Mesmo com prisões, multas e processos, terras griladas continuam nas mãos do agronegócio.
Desde 2010 as “damas do agronegócio” reúnem-se mensalmente na sede da Sociedade Rural Brasileira na cidade de São Paulo.
Desde 2010 as “damas do agronegócio” reúnem-se mensalmente na sede da Sociedade Rural Brasileira na cidade de São Paulo. Entre as 23 integrantes do Núcleo Feminino do Agronegócio, participava a grande pecuarista Ana Luiza Junqueira Vilela Viacava. Em 2012, ela declarou: “Gosto da terra e da segurança que ela me dá para o futuro”. Quatro anos depois, Ana Luiza seria presa, acusada de grilagem.
A prisão da expoente do agronegócio nacional foi um desdobramento da Operação Rios Voadores, deflagrada em 30 de junho de 2016 com o objetivo de desarticular uma poderosa quadrilha de grilagem e desmatamento de terras no distrito de Castelo de Sonhos, município de Altamira (PA), às margens da BR-163.
O chefe da quadrilha era Antônio José Junqueira Vilela Filho, de 39 anos, conhecido como AJ Vilela ou Jotinha, irmão de Ana Luíza; o número dois do organograma era Ricardo Caldeira Viacava, seu marido. Jotinha agiu por anos até alcançar a marca de 300 km² desmatados em Castelo dos Sonhos, uma área quase 12 vezes maior que a ilha de Fernando de Noronha.
Este número faz de Jotinha “o maior desmatador individual já registrado na Amazônia desde que se iniciou o monitoramento das derrubadas”, segundo Juan Doblas, um dos autores do livro “Dono é quem desmata”, que tem um capítulo dedicado à grilagem dos Vilela Junqueira.
A Operação Rios Voadores custou dois anos de investigações, incluiu interceptações telefônicas e quebra dos sigilos bancário e fiscal da quadrilha e envolveu 95 policiais federais, 15 auditores da Receita Federal e 32 servidores do Ibama. Ao todo, foram cumpridos 24 mandados de prisão preventiva em municípios de Mato Grosso, Pará, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, além de outros 26 mandados de condução coercitiva ou de busca e apreensão, todos expedidos pela Justiça Federal de Altamira.
Contra Ana Luiza Junqueira Vilela Viacava foi emitida apenas uma ordem de condução coercitiva, que acabou não sendo cumprida porque ela estava em férias nos EUA. Porém, nos dias seguintes à operação, escutas telefônicas autorizadas pela Justiça apuraram que, mesmo do exterior, ela comandou a ocultação e a destruição de provas contra o irmão e o marido, já preso, e outros membros da quadrilha. No retorno das férias, ao desembarcar no aeroporto de Guarulhos (SP), em 4 de julho, Ana Luíza foi presa. Alguns dias depois, Jotinha, que estava foragido, se entregou à justiça.
A famiglia
De família mineira radicada em São Paulo, AJ Vilela e Ana Luíza são filhos de Antônio José Rossi Junqueira Vilela, o AJJ, icônico pecuarista que estampa reportagens elogiosas nos principais jornais e revistas dedicados ao agronegócio. Os artigos enaltecem seu talento como criador de gado nelore e relatam as mordomias dispensadas aos animais premiados em suas fazendas. AJJ é citado como “um modelo de sucesso que traz lições para grandes e pequenos pecuaristas”.
Seus filhos são presença constante em colunas sociais e aparecem circulando sorridentes em vernissages, desfiles de moda e festas, entre empresários, estilistas, galeristas, modelos e outros nomes do jet set.
Os cenários da trama que levou AJ Vilela, Ana Luiza e seu marido, Ricardo Caldeira Viacava (de outra família de pecuaristas de igual vulto) à cadeia vão do Jardim Europa, bairro de elite em São Paulo, a Castelo de Sonhos, no Pará, passando por Nova York e pelo Caribe, em uma narrativa que conecta revistas como Vogue e Glamurama a publicações especializadas em pecuária.
AJJ pai, o caçador de fortunas
AJJ, o patriarca, começou suas atividades aos 20 anos de idade em Mato Grosso quando – assim como outros personagens dessa série – ganhou, em 1967, 10 mil hectares no até então inexplorado estado “e partiu em busca do sonho de ser um criador grande e respeitado”.
Nessa jornada, fez uma escala em Rondônia, onde se tornou dono da fazenda Yvypytã. Foi acusado de comandar um massacre de garimpeiros em 1983 e também citado no terrível extermínio de índios isolados na região da fazenda. Em uma investigação nunca concluída, suspeita-se que AJJ e outros dizimaram um grupo de índios não contatados, envenenado-os com arsênico misturado a açúcar e depois atacando-os com peões.
Foi em Mato Grosso que AJJ logrou se tornar “grande e respeitável”. O próprio conta para quem quiser saber que, em seus primórdios como pecuarista, promoveu extensos desmatamentos: “Comprei muita coisa em Mato Grosso quando as terras ainda eram baratas. O valor pago era simbólico. Coisa de um dólar por hectare. Então, eu comprava áreas grandes, abria a fazenda e depois vendia. Nesse período eu cheguei a ter 200 mil hectares”. “Abrir fazenda”, obviamente, significa desmatar e formar pastagens.
Em 2005, Vilela pai foi multado em R$ 60 milhões (valores de 2005) por desmatamento dentro do Parque Estadual do Cristalino, ostentando a maior multa já aplicada pelo estado de Mato Grosso até então.
AJJ jamais pagou a multa. Mais grave ainda, seguiu acessando recursos públicos por meio do Fundo de Desenvolvimento da Amazônia (FDA) – cerca de R$ 60 milhões –, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – R$ 10 milhões – e do Banco da Amazônia – cerca de R$ 9,9 milhões.
O dinheiro seria usado para a construção de duas hidrelétricas dentro do Parque Estadual do Cristalino, a despeito das denúncias de diversas irregularidades na concessão das licenças da obra – inclusive a mais óbvia, o licenciamento de empreendimentos no interior de uma unidade de conservação.
O caso foi tratado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Pequenas Centrais Hidrelétricas na Assembleia Legislativa de Mato Grosso com acusações de que as licenças teriam sido obtidas com utilização de documentos falsos. A CPI ainda recebeu denúncias de que as licenças foram concedidas no marco de uma barganha política com o ex-governador de Mato Grosso e hoje ministro da Agricultura, Blairo Maggi, de cuja campanha AJJ teria sido um importante apoiador.
As obras das centrais hidrelétricas foram paralisadas, mas o gado da família de AJJ segue pastando dentro dos limites do Parque Estadual do Cristalino mesmo com processo e multas em andamento.
Jotinha, o herdeiro prodígio
AJ filho, o Jotinha, puxou ao pai. E o superou.
Embora não fosse tarefa fácil, AJ Vilela fez de seu pai um amador. Jotinha hoje pode se apresentar como a pessoa que acumula o maior valor em multas por crimes ambientais aplicadas pelo Ibama no país, totalizando mais de R$ 332 milhões.
AJ Vilela começou o desmatamento em Castelo dos Sonhos entre 2010 e 2011. O Ibama chegou a autuá-lo em cifras milionárias já em 2012, 2013 e 2014 (ver gráfico). As áreas desmatadas eram embargadas e, mesmo assim, AJ Vilela formava pastos, colocava gado e seguia com as derrubadas. Quando foi preso, mais de quatro anos após iniciar o desmate e ter dado fartas demonstrações de que não pararia, AJ Vilela já havia arrasado 300 km2 de floresta.
As cifras milionárias dos autos de infração aplicados a AJ Vilela não chegaram a um quinto do R$ 1,9 bilhão que ele movimentou entre 2012 e 2015 segundo dados do Ministério Público Federal (MPF). Ainda assim, o pecuarista não pagou as multas por crimes ambientais.
“Desde quando crime organizado paga alguma coisa?”, respondeu indignado Luciano Evaristo, diretor de Proteção Ambiental do Ibama, quando nossa reportagem questionou se AJ Vilela pagou alguma quantia das centenas de milhões de reais que já recebeu em multas.
Modus Operandi: Tiro, Porrada e Lucro
Durante toda a nossa viagem, ouvimos relatos sobre a violência empregada por AJ Vilela e seus jagunços. Uma grande variedade de pessoas se queixou, de famílias camponesas a grileiros menores. Em comum, todos denunciaram despejos violentos aos quais foram submetidos pelo pecuarista.
Um trabalhador rural que, por razões de segurança, quis permanecer anônimo, narrou que “quem trabalhava ali [em uma porção grilada pela quadrilha] saiu tirado na força bruta. Foi os Vilela, tirando eles na bala”. Segundo ele, os Vilela ocuparam uma faixa de 35 km: “Quem entrava aqui, morria. Por isso, o pessoal tem muito medo dos Vilela ainda. Quando fala o nome deles, arrepia, treme. Porque são bárbaros”.
Uma narrativa que se repete no histórico de Jotinha. Ele já é réu em processo por tentativa de homicídio, arquivado por falta de provas, e que pode ser reaberto a partir de novas informações obtidas na Operação Rios Voadores. Jotinha e seus supostos jagunços são acusados de terem armado emboscada e atirado contra a trabalhadora rural sem-terra Dezuíta Assis Ribeiro Chagas, que participava de ocupação em terras vizinhas a uma das fazendas da família Vilela no Pontal do Paranapanema (SP).
Notícias divulgadas pela imprensa indicam que “a Polícia Federal, enquanto apurava o esquema em Castelo de Sonhos, no Pará, gravou uma conversa em que o advogado de AJ Vilela manda que ele sumisse com as armas do crime”:
Advogado: Que pode sair uma temporária em cima deles [jagunços de AJ Vilela], ou até mesmo uma prisão em flagrante deles.
AJ Vilela: Tá bom.
Advogado: E as ferramentas você some com elas de lá.
[Nota do editor: Para a Polícia Federal, ferramentas é como se referem às armas.]
Pecuaristas jetsetters e seus escravos na Amazônia
Além das denúncias de grilagem de terras e desmatamento, AJ Vilela e seu cunhado, Ricardo Caldeira Viacava, também foram denunciados pelos crimes de trabalho escravo e frustração de direito trabalhista.
Ricardo, marido de Ana Luíza Vilela, é membro de outra família da elite pecuarista de São Paulo. Seu pai, Carlos Viacava, foi ministro da Fazenda durante o governo militar do General Figueiredo e é detentor de fazendas em Paulínia, Presidente Venceslau e Presidente Epitácio, no interior do estado. Conhecido pela marca CV, atua na seleção genética de gado nelore, é ex-presidente da Associação de Criadores de Nelore do Brasil e foi eleito pela revista Dinheiro Rural uma das cem personalidades mais influentes do agronegócio em 2016.
Segundo a denúncia ajuizada pelo MPF contra AJ Vilela e Ricardo Viacava, os trabalhadores “iniciavam as operações de derrubada às 04:30 da manhã e só encerravam suas atividades ao escurecer, cerca de 17:30 horas, portanto, estavam sujeitos a jornadas exaustivas de trabalho”.
A exploração de trabalho em condições análogas à escravidão acabou sendo flagrada in loco pela fiscalização do Ibama. Associar esse crime em flagrante às acusações de grilagem e desmatamento tornou as denúncias mais contundentes e foi essencial para o avanço da Operação Rios Voadores.
Um detalhe relevante: o Ibama não chegou à “cena do crime” por meio do aprimorado sistema de geomonitoramento por satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Quem guiou a equipe de fiscalização foi o povo indígena Kayapó.
Conhecimento Indígena > Imagens de Satélites
O trabalho escravo pôde ser flagrado por iniciativa dos Kayapó. Foi graças ao sofisticado controle territorial dos índios que o último polígono desmatado por AJ Vilela foi detectado durante, e não após, as derrubadas da floresta.
Geralmente, a fiscalização corre atrás do fato consumado – e não há como ser diferente. O sensoriamento remoto, a partir de imagens de satélites, identifica a alteração na cobertura vegetal após a floresta ser posta ao chão. Então, um sistema de alertas é acionado, encaminhando a fiscalização a campo para checar e tomar providências. Comumente, chega-se com os serviços de derrubada terminados e sem qualquer flagrante do trabalho escravo frequentemente associado aos desmatamentos.
Em 2014, a quadrilha liderada por AJ Vilela atacava uma área de 14 mil hectares na divisa com a terra indígena Baú, do povo Kayapó, no Pará. Luciano Evaristo, do Ibama, contou a The Intercept Brasil que havia 20 acampamentos distribuídos pela área, cada um com 10 trabalhadores, que “destruíam a floresta como cupins”.
As motosserras iam cortando árvores alternadamente e derrubando todo o sub-bosque, porém, tomando cuidado para preservar a cobertura do dossel formado pelas árvores mais altas e densas, de modo que os satélites não identificassem alterações severas na cobertura florestal. “Agindo assim, o sistema não emitia alertas de desmatamento, e, sem os alertas, não haveria como chegar até a área”, explicou Evaristo.
Requintado, Jotinha controlava tudo a partir de seus escritórios em cidades distantes dali, com profissionais de geomonitoramento acompanhando e garantindo que os trabalhos seguissem invisíveis aos olhos dos satélites.
Quando a maior parte da destruição estivesse concluída “por baixo”, seriam rapidamente derrubadas as altas árvores que mantinham essa cobertura vegetal aparente. Somente nesse momento, o estrago seria detectável pelo sistema de monitoramento remoto e, novamente, o Ibama chegaria à área apenas quando tudo estivesse terminado e os crimes ambientais e trabalhistas consumados.
Entretanto, a quadrilha não contava com a astúcia e capacidade de monitoramento territorial dos Kayapó.
Como conta Luciano Evaristo, “os Kayapó vieram a Brasília denunciar que havia um desmatamento terrível na divisa do território deles e exigiram providências”. Em princípio, a denúncia causou estranheza pois o sistema de geomonitoramento não registrava nenhuma derrubada onde os índios acusavam. “Mas os índios nos levaram diretamente aos cinco acampamentos e lá encontramos 44 pessoas em condições de trabalho análogas à escravidão.”
A eficiência dos índios foi marcante para Evaristo. “O monitoramento na Amazônia só é possível se contarmos com os povos da floresta. São eles que detêm o controle territorial”, declara.
A associação do flagrante de trabalho escravo aos outros crimes de desmatamento e grilagem foi o início do processo que levaria a Operação Rios Voadores a desbaratar o esquema da família Vilela.
Algo mudou?
AJJ pai – que desapareceu de cena e aparentemente sofre de doença degenerativa em avançado estágio – passou impune por todos os seus feitos, com multas milionárias quase nunca pagas e processos jamais concluídos. Seus filhos, porém, acabaram presos pela Operação Rios Voadores.
Ana Luiza Vilela teria sido libertada no dia 20 de julho de 2016, após duas semanas de prisão. Jotinha esteve atrás das grades até outubro de 2016. Os processos judiciais estão em andamento, mas os réus contam com os melhores advogados que o dinheiro pode comprar e com uma Justiça notoriamente lenta.
Mesmo assim, do ponto de vista judicial, a Operação Rios Voadores conseguiu um feito muito importante. A caracterização dos muitos crimes associados foi bem embasada no processo e levou à cadeia gente que se considerava fora do alcance da lei. A operação também logrou conter a derrubada de árvores no local – pelo menos por hora.
No entanto, quando estivemos na área em novembro passado, notamos que a grilagem da quadrilha continua ativa. As terras são reconhecidas como pertencentes aos Vilela pelos vizinhos, empregados seguem trabalhando e, embora não tenhamos presenciado, moradores locais contam que ainda há engorda de gado naqueles pastos.
As multas não foram pagas, os embargos não são respeitados e, mais grave, as terras públicas griladas continuam indiscutivelmente nas mãos da quadrilha Vilela. Quais seriam, portanto, os resultados concretos deste processo?
Para o diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Luciano Evaristo, com a fazenda embargada, “eles não poderão vender o gado engordado nessa área, pois os frigoríficos não podem comprar gado oriundo de áreas embargadas e não conseguirão fazer o Cadastro Ambiental Rural (CAR), além de também não conseguirem a regularização fundiária da terra”.
Entretanto, nenhuma regulação parece ser um entrave incontornável para a quadrilha. É fato que os frigoríficos se comprometeram a não mais comprar gado que venha de terras em condições irregulares. Porém, o esquema de “lavagem de gado” é simples, rápido e barato. Basta que o gado, no trajeto entre a área embargada e o frigorífico, faça uma escala em um pasto em situação regular. Como o compromisso do frigorífico se limita à última procedência do rebanho, o gado passa a ter origem regular.
A procuradora da República em Altamira, Patrícia Daros Xavier, disse à reportagem que “existem documentos que apontam que a carne adquirida por grandes frigoríficos advém de gado criado nas áreas de desmatamento ilegal”. Tais fatos ainda estão sendo investigados. Entre os grandes frigoríficos, estaria a JBS, a maior processadora de carne do mundo, acusada recentemente na Operação Carne Fraca, o escândalo da carne estragada e imprópria para consumo que atingiu as principais empresas do setor no último dia 17 de março.
O fato de não adquirir a regularização fundiária das terras griladas, ao que parece, também não gera maiores prejuízos para a família Vilela, uma vez que continuam no controle da terra mesmo sem documentos.
Retomar as terras griladas pela quadrilha não é atribuição legal da Operação Rios Voadores nem dos órgãos que dela participaram. Isso caberia ao Programa Terra Legal, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário. Entretanto, segundo o Sistema de Protocolos (Sisprot), que controla os processos administrativos do órgão, até hoje, nenhuma atitude foi tomada para reaver as terras griladas pelos Vilela. A reportagem tentou contato com o responsável pelo Programa Terra Legal no oeste do Pará mas não obteve resposta.
Também procuramos AJ Vilela para ser ouvido na reportagem, mas não obtivemos qualquer resposta.
E assim, apesar das prisões e processos contra a família Vilela, a omissão conivente do órgão fundiário consolida a prática de que quem desmata torna-se dono da terra, alimentando o ciclo de violência, grilagem e destruição florestal que tem sido a marca registrada do agronegócio no Brasil.
Esta matéria é da série exclusiva “Tapajós sob Ataque”, escrita pela jornalista Sue Branford e pelo cientista social Mauricio Torres, que percorrem a bacia Tapajós. A série é produzida em colaboração com The Intercept Brasil. Leia a versão completa em inglês.