À medida que projetos de infraestrutura e plantações de soja fazem com que o valor da terra aumente na Amazônia brasileira, pequenos agricultores vendem suas propriedades e se mudam para fronteiras mais distantes, perpetuando um ciclo de deslocamento e desmatamento.
A isolada região sul do estado de Roraima se tornou um destino prioritário para esses migrantes, que compram terras de corretores informais, com documentação duvidosa – grande parte delas grilada a partir da imensa quantidade de terras não destinadas do governo brasileiro.
Embora o apetite pela apropriação de terras tenha diminuído desde o início do governo Lula, o desmatamento vem aumentando na região nos últimos anos.
CAROEBE, Brasil — Onésio Nascimento trabalhou na terra durante toda a sua vida, mudando-se de uma fronteira agrícola para outra.
Durante a pandemia do coronavírus, ele vendeu 20 hectares de terras no noroeste do Mato Grosso e usou o dinheiro para comprar 100 hectares situados mais de 1.500 quilômetros ao norte, penetrando mais fundo na Amazônia, no sul de Roraima.
Hoje, ele cultiva mandioca e banana em suas terras, a uma hora de carro por uma estrada de terra esburacada que passa entre pequenos rebanhos de gado. A via se transforma em lama durante a estação chuvosa e é usada pelos madeireiros para extrair madeiras amazônicas valiosas da floresta, próxima dali.
Em uma tarde de final de outubro, durante a grave seca de 2023 na Amazônia, seu pedaço de terra estava em chamas; ele ateou fogo deliberadamente com o objetivo de poder liberar espaço para mais plantações.
“Não tinha nada [quando eu cheguei], era tudo mato”, disse ele à Mongabay. “A gente teve que trabalhar muito.”
Mesmo nesta parte remota da Amazônia, Nascimento, de 59 anos, não é o único “forasteiro”. Quase todos os seus vizinhos da estrada vicinal 34, na cidade bananeira e madeireira de Caroebe, migraram de outros estados da região amazônica, como Mato Grosso, Rondônia e Pará, atraídos por terras baratas.
Nos últimos anos, megaprojetos de infraestrutura e grandes fazendas de gado e soja fizeram subir os preços das terras em regiões colonizadas da Amazônia brasileira, muitas das quais foram sendo ocupadas durante a ditadura militar, entre 1964 e 1985.
O aumento dos preços da terra, combinado com as dificuldades típicas enfrentadas pelos agricultores familiares na região, como acesso a crédito, incentivaram muitos a vender suas propriedades e procurar oportunidades em fronteiras cada vez mais distantes, perpetuando um ciclo de deslocamento e desmatamento.
De uns anos para cá, as vastas extensões de “terras devolutas” do sul de Roraima, que não são áreas de conservação nem propriedades privadas, vêm despertando o interesse de vários grupos, incluindo pequenos agricultores, posseiros, especuladores, grileiros e grandes pecuaristas.
“É uma das últimas fronteiras da Amazônia e é uma fronteira do desmatamento bastante ativa”, disse Paulo Barni, professor de manejo florestal da Universidade Estadual de Roraima, à Mongabay. “E as terras devolutas, que não tem status de conservação, estão disponíveis aí para as pessoas chegarem, fazer a demarcação e depois tomar posse.”
Embora as atenções tenham estado mais voltadas ao bilionário garimpo ilegal de ouro e cassiterita que opera na Terra Indígena Yanomamiars, também em Roraima, o desmatamento da Amazônia nos municípios do sul do estado teve um pico de crescimento nos últimos anos.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento total nos quatro municípios que compõem o sul de Roraima – Caroebe, Rorainópolis, São João da Baliza e São Luiz – mais que dobrou entre 2019 e 2021 em relação ao triênio anterior – passando de 12.700 hectares a 27.800 hectares.
A destruição continuou aumentando em 2022 e 2023, com 19.100 hectares desmatados. Nas primeiras semanas de 2024, dados preliminares sugerem que pelo menos 800 hectares foram desmatados, metade deles em Caroebe, onde Nascimento mora.
Em fevereiro, o município foi o oitavo mais atingido por incêndios florestais no Brasil, já que Roraima passou por uma estação de queimadas de intensidade nunca vista.
Pequenos agricultores como Nascimento desmatam em quantidades relativamente pequenas, segundo Barni, devido aos elevados custos do corte de árvores e da limpeza da terra – cerca de 2.000 reais por hectare. No entanto, eles podem abrir caminho para grileiros e especuladores maiores, e também é comum ver grandes áreas desmatadas de até 400 hectares por vez na região.
Cercado por estradas de terra
As terras indígenas no sul do estado também têm sofrido com o aumento das invasões de madeireiros e grileiros.
“Temos vicinais por todos os lados”, disse Levi da Silva Kaykûwû, cacique do povo indígena Wai Wai, cujo território de 406 mil hectares é alvo frequente de madeireiros. “Hoje em dia eles estão chegando cada vez mais perto.”
Quem falou a Nascimento sobre a oportunidade de comprar terras no sul de Roraima foi um corretor informal, uma espécie de vendedor ambulante, comum na Amazônia brasileira, que lucra com as transações entre proprietários e compradores.
Nascido no final da década de 70 no estado do Paraná, Nascimento estava com sua família entre milhões de agricultores pobres que migraram ao norte, para a Amazônia, espremidos pela agricultura mecanizada e pelas monoculturas. O primeiro local onde se estabeleceram foi Vilhena, no estado de Rondônia.
“Eu sou mais rondoniense do que paranaense”, disse Nascimento.
Segundo ele, a família cultivava café, arroz, feijão e milho em um pequeno pedaço de terra, mas enfrentava grandes dificuldades. Muitos pequenos agricultores que migraram para a Amazônia durante o período da colonização adoeceram e morreram de malária; outros venderam ou abandonaram suas propriedades, ou então foram enganados por grileiros.
Quando ele era um jovem adulto, no final dos anos 80, plantando roças e trabalhando em uma madeireira e usando o dinheiro que ganhava para abrir mais terras, grandes pecuaristas estavam chegando em Rondônia e colocando a crise na Amazônia bem no centro das atenções internacionais. Nascimento acabou se mudando para o estado do Mato Grosso, a leste de Rondônia e ainda na Amazônia.
Uma geração depois, a história se repetiu. Em 2020, ele decidiu vender sua pequena propriedade em Aripuanã, cidade madeireira e pecuarista com um dos maiores índices de desmatamento da Amazônia, onde passou os últimos 18 anos.
Àquela altura, o Mato Grosso já era a locomotiva agrícola do Brasil, e os preços da terra tinham subido após o estabelecimento de uma mina de zinco. Para pequenos agricultores como Nascimento, as condições de trabalho se tornaram mais difíceis com a chegada de fazendeiros ricos e seus equipamentos mecanizados, cujas colheitas rendiam muito mais.
Também houve a violência: a execução de quatro pessoas por homens armados e encapuzados em uma área de garimpo ilegal em 2020 entrou na conta do número de mortos que fez de Aripuanã um dos municípios com mais assassinatos do Brasil naquele ano.
Hoje, Nascimento é vizinho de sua ex-mulher e do novo marido dela, que também comprou uma propriedade na estrada vicinal 34, na região sul de Roraima. Seus filhos moram em Mato Grosso e Rondônia.
Ele reclamou que as autoridades ambientais começaram a “perseguir”, tanto ele quanto seus vizinhos, depois da posse, em janeiro de 2023, de Luiz Inácio Lula da Silva, que concorreu à presidência com uma plataforma pró-meio ambiente. Roraima era um reduto do candidato derrotado à reeleição, Jair Bolsonaro, e lhe deu a maior margem sobre Lula nas eleições de 2022.
“Eles só vão atrás dos pequenos”, disse Nascimento, que é analfabeto. “Com Bolsonaro, pelo menos a gente podia trabalhar.”
Um servidor da área ambiental que trabalha em Roraima e pediu para não ser identificado por medo de perseguição disse à Mongabay que a leniência do governo com os colonos que reivindicassem a posse de terras era “praticamente uma política de Estado” e foi estimulada especialmente durante o mandato de Bolsonaro, de 2019 a 2022.
Nascimento não tem título de propriedade oficial, apenas um documento informal de compra. Essa documentação frágil não lhe permite ter acesso a crédito bancário. Ele disse que espera ser uma das pessoas que, cada vez em maior número, tenta obter um título de terra do Estado em algum momento. Mas, como destacou: “Para legalizar, tem que ter muito dinheiro, é difícil”.
“O sonho é comprar um pedaço de terra”
Avançando uma hora de carro pela vicinal 34, há terras recém-desmatadas ao lado da mata nativa. É nessa estrada que mora Nascimento, e ela está sendo aberta aos poucos, provavelmente por madeireiros, segundo fontes locais.
Celia Regina da Silva, 53 anos, chegou recentemente de Rondônia, onde deixou o emprego como supervisora de vendas em uma companhia telefônica.
Seu marido e seu filho foram contratados pelo dono de um pedaço de terra, uma área de 300 hectares de mata nativa, para inventariar as árvores que têm valor e serão retiradas e vendidas a serrarias da região.
“Eu estou aqui há pouco tempo, mas agora o sonho é comprar um pedaço de terra e me mudar para cá”, disse ela.
Mais adiante na vicinal 34, cabanas de madeira construídas há pouco ficam em terrenos desmatados, vazias, exceto por alguns móveis básicos e serragem, sugerindo atividade madeireira. Estradas usadas para a retirada de madeiras nobres já serpenteiam pela floresta.
A estrada de terra termina perto da Terra Indígena Trombetas/Mapuera, uma enorme extensão de floresta que foi invadida por madeireiros e grileiros. O Ministério Público Federal em Roraima recomendou recentemente o cancelamento dos títulos de propriedade de posseiros e agricultores no território; um avião misterioso também foi encontrado ali no ano passado.
Há muito tempo, o sul de Roraima é um foco para o comércio ilícito de madeira. Em 2020, um madeireiro que operava de forma ilegal foi morto durante uma operação de fiscalização no município de Rorainópolis.
Também foi na região que a Força Nacional, unidade conjunta que inclui as polícias militar e civil, foi mobilizada no ano passado para proteger a Terra Indígena Pirititi, onde vive um grupo indígena isolado, após ela ter sido invadida por grileiros em maio. Em dezembro, a presença da Força Nacional foi prorrogada por mais 90 dias.
“Há um grupo extremamente bem organizado trabalhando lá”, disse Alisson Marugal, que é procurador federal em Roraima.
Na Festa da Banana e Feira do Agronegócio de Caroebe, evento conjunto realizado no final de outubro, a poucos minutos de carro do início da estrada de terra onde vivem Onésio Nascimento e Célia Regina da Silva, a cultura rural de estilo vaqueiro que se espalhou pela Amazônia brasileira nas últimas décadas estava em plena exibição.
Artistas renomados como Joelma, a Rainha do Calypso, além dos cantores sertanejos Mano Walter e George Japa, apresentaram-se no palco. Os estandes anunciavam máquinas agrícolas John Deere, algumas delas vendidas por dezenas ou até centenas de milhares de dólares, enquanto um rodeio proporcionava mais entretenimento aos espectadores.
No Instagram, a prefeitura de Caroebe escreveu que o evento “reuniu mais de 40 mil pessoas” e “movimentou recorde de negócios no setor agropecuário da região”.
O crescimento atual do mercado de terras em Roraima é tão forte que as redes sociais também são usadas por corretores para anunciar grandes propriedades.
Ainda assim, Evanilson Ribeiro da Silva, um corretor informal que usa o Facebook para intermediar vendas de propriedades, disse que a corrida migratória que ele testemunhou nos últimos seis anos na região estagnou em 2023.
Os temores de repressão aos crimes ambientais por parte do governo Lula desestimularam a compra de terras por novos colonos e grandes pecuaristas naquele ano, disse ele.
“A maioria das pessoas que vem para o sul do estado é de pecuaristas”, disse. “Eu dirijo por toda esta região, e a maioria [dos compradores de terras] é de Rondônia.”
“Mas o povo está desesperado porque tem problema com o governo do PT, porque eles são muito rigorosos com a fiscalização.”
Daniel Alves da Silva, 59 anos, disse que sente o mesmo. Veterano das vendas de terra na Amazônia, vindo de São Paulo, ele disse que comprou e vendeu 13 propriedades em 26 anos em Rondônia e no sul de Roraima, onde mora há 11 anos.
Silva reclamou de medidas do governo Lula, como a repressão ao garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e o veto presidencial ao projeto de lei do marco temporal.
“Quem quer vender terra não está vendendo, porque as pessoas têm medo dessa mudança de governo”, disse Silva, acrescentando que estava voltando para Rondônia para trabalhar em uma serraria.
Mas Johnny Sampaio, 61 anos, também natural de Rondônia, que mora em um barraco de madeira na mesma estrada vicinal 34 de Onésio Nascimento e Célia Regina da Silva, não tem essa opção.
Quando há trabalho, ele ganha 100 reais por dia cortando o mato em áreas que foram desmatadas e queimadas para dar lugar a plantações ou pasto.
Em sua casa de um único cômodo, moscas e alimentos em condições não muito higiênicas ficam ao lado de um colchão sujo que ele usa para descansar dos dias de trabalho, muitas vezes sob um calor de 40 °C.
“Eu moro sozinho com Deus”, disse Sampaio.
Com a possível pavimentação da rodovia BR-319, que ligaria Porto Velho, capital de Rondônia, à cidade de Manaus, no Amazonas, Roraima ficaria menos isolada do resto do Brasil. Especialistas dizem que isso aumentaria os preços da terra – e também os índices de desmatamento.
“Seria catastrófico para a região”, disse Barni, o professor de manejo florestal. “Um dos motivos que mantém as florestas preservadas é o relativo isolamento do estado.”
Mas para Onésio Nascimento, na vicinal 34, as dificuldades de viver em tamanho isolamento são muito reais. A seca afetou seus cultivos de banana, que dependem da chuva. Mesmo assim, depois de uma vida inteira se mudando de um lugar para outro, ele disse que espera se estabelecer definitivamente no sul de Roraima.
“Aqui é mais tranquilo”, disse ele. “Se Deus quiser, eu vou trazer os meus filhos.”
Leia também: Em Roraima, comunidades indígenas criam soluções sustentáveis em meio a ameaças
Este projeto foi parcialmente financiado pelo Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center.