A erosão nas margens do arquipélago tem destruído casas, escolas e postes de eletricidade. Sem energia, pescadores e coletores de açaí das comunidades locais não têm como manter seus produtos refrigerados.
Segundo pesquisadores, uma das causas é a redução da vazão do Rio Araguari, ao norte do arquipélago, antes conhecido pelo fenômeno da pororoca — hoje extinta na região devido às mudanças na dinâmica do estuário.
A construção de três usinas no Rio Araguari nos últimos 50 anos, além da degradação provocada pela criação de búfalos, podem estar por trás do crescente avanço do mar sobre as ilhas.
VILA MACEDÔNIA, AMAPÁ — Encravado na foz do Rio Amazonas, o Arquipélago do Bailique, no Amapá, às margens do Oceano Atlântico, é formado por oito ilhas estuarinas onde vivem em torno de 13 mil pessoas integradas à dinâmica da floresta de várzea à sua volta. Mas o equilíbrio estabelecido por essas comunidades com o meio ambiente, no qual pesca artesanal e manejo sustentável do açaí são as principais fontes econômicas, vem sofrendo abalos profundos em um processo de erosão e desbarrancamentos que acontecem de forma progressiva.
Conhecida localmente como fenômeno das Terras Caídas, a destruição atinge casas, escolas, rede elétrica, estações de tratamento de água e a própria sobrevivência dos ribeirinhos e do ecossistema que habitam desde o século 19. Alguns anos atrás, mais precisamente em 2013, a pororoca do Rio Araguari, cuja foz fica ao norte do arquipélago, acabou. O estrondoso choque de forças das águas do mar com o rio não mais acontece desde então.
A desembocadura do Araguari estava em processo avançado de fechamento por conta de um contundente assoreamento, e a perda de vazão fez com que sua pororoca, considerada uma das maiores do mundo, passasse a entrar por um rio secundário. O episódio ganhou destaque em reportagens, mas foi só o primeiro capítulo de uma série de eventos que vieram a seguir. Um futuro incerto ainda paira sobre um dos maiores desastres ambientais do estado do Amapá.
O Rio Araguari, cuja bacia hidrográfica ocupa um terço do estado e é a maior do Amapá, teve sua vazão totalmente capturada pela bacia Rio Amazonas. Os 600 metros que margeiam a desembocadura, antes palco da pororoca, viraram pasto. Agora, as terras são disputadas por criadores de búfalos, que já cercaram a área — pública, por sinal — na tentativa de reivindicar a posse e aumentar suas propriedades.
Interferência humana acelerou o processo de erosão
De acordo com Valdenira Santos, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa) e professora da Universidade Federal do Amapá (Unifap), os responsáveis pelo desvio da água foram dois igarapés. Chamados de Gurijuba e Urucurituba, eles foram crescendo de tamanho e profundidade a ponto de conectarem as bacias hidrográficas do Amazonas e do Araguari — até então incomunicáveis, exceto no período das cheias.
“Os riachos foram expandidos em uma superposição de eventos dentro da combinação de acontecimentos naturais e ações antrópicas”, explica a pesquisadora, enumerando os fatores por trás da ocorrência: “Alagamentos ocasionados pelas cheias dos rios Amazonas e Araguari, as grandes marés de equinócio, as fortes chuvas intensificadas pelo La Niña [fenômeno de esfriamento das águas do Oceano Pacífico] e inúmeras valas abertas por pisoteio dos búfalos e pelos próprios fazendeiros da região. Tudo isso se interconecta no período das inundações e estas intervenções humanas acabam por acelerar muito o processo, principalmente nos pequenos desníveis na planície em que o escoamento da água progride ainda mais”.
Um destes canais, o Varadouro de Urucurituba, chega a ter 300 metros de largura entre as margens no ponto onde encontra o Rio Araguari, drenando 70% do fluxo de suas águas. Os outros 30% são escoados antes pelo Canal do Gurijuba, localizado 60 quilômetros acima. Após ganhar potência e vazão de 8 mil metros cúbicos por segundo com as águas sequestradas do Araguari, o Urucurituba redistribui o fluxo para outro afluente, o Canal da Cubana, que passa em frente às comunidades de Vila Progresso e Macedônia, onde a erosão avança em uma média de 10 metros por ano.
Morador da Vila Progresso, o ex-líder comunitário Alcindo Bajo Farias, o Chinoá, diz que muitos moradores da comunidade foram embora e se mudaram para a capital Macapá, a 180 quilômetros de distância em uma viagem de 12 horas de barco subindo o Rio Amazonas. “Vi muita casa indo embora pelo canal. Tem morador que já reconstruiu mais de três vezes”, conta Chinoá.
Segundo ele, a Escola Bosque, que é a única do Bailique com ensino médio, perdeu espaço e teve quase a metade de sua área destruída. A escola é tida como um modelo inovador de educação na floresta, em que a natureza é base para o desenvolvimento dos conteúdos em sala de aula. Outras duas escolas no arquipélago também correm o risco de desabar.
A falta de eletricidade também é um grande problema: “Se tivermos dez dias de energia por mês é muito. Os postes caem com a erosão e a empresa responsável tem poucos funcionários para reinstalar. Sem luz, não conseguimos mais guardar o peixe e o açaí na geladeira”.
3 mil anos em cinco décadas
Com décadas de pescaria nas costas, Seu Chinoá diz que a velocidade do Rio Araguari começou a diminuir com a construção da Usina Hidrelétrica Coaracy Nunes, em 1976 , a primeira usina a produzir energia elétrica na Amazônia. Quando a usina Ferreira Gomes foi feita, em 2014, a vazão praticamente parou e não conseguiu mais retirar a lama deixada pela pororoca. Três anos depois, a pá de cal no leito do Araguari veio com a terceira hidrelétrica, Cachoeira Caldeirão, em 2017.
Inconformado com a situação de abandono, o antigo morador conta que agora o mar entra no arquipélago pelo Rio Marinheiro e a água chega salgada nas comunidades ao sul. “O sistema de tratamento não dá conta de abastecer toda a população e o governo diz que não tem recursos para ampliar.”
A Companhia de Água e Esgoto do Amapá (Caesa), por meio do seu diretor técnico operacional, João Paulo Monteiro, informou que a empresa tem quatro estações de tratamento que atendem as quatro principais comunidades do Bailique, equivalente a 60% da sua população. O restante mora em comunidades distantes e com poucas casas, o que, nas palavras dele, inviabiliza o investimento, uma vez que eles não arrecadam dinheiro com essa parcela da população. “Só será possível fazer investimentos maiores quando os pesquisadores entenderem o fenômeno”, disse à Mongabay.
O presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique (ACTB), Geova Alves, por sua vez, se divide entre o otimismo com as perspectivas de retorno financeiro para os moradores — a associação foi contemplada como a primeira no Brasil a receber o certificado socioambiental de manejo do açaí — e a preocupação com a diminuição da pesca e as perdas de terra por conta dos desbarrancamentos. “Com o fechamento do Araguari, os peixes de água doce estão diminuindo muito aqui. Quanto ao açaí, tem produtor que perdeu o açaizal inteiro. A degradação do solo aumentou muito nos últimos três anos.”
Segundo Valdenira Santos, a transformação geomorfológica e hidrodinâmica nesta zona estuarina do norte do Brasil, em que desembocaduras de rios fecham, abrem e mudam de lugar, é natural e acontece em uma escala de tempo de milhares a milhões de anos. Como exemplo, ela cita um estuário acima do Rio Cunani, perto do Rio Oiapoque, que teve sua drenagem desativada em um processo geológico de acúmulo de material há 3 mil anos. Mas o que ocorre no Araguari está sendo acelerado de forma artificial. É provável que o sistema tenha colapsado em menos de 50 anos.
“A construção de três usinas hidrelétricas em cinco décadas não pode ser ignorada”, diz a professora da Unifap. “Eu participei de um conselho estadual de recursos hídricos e na época se discutia a construção da usina do Caldeirão. Nós alertamos para que não houvesse mais nenhuma intervenção no rio, já enfraquecido, mas pedi demissão quando descobri que os estudos usados nos termos de referência ignoravam as dinâmicas e influências da zona costeira na intensa deposição de sedimentos. Fizeram o projeto sem considerar que estavam em região de estuário.”
Alan Cunha, professor de Engenharia Civil na Unifap, diz que as usinas, além de reduzirem a amplitude do curso hidrológico, gerando erosão e processos sedimentares, descumprem uma lei federal de 2000 que prevê responsabilidade a jusante das barragens, ou seja, rio abaixo: “Estes empreendimentos só se preocupam com a parte montante da usina, com a segurança do seu reservatório, onde é gerada a energia. O que acontece para baixo é seja o que Deus quiser. Falta uma gestão da bacia hidrográfica com todos os atores envolvidos. Não tem pesquisa porque não tem monitoramento, que precisa de investimento para acontecer. E, se não tem monitoramento, não existe transparência na divulgação dos dados”.
Procurada pela Mongabay, a Companhia de Energia do Amapá (CEA) não se manifestou até o fechamento desta reportagem.
Inércia do estado e questões fundiárias
Com tantos mandos e desmandos, os problemas do Araguari e do Arquipélago do Bailique foram parar nos tribunais. No entanto, o promotor de Justiça do Meio Ambiente do Estado do Amapá, Marcelo Moreira, é cauteloso quanto a produção de provas e responsabilização dos envolvidos. “Há uma ação civil pública que a gente acompanha junto à Justiça Federal para sabermos qual foi a influência das hidrelétricas e a bubalinocultura [criação de búfalos] sem nenhum tipo de manejo adequado no assoreamento da foz do Araguari. O Iepa muito nos ajuda, mas eles trabalham com uma carência de recursos e os estudos ainda são inconclusivos.”
Marcelo cita ainda a inércia do estado e questões fundiárias como uma barreira. “Falta um marco normativo em relação à bubalinocultura. O Conselho Estadual de Meio Ambiente tenta estabelecer uma regra sobre a pecuária, mas acaba deixando correr à revelia. Além disso, quando tentamos responsabilizar alguma propriedade, encontramos dificuldade em identificar os donos, uma vez que há muita terra pública ocupada.”
Chefe da Reserva Biológica do Lago Piratuba, localizada na margem esquerda do Rio Araguari, Patrícia Pinha indica a presença dos búfalos como seu maior problema. “A Rebio é uma reserva de proteção integral, que é a categoria mais restritiva entre as unidades de conservação, mas temos aqui dentro 18 mil búfalos. Eles cavam valas que depois se alargam e aprofundam, e toda a água do campo de várzea vai sendo drenada para estas valas. As áreas úmidas, que antes ficavam alagadas o ano inteiro, mesmo na estiagem, agora só enchem no período da chuva. Mas, quando para de chover, tudo seca rapidamente, inclusive os lagos. Com a seca, começaram a acontecer incêndios cada vez mais frequentes e difíceis de controlar.”
Combativa e questionadora, Patrícia aponta uma correlação de forças muito desfavorável entre fazendeiros e ribeirinhos: “A pecuária extensiva é usada para ocupação de terra pública. E estas terras são ocupadas por poucas famílias, ao passo que as comunidades tradicionais, que já sofrem com a erosão de suas terras por conta da degradação ambiental, perdem ainda mais espaço com a presença cada vez mais próxima dos grandes latifundiários”.
Imagem do banner: Construção em ruínas devido ao desbarrancamento na comunidade do Paraíso. Foto: Mauricio de Paiva.
Esta reportagem foi realizada em parceria com a Ambiental Media.
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