Grupo de pesquisadores viajou ao sul do Pará para estudar os chamados peixes-anuais, cujos ovos permanecem em hibernação em períodos de seca e só eclodem quando chove – daí o nome popular de “peixes das nuvens”
Existem 200 espécies de peixes-anuais no Brasil, e quase metade está ameaçada de extinção; seus ecossistemas frágeis — poças, alagados e brejos — são altamente suscetíveis à destruição por obras de infraestrutura, como rodovias, portos e hidrelétricas.
Eles são ainda pouco estudados na Amazônia, e já sofrem com as alterações provocadas pela ocupação humana; três novas espécies descobertas na expedição, tidas como endêmicas, estão na área de influência indireta da Usina de Belo Monte.
Os peixes-anuais podem ter no licenciamento ambiental para grandes obras uma garantia de sobrevivência, mas um novo Projeto de Lei propõe o seu enfraquecimento.
De norte a sul do Brasil, diz-se que peixinhos coloridos caem das nuvens em períodos de chuvas e tomam conta das poças recém-formadas. A lenda busca explicar o que, de fato, é difícil entender: o surgimento dos rivulídeos — grupo de peixes composto por quase 500 espécies no país — onde antes parecia haver apenas chão de terra batida.
Medindo menos de 10 centímetros e com cores variadas, os rivulídeos são divididos em anuais — espécies que surgem em um único período do ano, dependendo da região —, e nãoanuais, que se referem às que estão sempre presentes.
Os peixes-anuais, que têm hora certa para aparecer, na verdade vivem em ambientes aquáticos temporários de água doce como poças, alagados, brejos, lagoas e áreas marginais de riachos, que se formam nas épocas chuvosas. Contam com uma biologia de reprodução peculiar: colocam seus ovos em substratos como areia e argila, que ficam em fase de estivação (um tipo de dormência) até que chova, quando então eclodem. Podem passar meses, ou mesmo anos, esperando que a água chegue. Por causa disso, é comum pensar que não há vida ali.
A família Rivulidae ocorre em todos os biomas brasileiros. Dos Pampas, no sul do país, à Amazônia. E grande parte das espécies estão ameaçadas, pois, tão frágeis quanto os chamados peixes-das-nuvens, são seus habitats. Esses pequenos ecossistemas temporários sofrem, principalmente, com as mudanças no ambiente natural provocadas por ações humanas, principalmente agropecuária, construção de empreendimentos privados e obras de infraestrutura como rodovias, portos e hidrelétricas.
“Tem espécies de rivulídeos que ocorrem nas poças marginais de estradas, e a duplicação de uma BR pode ser uma ameaça. Se a faixa que vai ser construída passa por cima da poça, essa espécie já era, ela deixa de existir naquela localidade”, explica o professor Márcio J. da Silva, da Universidade Federal do Pará.
Se por um lado as interferências antrópicas colocam em risco os peixes-das-nuvens, por outro, a falta de conhecimento sobre eles também. “Tem regiões da Amazônia que são mais conhecidas e outras que a gente não conhece muito bem. Por falta de recursos, de estrutura”, explica Carolina Dória, professora da Universidade Federal de Rondônia. “Hoje estima-se que existam em torno de 2.500 espécies [de peixes na Amazônia]. Mas anualmente vem-se investigando novas espécies e conhecendo-se um pouco mais de alguns grupos que antes eram mais difíceis, como os rivulídeos, cujo reconhecimento é bem mais recente.”
A pesquisadora liderou omaior inventário de espécies de peixes já feito no mundo em uma bacia fluvial, no caso a região do Rio Madeira, onde operam as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. O levantamento apontou 1.057 espécies de peixes na área.
Expedição inédita
Para levantar informações científicas e ampliar o conhecimento sobre os rivulídeos anuais amazônicos, sobretudo novos locais de ocorrência e espécies, equipes de pesquisadores e estudantes da Universidade Federal do Pará, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Instituto Peixes da Caatinga, além de ribeirinhos e profissionais de órgãos ambientais nacionais e regionais, realizaram uma expedição inédita que, durante 16 dias, percorreram diversos municípios do sul do Pará e do Maranhão coletando amostras de material genético, informações de caracterização dos habitats e propriedades físico-químicas da água, além de registros fotográficos. Com isso, será possível reunir dados que permitirão entender melhor o estado de conservação dos rivulídeos. E, assim, planejar as ações.
“Faz parte do método de avaliação de espécie ameaçada saber em quais localidades ela se encontra. Se a gente tem uma espécie com registro em uma única localidade, é muito mais fácil de ser perdida por qualquer modificação, seja a construção de uma hidrelétrica ou um loteamento que aterra uma área onde ela ocorre”, explica Silva, que também atuou como um dos coordenadores científicos da expedição.
Por isso, diz o pesquisador, para entender o estado de conservação dos peixes-das-nuvens, é preciso entender sua distribuição e os impactos ambientais associados. “Se a gente consegue encontrar em mais de uma localidade do que se conhecia ou a distribuição é um pouco mais ampla do que se achava, essas espécies podem mudar de categoria de ameaça, sair de uma categoria de criticamente ameaçada, por exemplo.”
O local da Expedição Rivulídeos Amazônicos foi escolhido com base na literatura científica, principalmente das últimas duas décadas, que aponta para ocorrência de espécies de rivulídeos restritas a áreas muito pequenas, de 500 m2 a 1 km2 no entorno do Rio Xingu.
Os resultados preliminares do trabalho em campo já apontam para possíveis novas espécies, o que animou os cientistas. Mas revelou situações de alerta. A Ilha do Arapujá, em Altamira, de onde foram descritas duas espécies de peixes-das-nuvens (uma delas ameaçada de extinção) está na área de influência do reservatório da Usina de Belo Monte e sofre com os impactos causados pela hidrelétrica.
“Não existe mais o ambiente natural que existia quando essas espécies foram descritas. No retorno [da expedição], a gente parou para analisar a localidade e não conseguiu encontrar essas espécies. Então, ou elas foram extintas localmente — isso é uma possibilidade —, ou a gente não conseguiu amostrar. Precisamos de mais estudos pra avaliar essas áreas”, pontua Silva.
União de esforços pela conservação dos rivulídeos
A expedição uniu esforços do Plano de Ação Nacional (PAN) para a Conservação dos Peixes Rivulídeos ameaçados de Extinção, do Ministério do Meio Ambiente, e do Plano de Ação Territorial de Conservação de Espécies Ameaçadas do Território Xingu (PAT-Xingu), coordenado pelo Instituto de Desenvolvimento Florestal e da Biodiversidade do Estado do Pará.
A iniciativa faz parte do Projeto Pró-Espécies:Todos contra a extinção, que trabalha para melhorar o estado de conservação de 290 espécies nativas consideradas criticamente em perigo. O projeto é financiado pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), implementado pelo Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), e tem como agência executora o WWF-Brasil.
O PAN dos Rivulídeos está no segundo ciclo de execução, cada um de cinco anos de duração. Entre os objetivos dessa etapa estão justamente a ampliação de conhecimento científico sobre essas espécies e a disseminação das informações por meio de educação ambiental e divulgação.
“O plano tem o objetivo geral de aumentar o conhecimento da sociedade em relação aos peixes anuais, então uma base forte dele é a divulgação, as ações locais de educação”, conta Izabel Boock, analista ambiental do ICMBio/Cepta e coordenadora técnica do PAN dos Rivulídeos. “Servir de alerta, por exemplo, para fiscalização, como uma denúncia de área degradada, de abertura irregular de estrada, para trabalharmos no sentido de ir atrás de quem causou o problema e como podemos fazer para resolver.”
A expedição na Amazônia faz parte de uma série de quatro outras, realizadas este ano em outros biomas, e foi pensada depois que os programas existentes na região do Rio São Francisco (norte de Minas Gerais e sul da Bahia) e no estado do Rio Grande do Sul, mostraram impactos significativos por agropecuária. No futuro, a ideia é usar ferramentas como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) para que propriedades com ocorrência de rivulídeos sejam registradas como áreas de proteção.
“A área do Xingu tem uma pressão absurda, o agro é muito forte, o desmatamento é muito forte e a gente sabe que para as nossas espécies-alvo, um dos maiores problemas é justamente essa alteração do habitat. Para os rivulídeos também. O pisoteio do gado acaba com as poças, modifica todo o ambiente, tanto a parte química quanto estrutural”, diz a bióloga Nívia Gláucia Pereira, coordenadora técnica da outra frente de trabalho pela conservação dos peixes-das-nuvens, o PAT-Xingu.
Ela comenta também sobre os desafios adicionais de se estudar os rivulídeos na Amazônia: “Quando a gente compara com as espécies da região Sudeste, Centro-Oeste, a gente consegue perceber que existem muito mais informações disponíveis, pesquisas sendo constantemente realizadas. Na região amazônica, tem desafios como distância, isolamento, às vezes até mesmo uma parceria é difícil de articular”.
Fragilização do licenciamento ambiental: ameaça para muitas espécies
A pesquisa de campo traz subsídios para os planos nacional e territorial pela conservação dos rivulídeos em um momento delicado da política ambiental do país. Frequentemente atingidos por empreendimentos de infraestrutura, que aterram seu habitat, os peixes-das-nuvens podem ter no licenciamento ambiental para grandes obras uma garantia de sobrevivência. O instrumento requisita dados de ocorrência de espécies, mas um PL propõe o seu enfraquecimento.
“O projeto que estabelece a Lei Geral do Licenciamento Ambiental em análise no Senado representa retrocessos que desconstroem o licenciamento e a Avaliação de Impacto Ambiental”, avalia Evandro M. Moretto, professor da Universidade de São Paulo. Entre as propostas, ele cita a criação do Licenciamento por Adesão e Compromisso, uma forma de auto-licenciamento sem a necessidade de análise e manifestação prévia do órgão ambiental, e a dispensa de licenciamento ambiental para uma extensa lista de tipos de projetos e atividades, entre elas agropecuárias. “Avizinha-se o maior retrocesso que a política ambiental brasileira já experimentou ao longo de uma história de 42 anos de existência”, diz Moretto.
Carolina Dória, da Federal de Rondônia, concorda: “Eu acho muito arriscado afrouxar o licenciamento. Eu entendo que a gente precisa melhorar o sistema de fiscalização. Existe uma reclamação das empresas de que o processo de licenciamento não é muito ágil. Mas o problema não é o licenciamento, é a falta de estrutura dos órgãos para pode fazer isso mais rápido.”
Uma das lacunas para a conservação dos peixes-das-nuvens, observada no PAN, foi justamente a necessidade de um documento norteador para os órgãos gestores e fiscalizadores nas esferas federal, estadual e municipal. Segundo Silva, o documento, já em elaboração, trará orientações e ajudará os responsáveis pelas condicionantes dos empreendimentos a terem um arcabouço teórico que seja levado em consideração nos Estudos de Impactos Ambientais.
“As espécies têm direito de estarem vivas. Nenhuma espécie quer deliberadamente ser extinta do mundo. Quando ela não tem como se proteger das ações antrópicas, nosso papel é reagir para que elas tenham esse direito”, defende Silva.
Imagem do banner: Exemplar de peixe-anual da espécie Pituna poranga. Foto: Gustavo Fonseca