O Manifesto do Cerrado, publicado em 2017, pede um compromisso voluntário por parte das empresas a fim de que auxiliem no fim do desmatamento e perda de vegetação nativa no Cerrado. A vegetação nativa da savana brasileira já cobriu 2 milhões de quilômetros quadrados que foram reduzidos a soja, milho, algodão e criação de gado em mais da metade.
Uma Declaração de Apoio ao Manifesto do Cerrado foi assinada sobretudo por supermercado e redes de fast-food, incluindo McDonald’s, Walmart, Marks & Spencer e Unilever. Contudo, empresas de commodities como Cargill, Bunge e ADM, todas ativas no cerrado, ainda têm de assinar a declaração. Especialistas afirmam que grandes comerciantes devem se juntar à causa para tornar a iniciativa eficaz.
O Manifesto do Cerrado é um apelo similar à Moratória da Soja, implementada na Amazônia em 2006, que alguns dizem ter sido eficaz na redução do desmatamento devido à conversão direta das florestas em plantações de soja. Críticos do Manifesto afirmam que sua abordagem hierárquica deve incluir também incentivos maiores para os fazendeiros a fim de que estes não desmatem vegetação nativa.
Uma preocupação é a de que o Manifesto e outros mecanismos voltados ao desmatamento poderiam expulsar bons atuantes do Cerrado, criando um vácuo no qual entidades que não apoiam a reforma ambiental podem entrar. Dentre essas entidades está a China, que já comprou um terço da soja do Cerrado. A China não assinou o Manifesto.
Em outubro de 2017, empresas globais, sobretudo redes de supermercado e fast-food, incluindo McDonalds, Walmart, Marks & Spencer, METRO, Tesco, Nando’s e Unilever introduziram uma Declaração de Apoio ao Manifesto do Cerrado. Nesse documento, elas fizeram um apelo para acabar com o desmatamento e a perda de vegetação nativa no Cerrado.
Visto como a irmã desinteressante da Amazônia, o Cerrado não foi devidamente apreciado por conservacionistas e notadamente pouco protegido pelo governo por décadas. Já tendo sido visto como a savana mais insignificante a leste e sul da Amazônia, o Cerrado é hoje conhecido por manter uma importante biodiversidade que inclui 10.400 espécies de plantas — das quais cerca de metade é endêmica —, 935 espécies de pássaros, 780 peixes de água doce, 113 anfíbios, 180 répteis e aproximadamente 300 espécies de mamíferos. Conhecida como “floresta de cabeça para baixo” por suas gramas, árvores e arbustos pequenos, mas com raízes muito profundas, a região também possui uma enorme capacidade de armazenamento de carbono, que atua como um tampão contra mudanças climáticas.
Contudo, o bioma, que cobria originalmente mais de dois milhões de quilômetros quadrados, foi reduzido em mais da metade com a rápida substituição da vegetação nativa e da vida selvagem pela produção de soja e gado.
Pesquisadores descobriram em 2016, que terras de cultivo do Cerrado com 450 mil quilômetros quadrados dobraram em mais de uma década, aumentando de 13 mil quilômetros quadrados em 2003 para 25 mil quilômetros quadrados em 2013. A conversão de terras se intensificou desde então.
O Manifesto do Cerrado tem sido referido por alguns ambientalistas como um avanço memorável em direção à conquista do reconhecimento e conservação ambientais que o Cerrado merece. “O Manifesto representa um importante avanço no consenso da sociedade civil de que não há necessidade de se destruir ecossistemas nativos pela soja”, afirmou Glenn Hurowitz, CEO da ONG ambiental Mighty Earth.
Outros dizem, entretanto, que a declaração possui brechas. Ela não especifica as ações a serem tomadas para conservar a região ou impedir novos desmatamentos provenientes da agricultura. Além disso, a Declaração de Apoio não foi, até o momento, assinada pelo agronegócio em larga escala ou por empresas transnacionais de commodities como ADM, Cargill e Bunge, ou empresas brasileiras como a Amaggi.
A necessidade do Manifesto
O Manifesto do Cerrado não especifica de maneira clara nenhuma regra a ser seguida pelo agronegócio na região. É um apelo cujos parâmetros ainda serão definidos. O Manifesto é direcionado a “empresas que compram soja e carne de dentro do bioma, bem como a investidores ativos nesses setores”. Pede-se que essas entidades adotem “políticas e compromissos eficazes para eliminar o desmatamento e a conversão de vegetação nativa e para desassociar suas cadeias de suprimento das áreas que foram convertidas recentemente”. Desde sua criação, o Manifesto do Cerrado acumulou 62 signatários, sobretudo nos setores de consumo e varejo.
Muitos conservacionistas a favor do Manifesto afirmam não ser provável que novas políticas públicas e legislações para proteger o Cerrado sejam criadas ou implementadas a tempo de impedir a destruição total do bioma. Com isso em mente, eles argumentam que as cadeias comerciais e de suprimento devem assumir um papel imprescindível, e é aí que o Manifesto entra.
Alguns apoiadores do Manifesto acreditam que sua aplicação precisa ser baseada na Moratória da Soja, implementada na Amazônia em 2006. Relatórios mostram que o acordo reduziu significativamente o desmatamento direto causado pelas novas plantações de soja. Esses apoiadores argumentam haver uma grande quantidade de terra já degradada no Cerrado, as quais poderiam ser usadas por produtores para cultivar plantios, permitindo, assim, que o mercado da soja e seus lucros continuem se expandindo, enquanto novos desmatamentos são drasticamente reduzidos.
Eles também afirmam que a melhor saída é conseguir um compromisso voluntário com as empresas de commodities para que elas parem de comprar soja proveniente de terras recentemente desmatadas. Isso pressionaria produtores a fazer uma mudança rápida quanto à conversão das florestas.
Empresas de commodities são fundamentais para o acordo
Hurowitz acredita que para o Manifesto do Cerrado ser um sucesso, ele precisa ser adotado pelas duas principais commodities da região – Cargill e Bunge –, que foram as mais silenciosas à iniciativa e resistem a ela até hoje.
Em uma declaração, a Cargill afirmou: “Louvamos os signatários que demonstraram apoio ao Manifesto do Cerrado e ao Consumer Goods Forum (Fórum de Bens de Consumo, em tradução livre) por se posicionarem contra o desmatamento e apontarem os problemas que existem no Cerrado”. Afora isso, a empresa transnacional não tomou nenhuma atitude.
Perguntada por que ainda não assinou o Manifesto, ela respondeu: “os termos da declaração de apoio continuam em nível muito elevado e aguardamos maior clareza quanto à carga completa de expectativas de um manifesto como esse. Reconhecemos que será necessário que todos trabalhemos juntos, sobretudo os governos e fazendeiros locais, para desenvolver e implementar soluções viáveis”. Enquanto a Cargill espera, dizem os especialistas, mais do Cerrado nativo é levado abaixo.
A Bunge declarou: “A Bunge já assumiu um compromisso claro para eliminar o desmatamento em nossas cadeias de suprimento. Estamos colaborando com ONGs, parceiros e outras empresas para construir e usar recursos e abordagens para impulsionar a conservação, e estamos criando programas de incentivo que beneficiem produtores desejosos em estar alinhados às conformidades legais.”
Horowitz expressou sua frustração com outra importante empresa de soja, a Archer Daniels Midland (ADM). Ela se recusou a apoiar o Manifesto, apesar de supostamente estar produzindo soja de maneira um tanto desenfreada.
Jackie Anderson, porta-voz da ADM, anunciou: “A ADM acredita que, no ecossistema complexo e ambiente econômico do Cerrado, as soluções para tratar do desmatamento e das questões envolvendo o uso de terras devem ser desenvolvidas mediante consulta e acordo com todos os interessados, incluindo produtores locais, governo, indústria e sociedade civil”. As ações feitas pela empresa para ajudar abranger tal colaboração não foram enumeradas.
Até o momento, a maioria do apoio ao Manifesto veio de empresas alimentícias de varejo e consumo, com apenas um apoiador do setor de agronegócio, a Nutreco NV, uma empresa holandesa de alimentos para peixes. Os apoiadores da iniciativa até agora também incluem 43 empresas de varejo, 9 empresas de bens de consumo, 3 empresas de serviços alimentícios e 4 empresas de processamento de alimentos e cuidados pessoais.
Os perigos do atraso
Tiago Reis, do IPAM (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) se mostrou muito preocupado quanto ao atraso de uma intervenção política clara no Manifesto do Cerrado, que tem feito com que os produtores desmatem o máximo de terras que puderem o mais rápido possível, tomados pelo medo de que uma Moratória da Soja esteja se aproximando do Cerrado.
Alguns afirmam que o atraso na implementação se deve à inexatidão do Manifesto em si, que falha no delineamento de políticas concretas para a implementação. Como Ida Breckan Claudi, Assessora Política na Rainforest Foundation Norway (RFN), declara, o Manifesto “planeja estabelecer ‘grupos de trabalho’ e ‘itinerários’” para direcionar mudanças significativas, “mas também sabemos que [tais mecanismos] podem estagnar o progresso.”
Segundo críticos, até que esses detalhes sejam desenvolvidos em prol da satisfação das empresas de commodities, parece que o Manifesto pode se manter ineficiente.
Duas ONGs internacionais, a Mighty Earth e a Rainforest Foundation Norway, também criticaram o Manifesto por sua exclusividade brasileira. “Não há razões técnicas para que as questões de conservação não possam ser aplicadas em dimensão continental, para países como a Amazônia boliviana”, afirma Hurowitz. “A desculpa se resume à mesma inércia que impediu que a Moratória da Soja fosse ampliada para além da Amazônia em um primeiro momento.”
Claudi, da Rainforest Foundation Norway, concorda, observando que, como o Cerrado, o Gran Chaco, na Argentina, e a Mata Atlântica, no Paraguai, estão enfrentando desmatamento generalizado devido ao cultivo agrícola, que deve ser controlado com urgência.
Necessidade de incentivos aos produtores
Alguns economistas argumentam contra a abordagem influenciada por consumidores e commodities representada pelo Manifesto. Eles defendem uma “abordagem colaborativa”, na qual empresas de commodities com uma consciência sustentável trabalham diretamente com produtores e legisladores para criarem um sistema aceitável para todas as partes.
Esse campo manifesta o ceticismo em relação ao Manifesto do Cerrado devido à sua notável falta de preocupação com os produtores brasileiros. A legislação atual sustenta que os produtores cujas propriedades se encontram, em sua maioria, dentro do Cerrado, precisam proteger apenas 25% da vegetação nativa (ou 35% se suas terras abrangem a Amazônia Legal). Esses produtores, muitos dos quais avançaram até determinada extensão para garantir que estão em conformidade com as leis, temem começar, de uma hora para outra, a ser penalizados pelo mercado por cortarem árvores e utilizarem a terra para fins comerciais, apesar de terem o direito de o fazerem.
O cientista Daniel Nepstad, que escreveu extensamente sobre intervenções de cadeia de suprimentos nas indústrias da carne e da soja, pontua que nenhuma recompensa financeira está sendo oferecida aos produtores para compensar o custo de protegerem a vegetação nativa em suas terras.
“O valor das terras dos produtores cairá de forma dramática” se o Manifesto do Cerrado for implementado, alerta Nepstad. Ele afirma ainda que o Manifesto corrobora a suspeita de muitos produtores do Cerrado que acreditam que ONGs e governos internacionais estão demasiado preocupados em prejudicar o setor agrícola, tirando suas terras e direitos.
Entretanto, outros argumentam que a insistência de Nepstad em envolver produtores é equivocada. “Dar a quem desmata um veto em favor da proteção florestal seria como dar um veto em favor da pureza do ar a donos de minas de carvão”, declara Hurowitz. “É uma ideia completamente sem sentido!”. Ele acredita que produtores de soja em larga escala são os principais envolvidos que precisam ser situados no Cerrado, mas eles não se mostram favoráveis a ceder aos conservadores com facilidade.
Contudo, Nepstad questiona: “Por que não concebemos isso de maneira que funcione para os produtores? Sobretudo já que o Brasil não pode arcar com sérias restrições ao agronegócio”. Nepstad e seus colegas escreveram extensamente sobre a importância de incentivos financeiros oferecidos em apoio a práticas de cultivo sustentáveis. Eles apontam para a eficácia de programas de crédito que recompensem produtores que limitem com sucesso sua conversão de vegetação nativa em terras de cultivo.
Tiago Reis afirma apoiar completamente a ideia de um sistema de crédito como esse, mas que é difícil encontrar fundos para isso. “As taxas de conversão [de vegetação nativa] atual no Cerrado são alarmantes – é uma emergência”, declara. “Por esse motivo, estamos considerando uma proibição imediata [do desmatamento], e então poderemos desenvolver mecanismos financeiros”. O Manifesto do Cerrado não menciona a importância de se criar incentivos financeiros a produtores.
Uma fonte de incentivo financeiro poderia ser o Fundo Amazônia, um mecanismo REDD++ das Nações Unidas (o Programa Colaborativo da ONU voltado para a Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal em Países em Desenvolvimento). Entretanto, atualmente, o Cerrado não é levado em consideração para tais investimentos, porque a maioria de suas terras se encontra fora da Amazônia Legal, uma designação brasileira. Ainda assim, especialistas argumentam que o Cerrado deveria ser um candidato ao Fundo.
De acordo com Nathalie Walker, da National Wildlife Federation (Federação Nacional da Vida Selvagem, em tradução livre), diversas ONGs e parceiros estratégicos estão de fato trabalhando em uma estratégia de “Capital Alinhado” para estabelecer incentivos, modelos comerciais e mecanismos financeiros para recompensar os envolvidos a adotarem alternativas de produção que não incluam desmatamento.
Risco da retirada das empresas
Ao mesmo tempo em que se mostra crítico à falta de incentivo dada pelo Manifesto aos produtores, Nepstad se preocupa que esse tipo de compromisso hierárquico corporativo poderia ter consequências acidentais sérias. Nomeadamente, as empresas com uma consciência sustentável poderiam simplesmente parar de comprar de regiões demasiado controversas, como o Cerrado, por medo das consequências negativas potenciais do comércio continuado no local.
Outras empresas poderiam então se precipitar e tomar seu lugar enquanto compradores de commodities – empresas com pouco ou nenhum comprometimento com a diminuição do desmatamento, e que demonstram completa negligência pela sustentabilidade ambiental.
Nepstad pontua que “a China é, de longe, o maior comprador de soja brasileira e, neste exato momento, ela não dá a mínima” ao meio ambiente. De acordo com a Trase, uma ferramenta de sustentabilidade desenvolvida pelo Stockholm Environment Institute, a China compra atualmente um terço de toda soja produzida no Cerrado brasileiro. A retirada da Cargill ou da Bunge poderia simplesmente criar uma lacuna de commodities que os chineses se mostrariam desejosos por preencher.
De fato, os consumidores europeus representam atualmente 52 das 62 empresas que assinaram em apoio ao Manifesto do Cerrado, sendo 26 da Holanda, 10 do Reino Unido, 6 dos Estados Unidos, 3 do Brasil e o resto espalhado por entre países da Europa. A China está notavelmente ausente.
Afora tais desafios, a preservação do bioma do Cerrado continua fundamental para a preservação da biodiversidade global, para o controle do aquecimento global e para a limitação da escassez de água no Brasil. Por essa razão, faz sentido que comerciantes e varejistas de commodities conscientes usem seu poder aquisitivo para conduzir mudanças positivas – trabalhando com os governos nacionais, estaduais e locais para garantir que produtores de soja e criadores de gado não convertam vegetação nativa em terras de cultivo, mas expandam suas operações para terras já desmatadas.
Muitos analistas concordam que o Manifesto do Cerrado é uma inovação útil para controlar o desmatamento, mas que, para ser eficaz, precisa ser feita rapidamente, com os comerciantes no comando.
“O Cerrado é uma região onde as vantagens tanto para a produção quanto para a proteção do habitat são possíveis”, revela uma Nathalie Walker otimista. “Gostaríamos de ver essa possibilidade em ação.”
Esclarecimento: este artigo citou originalmente “uma representante da Rainforest Foundation Norway”. Essas declarações foram agora atribuídas a Ida Breckan Claudi, Assessora Política da Rainforest Foundation Norway.