O avanço do mar no litoral de Icapuí, no Ceará, deslocou famílias e comprometeu a infraestrutura de escolas, casas e comércios, afetando também comunidades de pescadores.
A erosão no local é impulsionada pelo aumento do nível do mar, alterações causadas por barragens e a inclinação das praias.
Estruturas de contenção, como paredões e espigões, ajudam a proteger a costa, mas alteram a sociabilidade e impactam a atividade pesqueira local.
Especialistas alertam que o aumento do nível do mar, potencializado pelo aquecimento global, agravará a erosão costeira, afetando mais duramente comunidades vulneráveis.
ICAPUÍ, Ceará — “O mar avançou muito rápido e foi acabando logo com tudo”, lembra Maria José Rufino, 59, moradora da praia de Barreiras da Sereia, localizada no município de Icapuí, a cerca de 200 km de Fortaleza. “A maré batia nos postes, que caíam dentro do mar e começavam a pegar fogo. Era um desespero para todo mundo.”
A praia foi uma das principais afetadas pelo avanço do nível do mar no estado do Ceará, ainda nos anos 2010. “Desde então, o problema se intensificou bastante e trouxe muitas consequências para o município”, diz Daniel Oliveira, coordenador municipal da Defesa Civil de Icapuí. “Mudou a ‘cara’ da região litorânea. Moradores nativos tiveram que deixar áreas onde viviam há anos para buscar outros lugares, e muitos não tinham condições financeiras. São, em sua maioria, pescadores de baixa renda.”
Na época, a força da maré foi tanta que chegou a destruir uma escola da comunidade. “Meus meninos estudavam lá. Os professores, que eram daqui, foram para outros colégios e a gente teve que colocar as crianças para estudar em outros cantos”, recorda Maria José. “Ave Maria, aquele tempo foi demais.”
Segundo ela, os moradores também ficavam ilhados quando a maré avançava sobre a avenida, o que impedia qualquer pessoa de sair do local: “para levar um doente para um hospital, por exemplo, era desesperador. Não tinha como levar”.
As situações fizeram com que grande parte dos moradores deixasse a comunidade. A família de Maria José foi uma das poucas que permaneceu no local. “Os pescadores que tinham terreno na parte mais alta da cidade, na serra, começaram a abandonar suas casas [à beira mar] e ir para lá”, destaca Raimundo Isael dos Santos, 41, pescador e presidente da Associação de Moradores da Praia de Peroba, também em Icapuí.
“Não é nem que abandonaram, a maré começou a derrubar e eles saíram. Os que ainda estão na costa é que estão resistindo”, adiciona.
Os problemas não se restringiram a Barreiras da Sereia. Barrinha de Mutamba, Redonda e várias outras comunidades de Icapuí tiveram impactos parecidos. Em Redonda, por exemplo, as casas da costa ficaram com a estrutura comprometida e as avenidas também eram inundadas pela água, impedindo a passagem de carros.

Estruturas de contenção afetaram a sociabilidade
Em busca de evitar as ocorrências, as comunidades receberam paredões de contenção, estruturas de pedra paralelas à linha de costa que têm o objetivo de dissipar a energia das ondas e proteger as áreas internas da praia. No caso de Icapuí, as casas. Elas foram eficazes, cumpriram sua função de proteção, mas também alteraram toda a relação das comunidades com a praia e o mar.
“As casas na beira da praia eram uma continuidade do mar. As crianças eram soltas em todo aquele espaço da praia. Era o lugar de trabalho dos homens, com as barraquinhas, e também era onde eles encostavam os barcos”, explica Maria Cecilia Silvestre, pesquisadora, professora e moradora de Redonda.
“A praia tinha uma sociabilidade muito grande, isso meio que acabou. Não tem mais aquela intimidade, porque o paredão é uma parede mesmo, bloqueia”, continua.
Em Redonda, a estrutura também gerou impactos na atividade pesqueira. Após a construção do paredão, a faixa de areia ficou muito curta e os pescadores passaram a ter dificuldade para atracar os barcos na praia, o que inviabiliza manutenções, por exemplo. Com isso, as embarcações agora são deixadas em outras localidades.
Apesar dos impactos da contenção, o pescador Eliseu Reinaldo de Souza, 49, não entende a estrutura como algo negativo. “O paredão foi ótimo. Se não fosse por ele, não tinha mais morador aqui. Foi um projeto realizado a favor da comunidade de Redonda”, pontua.
Eliseu herdou a profissão dos pais, mas a prática para ele, e para vários outros pescadores de Icapuí, não é apenas uma forma de sustento, também faz parte de sua identidade. “Se eu parar de pescar, é a tristeza maior que eu vou sentir. É o que eu mais sei fazer. Se acontecer uma ordem de eu parar de pescar, é como se eu morresse.”
Também filha de pescadores, Sidnéia Luzia da Silva, 45, é a única pescadora mulher de Redonda. “O mar, para mim, é tudo. É minha fonte e inspiração, é dele que eu tiro meu sustento; eu respiro o ar que vem do mar. Toda vez que eu viajo, por exemplo, eu levo uma concha, pra conseguir escutar o barulho do mar.”
“Sair da praia seria como uma prisão para mim. Eu tenho outros terrenos na serra, mas não quero ver mato. Quero ver mar. É o que eu vejo a minha vida inteira”, continua.

Por que o mar está avançando?
O aumento do nível do mar é uma consequência direta do aquecimento global. Segundo Alexandre Costa, professor do mestrado em Climatologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), o fenômeno é impulsionado por dois fatores principais. O primeiro é a dilatação térmica dos oceanos. Assim como diversas substâncias, a água se expande quando sua temperatura aumenta. O segundo, e mais determinante em médio e longo prazo, é o derretimento das geleiras, como o manto de gelo da Groenlândia, da Antártica e das cadeias montanhosas.
De acordo com ele, há gelo suficiente no manto da Groenlândia para elevar os oceanos em até 7 metros. Na Antártica, esse potencial é ainda maior: o derretimento total poderia aumentar o nível do mar em 64 metros. “Somadas, essas mudanças já representam uma elevação significativa do nível do mar, que tende a avançar muito mais rapidamente nas próximas décadas”, alerta o pesquisador.
Segundo Luís Parente, geólogo especialista em erosão costeira e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde foi responsável pela criação dos cursos de Oceanografia e Ciências Ambientais, além do aumento do nível do mar em si, outros fatores também contribuem para que Icapuí e outras praias do Ceará sejam mais afetadas pela erosão costeira.
O problema, segundo o professor, ocorre quando há um desequilíbrio no balanço sedimentar. “Se chega mais areia do que sai, a praia cresce; se chega menos, ocorre erosão. No passado, os rios transportavam a areia até o litoral, que era distribuída ao longo da costa. Mas como a gente tem problemas de água [no Nordeste], nós fizemos os açudes, como o Armando Gonçalves de Melo, que influencia Icapuí. Ao construir esses reservatórios, a água e a areia que eram levadas às praias ficam retidas, o que é um fator de agravamento”, explica.
Em Icapuí, outro fator determinante é a inclinação das praias, que costumam ser bem planas. “Se o mar subir 10 centímetros, por exemplo, vai acontecer uma erosão de 10 metros por ano. É muita coisa. A própria característica da praia faz com que ela seja afetada de forma diferente em função da inclinação do seu perfil. Outras praias, como Icaraú e Itarema, que ficam lá do outro lado do Ceará, têm essa mesma característica”, detalha Parente.
Outra questão são os efeitos climatológicos. Segundo o professor, quando o El Niño acontece, há a aceleração de ventos alísios, correntes de ar constantes que sopram dos trópicos em direção ao Equador, de leste para oeste. A aceleração faz com que as ondas fiquem maiores, tenham maior energia e transportem mais sedimentos, aumentando a erosão. “No Nordeste também existem as ondas swell, formadas pelas tempestades no hemisfério norte. Quando o swell chega em Icapuí, destrói tudo”, destaca.

Comunidade de Peroba espera por contenção há anos
O problema não ficou no passado. Hoje, cerca de 48% da linha de costa do estado do Ceará apresenta algum nível de erosão costeira, segundo informações do Plano de Ações de Contingência para Processos de Erosão Costeira (PCEC). Só o município de Icapuí tem nove pontos de erosão crítica, quando há um recuo maior que 1 metro por ano.
Um desses pontos está localizado na praia de Peroba, que, hoje, é o epicentro do problema — sobretudo porque ainda não recebeu obra de contenção. A erosão, causada na comunidade pelo impacto da maré, deixou pousadas, casas e centros comunitários no limite do desabamento. Uma das afetadas é Maria de Fátima, 70, que vive na comunidade há mais de 50 anos. Ela é uma das donas da pousada Estrela Peroba. “Só aqui trabalham doze mães de família. Tá tudo parado, sem ganhar um tostão”, desabafa.
A mudança no comportamento da maré é percebida por quem acompanha o avanço do mar há décadas. Caliane Viana, 39, que vive no local desde a infância, cita que no passado existiam períodos específicos de maré alta: janeiro, março e agosto, por exemplo. “Mas, agora, não existe mais essa calmaria. É de janeiro a dezembro. A maré todo tempo é grande. O ano todinho, acabando e destruindo com tudo”, pontua.
O presidente da Associação de Moradores de Peroba, Raimundo Isael, destaca que a situação também causa uma série de impactos econômicos à comunidade. “No turismo, por exemplo. O turista vem pra cá, mas encontra dificuldade em chegar nas localidades que foram alugadas.”

Ele ainda relata que muitos pescadores têm deixado a comunidade por falta de espaço para atracar as embarcações. Com a maré alta, a faixa de areia desaparece, o que impossibilita o desembarque dos barcos. “A maior parte das embarcações nativas da Peroba está ancorada em outras comunidades, onde os pescadores conseguem acessar mesmo com a maré alta. Hoje, na Peroba, só chegam as mercadorias; nossos barcos ficam em outros lugares.”
A falta de uma obra de contenção contra o avanço do mar na praia de Peroba se dá, em grande parte, por conta de um imbróglio político. De acordo com o Daniel, coordenador da Defesa Civil, a prefeitura chegou a conseguir um recurso para construir um paredão na comunidade, mas a obra foi barrada por moradores de veraneio, pessoas que têm imóveis na região, mas não vivem por lá o tempo todo.
Eles defendem a construção de espigões, pois entendem que o paredão geraria impactos ao turismo local, que é um importante pilar econômico de Icapuí, e que a estrutura causaria problemas de acesso à praia para moradores e pescadores, que não teriam onde atracar os barcos pela falta de espaço, como aconteceu em Redonda.
A população tradicional tinha preferência pelo paredão, isso porque a contenção garantiria uma proteção para as casas de forma mais rápida. Hoje, eles não se opõem à construção dos espigões. Só querem que algo seja feito. “Em Peroba, nós estamos em estado de calamidade. É uma situação em que ninguém pode colocar ‘banca’. O que vier é bem-vindo, porque é uma solução. O paredão ou espigão”, cita Caliane.
O grande problema é o tempo. O imbróglio para decidir o que será feito se arrastou de 2019 a 2024, quase cinco anos. “É uma complicação danada e, enquanto isso, quem sofre são os nativos”, afirma Daniel.
O acordo entre as associações comunitárias e a prefeitura só aconteceu em março de 2024. O decidido foi a construção de dois espigões e um aterro da faixa de praia. As obras contam com um investimento de R$ 11 milhões cedidos pelo Governo do Estado, por meio da Secretaria de Obras Públicas do Ceará (SOP-CE), com apoio do Governo Federal.Muro de contenção com estacas de madeira feito pelos moradores da praia da Peroba para conter o avanço do mar. Foto: João Ferreira
Qual a diferença entre o paredão e o espigão?
Os paredões são construídos paralelamente à linha de costa e têm como principal objetivo dissipar a energia das ondas e proteger as áreas internas. No caso de Icapuí, as casas.
Já o espigão é uma estrutura construída perpendicularmente à praia para tentar conter a erosão. Ele funciona como uma barreira que interrompe a movimentação natural da areia ao longo da costa, o que faz com que os sedimentos se acumulem de um lado. Isso pode ajudar a alargar a faixa de areia no ponto, mas, como a areia deixa de seguir seu caminho natural, pode causar a erosão nas praias que ficam localizadas depois da construção.
Uma perícia conduzida pelo professor Parente apontou o risco de transferência da erosão para outras praias, mas destacou que o uso de tecnologias modernas, espigões curvos e permeáveis, além da alimentação artificial de areia, podem reduzir esses impactos. Mas vale destacar que eles não deixam de existir, apenas são minimizados.
No caso da praia de Peroba, a entrega da primeira parte dos espigões estava prevista para agosto deste ano, mas foi adiada para março de 2026. Consultada, a SOP-CE afirma que o novo prazo foi definido após reuniões com a prefeitura de Icapuí.
A SOP-CE ainda afirma que a implantação da contenção é realizada por meio de um convênio da pasta com a prefeitura, que é a responsável pela execução das obras. A reportagem entrou em contato com a secretaria de imprensa da prefeitura para ter mais informações sobre a mudança da data de entrega, mas não teve retorno até a publicação da matéria. Moradores, no entanto, citam que as obras caminhavam em um ritmo bem lento.
Enquanto os espigões não ficam prontos, os próprios moradores recorrem a soluções improvisadas para conter o avanço do mar. Alguns constroem cercas de madeira, outros fazem barreiras com sacos de areia, como é o caso da pousada de Maria de Fátima, que adotou essa medida para tentar proteger o imóvel.
“Estamos esperando esse abençoado espigão para melhorar nossa situação”, diz Maria de Fátima. “É sobrevivência, não é luxo. Se tem uma coisa que eu batalho enquanto eu sou viva é pelo nosso direito de viver onde nós nascemos e nos criamos. A gente tem o direito de batalhar por isso daqui. Sempre digo que a gente precisa se reunir, ir pra prefeitura, pra rádio, pro jornal. Isso daqui é nosso pão de cada dia, é nossa vida.”
Em nota, a Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Ceará (Sema-CE) afirma que desenvolve o Comitê Estadual de Planejamento e Respostas à Erosão Costeira (Ceprec), formado por vários órgãos, entre eles o próprio governo do estado, prefeituras municipais, universidades e outros. “Esse grande grupo vai promover debates que visem a educação e a conscientização ambiental e propor recomendações políticas que sejam eficientes e eficazes para tratar da situação colocada”, detalha.
Costa, da Universidade Estadual do Ceará, lembra que a crise climática acentua desigualdades: países do Norte Global emitem taxas de carbono por pessoa dezenas de vezes mais que os do Sul. A diferença, de acordo com ele, chega a cerca de 50 vezes entre um habitante médio dos EUA e um de Moçambique. E, dentro dos próprios países, os mais ricos respondem por uma pegada de carbono muito maior.
De acordo com ele, na prática, aqueles que menos contribuem com as emissões, como comunidades periféricas, quilombolas, pescadores, ribeirinhos e grupos racializados, são os principais afetados, agora e no futuro. “A crise climática tem tudo a ver com desigualdade, tanto do ponto de vista da responsabilidade quanto do ponto de vista das consequências”, pontua.
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Imagem do banner: Praia Redonda, em Icapuí (Ceará). Foto: Helder da Rocha, CC BY-SA 2.0, via Wikimedia Commons