Terras desmatadas ilegalmente valem de 20 a 200 vezes mais do que a floresta preservada.
O código “fazer alguma coisa” significava organizar uma milícia para tirar as famílias da ocupação.
Pretensões ruralistas não são apenas megalômanas, mas também absolutamente ilegais.
Na região onde a fronteira agrícola se expande na Amazônia, fala-se um dialeto específico. Isso ficou claro quando, durante nossa reportagem, sentamos à mesa com Agamenon da Silva Menezes, presidente do Sindicato Rural dos Produtores de Novo Progresso, em seu escritório, no centro da cidade de mesmo nome, no oeste do Pará. Enquanto o equipamento para filmar a entrevista era montado, um homem entrou agitado na sala e, sem olhar para nós, falou diretamente a ele: “Eles estão tomando conta da área. Precisamos fazer alguma coisa. Já”. Agamenon respondeu em voz baixa: “Vamos fazer, sim. Depois falamos”. Fez um gesto para o homem calar e, bruscamente, nos perguntou: “Vamos começar?”
No desenrolar da entrevista, quando Agamenon descreveu em detalhes as atividades do seu sindicato, foi possível compreender que a expressão “alguma coisa” significava reação violenta. É um código, nada sutil, para se referir a uma ação fora da lei. Também ficou implícito que falavam da ocupação de terra realizada pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Castelo de Sonhos (Altamira-PA) e pelo movimento camponês de luta pela terra do pequeno povoado chamado “KM Mil”, na BR-163. Essa ocupação era justamente o gancho para a entrevista com Agamenon. Dois dias antes, havíamos visitado as 80 famílias acampadas em barracos com as típicas coberturas de plástico preto dos movimentos socioterritoriais.
O acampamento localiza-se a cerca de 15 quilômetros da margem leste da BR 163, na altura do km 1000 da rodovia. Foi instalado em meio à floresta, ao lado de uma grande área desmatada e vazia. Passada a inicial desconfiança do grupo em relação a nossa equipe de reportagem, um colono explicou por que não se instalaram na área já desmatada: “O certo seria entrar em área aberta. Tem muita área aberta e vazia. Mas a gente não consegue entrar em uma fazenda aberta. Eles vão brigar pra não entregar porque é uma terra muito valorosa”.
Mais uma vez, reafirma-se a estranha lógica em que terras desmatadas ilegalmente valem de 20 a 200 vezes mais do que a floresta preservada em toda sua relevância climática e abundância de vida. Essa mecânica de mercado está diretamente ligada ao desmatamento desenfreado que ocorre na região.
A situação do acampamento reflete a dinâmica própria da fronteira. Os assentamentos de colonos jamais são feitos nas muitas áreas desmatadas e ilegalmente apropriadas por grileiros. Os camponeses são sempre empurrados mata adentro, sejam estes assentamentos feitos pelo Estado ou fruto da luta direta pela terra de movimentos sociais. A força política, a violência e a impunidade “sacralizam” as áreas desmatadas ilegalmente pelos grileiros, mesmo que se tratem de terras públicas. Na prática, o Estado não retoma as áreas, e o grileiro, autor do desmate irregular, “ganha” a terra, mostrando que, na região amazônica, esse tipo de crime ambiental e fundiário compensa.
Há outra questão que torna essa dinâmica proveitosa à grilagem. Os colonos que acabam abrindo a fronteira ao derrubar a floresta arcam com o passivo ambiental do desmatamento; assim, o grileiro sai isento das ações de fiscalização do governo. Depois de instalados, os colonos são muitas vezes expropriados pela grilagem e o ciclo se reinicia, empurrando a fronteira floresta adentro. Ainda que os assentamentos estejam longe de ser a principal causa do desmatamento na Amazônia, essa interface involuntária com a grilagem acaba acarretando significativos danos sociais e ambientais.
Esperança e medo
Em um barraco grande do acampamento, uma mulher cozinhava almoço para uma dúzia de pessoas. Fomos convidados e, durante a refeição, o colono Ivanor da Silva Felizardo fez um breve relato da sua vida: “Saí de Sinop [cidade mato-grossense, na BR-163] por falta de expectativa. Não tinha opção de vida. Aqui é mais cru, tem mais possibilidade da gente adquirir uma coisa na vida. A sorte que tive foi conseguir 100 hectares através do sindicato”. O fato de o Sindicato dos Trabalhadores Rurais organizar a ocupação dá segurança. “O sindicato é um órgão legal”, disse Felizardo. “Estamos aqui tem uns 90 dias. Correu tudo bem até o momento.”
Outro colono, que não quis informar o nome, contou a história da ocupação. Segundo ele, há alguns anos, quem ele chama de “legítimo dono” das terras ocupadas foi “tirado na força bruta, na bala” por um tal Tião, o feroz pistoleiro da quadrilha de grilagem de AJ Vilela: “se entrasse aqui na época dele, dificilmente voltava vivo”.
O colono conta que ocorreram muitas mortes mas, depois da prisão de AJ Vilela, o “legítimo dono” reapareceu com a intenção de retomar a terra e propôs compartilhar alguns hectares com o movimento camponês. “Assinamos um contrato, é tudo legalizado. A gente está muito feliz. O trem vai andar”, conclui, otimista, o colono.
Apesar da aparente tranquilidade, o clima de tensão no acampamento é explícito. Há poucas mulheres e crianças presentes e o termo “medo” é usado de forma constante nas conversas dos agricultores.
Ladrão que grila ladrão
Não é à toa que o medo dá o tom da narrativa no local. Nossa apuração indicou que o “legítimo proprietário” não era o único de olhos postos em área tão valorizada e que ficou repentinamente “disponível” em função da prisão dos grileiros que estavam em poder daquelas terras. Sem regulação fundiária, o fator que controla o acesso à terra na região é o uso da força. O proponente do acordo com a ocupação, apesar de identificado pelos colonos como “proprietário”, não deixa de ser também ele um grileiro, já que toda essa história se desenrola sobre terras públicas, como comprovam estudos fundiários.
O indivíduo apontado como “legítimo proprietário” não quis falar com a reportagem alegando risco de vida. Ele parece ter encontrado um modo inusitado para enfrentar o poder de fogo dos grileiros rivais: usar camponeses sem terra como escudo humano para suas pretensões de retomar as terras originalmente apropriadas por ele. Desta forma, ele se pouparia do enfrentamento direto com as milícias privadas de outros grupos e sairia com poucas perdas concretas. De acordo com as lideranças dos colonos, o pacto com o movimento previa que os colonos ocupariam a terra – assumindo sozinhos todo o risco de sofrer violência – para obter uma parcela da área – justamente o quinhão de floresta que ainda permanece ao fundo do terreno. A porção já desmatada e, por isso mesmo, mais valorizada voltaria ao domínio do “legítimo proprietário”.
Ao observar o ciclo de destruição florestal, violência e pobreza que reflete a história da Amazônia, é tristemente curioso constatar que, segundo estudos, a única verdade neste caso é o direito dos colonos àquela terra, já que a área foi arrecadada pela União justamente para servir a uma reforma agrária jamais implementada.
Faroeste na floresta
Na entrevista com Agamenon, foi reafirmada a noção de que “direito” é o que menos importa no mundo violento da fronteira agrícola na Amazônia, onde prevalece a lei do mais forte. Para o ruralista, os colonos são “invasores” que precisam ser desalojados a qualquer custo. De forma bastante transparente e detalhada, Agamenon explicou como emprega milícia privada para os despejos: “Se sair por bem, sai. Se não, sai por mal. Da forma que eles reagirem com a gente, a gente reage contra eles. Se eles vierem de cacete, a gente vai de cacete, se vierem de faca, a gente vai de faca, se vier de cachorro… do jeito que eles reagirem, a gente reage, mas tira a pessoa de lá”.
Foi nesse momento que a tensa e rápida conversa flagrada por nossa equipe entre Agamenon e o outro homem antes da nossa entrevista fez sentido: o código “fazer alguma coisa” significava organizar uma milícia para tirar as famílias da ocupação instalada no Km Mil. Nos sentimos ingênuos diante de tamanha banalização do absurdo, impunidade e violência: a confissão chocante de Agamenon durante a entrevista era, na verdade, sua fala corriqueira, veiculada inclusive na rádio e jornal locais:
“Os ruralistas preparam uma agenda de mobilizações em defesa do direito de propriedade, que eles consideram ameaçado pela ineficácia do governo federal na região. A primeira ação está marcada para os próximos dias onde pretendem fazer a desocupação de uma fazenda invadida ilegalmente nas proximidades do km 1000 (Vila Izol)”.
Em novembro passado, um violento conflito no Km Mil da BR 163 parecia iminente. A equipe de reportagem ainda estava em Novo Progresso quando, dois dias depois de nossa visita à ocupação, um grupo de seis homens atacou o acampamento, atirando e gritando ameaças. Ninguém foi ferido. Os colonos acreditam que a intenção foi só aterrorizá-los. Os pistoleiros partiram prometendo voltar e fazer pior.
O sindicalista Aloisio Sampaio, conhecido como Alenquer, principal liderança da ocupação, adotou estratégias preventivas. Vestindo colete à prova de balas, ele falou sobre as ameaças que recebe: “Eles [os grileiros] querem me matar de qualquer forma… Eles ameaçam em televisão, em rádio, em mercado, em casa. Já convivi com isso. Não tenho medo”. E acrescentou: “Não adianta me matar. Somos vários líderes formados na BR-163. Se me matar, outro toma o meu lugar”.
Em um ato desesperado, Alenquer publicou, em janeiro de 2017, um vídeo na internet em que acusa nominalmente Agamenon Menezes e Neri Prazeres, ex-prefeito de Novo Progresso, de praticarem grilagem e de tê-lo ameaçado de morte. Os dois ruralistas negaram e ameaçaram processá-lo. Após a divulgação do vídeo, os ataques ao acampamento cessaram, pelo menos temporariamente.
A roleta da grilagem
Conflitos por terras são comuns em uma região onde a grilagem é a forma mais fácil e rápida de se ganhar dinheiro. Na tentativa de relativizar a invasão e o espólio de terras públicas, Agamenon argumenta: “todos aqui somos grileiros, não tem nenhum cidadão aqui que não é grileiro, porque nós estamos dentro de terra da União”.
A história não é bem essa.
Segundo o pecuarista Lincoln Queiroz Brasil, que chegou à região na década de 1980 – e que não é grileiro –, a ocupação de Novo Progresso se deu paralelamente à abertura da rodovia BR-163. Famílias de colonos sulistas, geralmente pobres, chegavam e firmavam contratos com o Incra em que se comprometiam a pagar a terra em 10 parcelas anuais. É o caso de Queiroz e de várias outras famílias que ali se instalaram entre meados dos anos 1970 e a segunda metade da década de 1980.
Ou seja, nem todos são grileiros. Porém, Agamenon acerta ao usar a primeira pessoa do plural e se inserir na categoria. “O processo de ocupação de Novo Progresso passa também pela grilagem”, explica Queiroz. A completa ausência do Estado na região consolidou a prática de se apossar de áreas imensas pertencentes à União. São terrenos, às vezes, com dezenas de milhares de hectares – em 2004, Agamenon anunciou-se como “dono” de 70 mil hectares.
Tais pretensões ruralistas não são apenas megalômanas, mas também absolutamente ilegais, já que a Constituição Federal estabelece em 2,5 mil hectares o limite máximo de um imóvel público que pode ser alienado; para se vender áreas maiores a terceiros, é necessária autorização do Congresso Nacional. Para burlar a lei, uma vez que o grileiro invade a terra pública, a área é dividida em vários módulos de tamanho que viabilize a “regularização”; em seguida, o grileiro atribui cada fração de terra a um suposto ocupante diferente, os “laranjas” do esquema.
Com o intuito de atender essa “demanda” da grilagem, existe, em Novo Progresso “o famoso ‘Kit Cidadão’, que você pode obter na cidade com muita facilidade”, explica Queiroz. “Trata-se da documentação completa de uma pessoa com CPF, identidade e título de eleitor para ser usada como laranja ou para, no caso do Ibama fiscalizar o desmatamento, o responsável apresentar essa documentação e a multa ser feita em nome do ‘laranja’” Os donos das identidades usadas no “kit” são sempre pessoas muito humildes que não fazem idéia que seus dados acabam envolvidos no esquema. “Você paga um valor irrisório pela identidade ou, se for amigo do ‘fornecedor’ do kit, pode até ganhar um”, conclui Queiroz.
Ao longo da última década, a grilagem passou a ter o desmatamento como ingrediente central. Queiroz explica o processo que o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) chamou de desmatamento especulativo. “O sujeito pega uma área [de terras públicas] e derruba a mata. Não para produzir algo, mas para vender a terra”, explica Queiroz.
Os compradores dessas terras incluem desde grandes fazendeiros, em sua maioria de Mato Grosso ou Goiás e plenamente conscientes da ilicitude da compra, àqueles que vendem tudo o que têm em outro lugar e entregam seu dinheiro nas mãos dos grileiros na ilusão de adquirir terras lícitas. “A valorização é absurda, a floresta praticamente não tem valor. Quando conseguem desmatar e plantar capim, isso multiplica em 100 ou 200 vezes o preço da área”, segue Queiroz. O Ministério Público Federal apurou que o esquema chega a render R$ 20 milhões por área grilada.
Emblematicamente, explica Queiroz, “os maiores desmatadores da região não têm uma só cabeça de gado”. Estudo recentemente publicado constata que os responsáveis pela derrubada da floresta na área da BR-163 não plantam ou criam animais: o negócio é a especulação imobiliária com terras públicas invadidas e desmatadas de forma ilegal.
Um caso marcante desse procedimento é o do notório grileiro Ezequiel Castanha, que praticou esse esquema por mais de uma década e chegou ao requinte de oferecer a terceiros o serviço de grilagem. Alguém se apoderava de uma área de floresta e estabelecia uma “parceria” com Castanha, que cuidava da logística: os laranjas em nome de quem se abririam processos e se lavrariam as multas, os peões para conduzir a derrubada e a formação da pastagem, ou seja, serviço completo. Castanha inspirou o nome da ação que o prendeu, a Operação Castanheira, realizada pelo Ministério Público Federal, Polícia Federal e Ibama.
Com franco apoio do governo federal em Brasília, o ritmo do desmatamento na região vem crescendo nos três últimos anos. No final de março, o governo Temer anunciou o corte de mais da metade do orçamento anual do Ministério do Meio Ambiente, ao qual estão subordinados Ibama e ICMBio. Ou seja, a fiscalização ambiental, que já não dava conta de deter a perda de florestas, será cortada ao meio. Completando o cenário de desalento, o ritmo frenético de redução de unidades de conservação pelo governo está expondo novas áreas de floresta à mecânica grilagem-desmate na região.
Enquanto a maior parte do Brasil se arrasta na crise política e testemunha atônita a sequência de delações e escândalos de corrupção que atingem o coração do legislativo e do executivo federais, os grileiros do entorno da BR 163 e de toda a fronteira agrícola na Amazônia não têm motivos para reclamar.