer alguns deles apresentando uma proposta consistente, com muita clareza e transparência”, conta. “Também não havia Bolsonaro ou [o ministro do Meio Ambiente Ricardo] Salles na época, e mais pessoas estavam dispostas a cumprir a lei [do Código Florestal]. A situação política atual passa a mensagem de que não há necessidade de reflorestar, e os proprietários acham que podem deixar para depois, ou ainda que a lei pode mudar.”
Embora muitos proprietários rurais vejam a cobertura dos custos do projeto pela BJF como um grande incentivo, Malta sugere que o projeto poderia avançar mais facilmente se os proprietários rurais tivessem um envolvimento maior – incluindo financiamento direto e fornecimento de funcionários das fazendas para participar dos plantios. “Do contrário, [os proprietários] não têm nada a perder se não se comprometerem. Nós fornecemos tudo em alguns casos, e às vezes funcionou, às vezes não. Um proprietário, por exemplo, soltou o gado na área que tínhamos plantado, e outro vendeu a propriedade e não nos contou.”
Apesar dos inúmeros desafios, a BJF está avançando de forma consistente, alcançando mais dia após dia. No mês passado, a ONG recebeu aprovação do município de Santana do Araguaia para construir um terceiro viveiro de mudas, que será equipado com painéis solares, um sistema de coleta de água da chuva, e terá capacidade de produção anual de 500 mil mudas. De acordo com Valks, fundador da Fundação Black Jaguar, o viveiro faz parte de um plano municipal mais amplo para criar um parque de 40 hectares, dos quais dois hectares serão ocupados pelo viveiro.
“Especialmente num país tão complexo como o Brasil, é impressionante ver que os municípios começam a abraçar a nossa missão”, diz Valks. “Estamos confiantes de que nosso projeto terá sucesso. Precisamos acreditar no lado positivo da humanidade, para que possamos agir e pelo menos fazer um esforço para restaurar o equilíbrio entre a humanidade e a natureza.”