Condições climáticas extremas, de grandes inundações a graves faltas de água, abalaram cidades e pequenas comunidades no coração da Amazônia brasileira este ano, uma tendência que especialistas atribuem às mudanças climáticas e a ações humanas.
O Rio Acre, que cruza o estado de mesmo nome, passou este ano pela segunda pior seca de sua história.
A escassez de água ocorreu poucos meses depois de a mesma região sofrer diversas inundações, quando o Rio Acre transbordou e forçou centenas de milhares de pessoas a deixarem suas casas.
O Brasil como um todo enfrentou ao longo do ano sua pior temporada de seca em quase um século, o que afetou o abastecimento de água para a população, a agricultura e a geração de eletricidade. O movimento faz parte de um padrão global de aumento da escassez hídrica.
RIO BRANCO – Em apenas alguns meses, cidades inteiras e pequenas comunidades no coração da Amazônia brasileira enfrentaram condições climáticas extremas este ano — desde deslocamento forçado por enchentes a uma grave escassez de água — o que especialistas atribuem a mudanças climáticas e a ações humanas, como o desmatamento das margens dos rios. A capital do Acre, Rio Branco, é um desses locais.
Toda a bacia do Rio Acre, que nasce no Peru antes de cruzar a Bolívia e desaguar no Brasil, enfrentou a segunda pior seca de sua história este ano. Em Rio Branco, onde vive quase a metade dos 900 mil habitantes do estado, o nível da água do rio atingiu 133 centímetros no final de agosto — apenas 3 centímetros acima do nível mais baixo já registrado na cidade, em 2016.
A falta de água representa sérios desafios para a sobrevivência das pessoas e da vida selvagem que vivem às margens do rio, assim como para a indústria agrícola. Em agosto, o prefeito de Rio Branco, Tião Bocalom, declarou estado de emergência devido aos riscos de escassez de água potável nas comunidades rurais.
Entre as vítimas, está a família da estudante Taylane Lima, 23, que mora na comunidade Manoel Marques, às margens da rodovia AC-90, conhecida como Transacreana, na periferia de Rio Branco. Composta por 15 famílias, a comunidade está localizada a 3 quilômetros de Riozinho do Rôla, um dos principais afluentes do Rio Acre. Sem chuvas e com a diminuição do lençol freático, todos os açudes que abastecem a vila também secaram, afirmam os moradores.
Na varanda da empoeirada casa de madeira e tijolos, cercada pelos animais da fazenda da família, Taylane conta como a falta de água interfere muito em seu dia a dia. “Ela [a seca] causa muito impacto sim, porque a gente aqui não pode fazer plantação… Até na casa influencia. Por que? [A gente] não pode limpa[r] a casa. Como aqui é uma área seca, tem muita poeira,” disse.
“Até os animais para beber[em] água é complicado… Porque se não ficam com sede, aí falta [água] para banho, né? Então tem que ser tudo controlado. (…) Também tem[mos] a criação de animais, a galinha, o porco, pato. Isso influencia no desenvolvimento dos animais, das plantações, porque com a falta de água tu não vai ter um animal assim saudável, né? (…) É triste”.
O Acre tem apenas uma estrada principal ligando o estado ao resto do país; produtos primários de subsistência são transportados em pequenas embarcações no rio. Mas as águas rasas também inviabilizam a movimentação de pessoas e mercadorias pelo rio.
Segundo Taylane, sua comunidade enfrenta escassez de água todos os anos, de julho a dezembro, durante o chamado verão amazônico. A situação só começa a melhorar em janeiro, com o início do período chuvoso.
Neste ano, no entanto, a situação tem sido muito mais grave: Rio Branco passou 50 dias seguidos sem chuvas, segundo dados da Defesa Civil da cidade. Em agosto, no auge da seca, só choveu uma vez no município.
Segundo Waldemir Lima dos Santos, pesquisador de riscos hidrológicos e professor de geografia da Universidade Federal do Acre (UFAC), as secas extremas no estado vêm ocorrendo com mais frequência nos últimos anos; antes elas ocorriam apenas uma vez a cada década.
“Esses extremos estão cada vez mais ultrapassando um padrão que antes era bastante definido. Hoje, nós temos secas severas em intervalos menores de tempo, no período de três ou quatro anos, e às vezes até anualmente”, disse Santos à Mongabay em seu escritório na UFAC.
Segundo ele, as mudanças climáticas têm papel fundamental nesse processo, pois interferem nos elementos responsáveis direta e indiretamente pela frequência das chuvas na região, como umidade, temperatura e radiação solar. “A variação dessa dinâmica do nível das águas do Rio Acre está relacionada a uma mudança climática em curso no planeta. Essas alterações do clima trazem uma resposta tanto para os seres vivos quanto para os sistemas naturais”.
Condições climáticas extremas provocadas pelo homem
O Acre não é o único lugar do Brasil com forte seca este ano. O país como um todo registrou a menor quantidade de chuvas dos últimos 91 anos no período de setembro de 2020 a junho de 2021, de acordo com o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) do Ministério de Minas e Energia.
Um estudo divulgado em agosto pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), agência das Nações Unidas, mostra que as secas no sul da Amazônia e no Pantanal têm piorado progressivamente: em 2020, a seca nessas regiões foi a mais extrema em 50 anos.
As mudanças climáticas também ameaçam a saúde pública, a produção de alimentos, a geração de energia, o abastecimento de água e o meio ambiente nesses biomas, segundo o estudo, que faz um alerta especial relacionado a incêndios florestais e desmatamento, já que essas regiões juntas abrigam 57% das florestas tropicais do mundo.
Em outro estudo, mais amplo e recente, a OMM afirma que há mais de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo enfrentando atualmente escassez hídrica, número que “deve aumentar”, ameaçando a sustentabilidade dos recursos hídricos e o desenvolvimento econômico e social. O secretário-geral da OMM, Petteri Taalas, disse à imprensa que, no longo prazo, a redução das chuvas e o aumento das temperaturas na Amazônia representam riscos para o ecossistema.
A seca extremamente severa no Acre ocorre poucos meses depois de outro desafio ambiental na região. No início de 2021, no auge da pandemia de COVID-19 no país, o estado passou por uma das maiores enchentes da história, com quase metade de seus municípios afetados. Na época, o governo estadual decretou estado de calamidade pública.
Segundo o Corpo de Bombeiros do estado, cerca de 130 mil pessoas, entre indígenas e pequenos agricultores, foram atingidas na capital e no sertão. Em Tarauacá, município ao longo do Rio Acre, 90% da área do terreno foi submersa. A última grande enchente no estado ocorreu em 2015, um ano antes de sua pior seca.
Para Santos, o maior problema do Rio Acre hoje é o desmatamento de suas margens e nascentes, que estão “quase totalmente degradadas”. Segundo ele, a abertura de áreas para pastagens é um dos vetores de destruição das matas que protegem as nascentes, que fazem fronteira direta com seis dos 22 municípios do Acre.
Além do desmatamento das matas ciliares, as queimadas também impactam diretamente na seca, segundo a secretaria estadual de meio ambiente. Como consequência, a falta de chuvas influencia não apenas os níveis de água no rio, mas também a qualidade do ar devido aos incêndios florestais.
No início de 2021, no auge da pandemia de COVID-19, o Acre experimentou uma das maiores enchentes da história, com quase a metade de todos os municípios afetados. Na época, o governo estadual declarou estado de calamidade pública. Foto: Sergio Ronney/Secom.
Segundo Santos, a agricultura de subsistência também contribui muito para a má qualidade da água, pois leva muitos materiais soltos para dentro do rio. “Com a chegada das chuvas, esse material é carregado para o fundo do vale fluvial, acarretando acúmulo e, depois, o processo de assoreamento, que é o soterramento do lençol freático. Uma vez soterrado, o leito do rio deixa de receber uma recarga do aquífero subterrâneo e acaba por ter pouca água nesses períodos de estiagem.”
O descarte de resíduos industriais não tratados no rio também contribui para a degradação do Rio Acre, acrescentou. Itens que vão de garrafas plásticas a geladeiras e móveis podem ser encontrados e acabam se acumulando no fundo do rio, agravando o processo de assoreamento, segundo Santos.
Outro agravante, explica o pesquisador, é que boa parte do esgoto doméstico é despejada diretamente no rio. Hoje, apenas 23,5% dos moradores de Rio Branco que vivem em áreas urbanas têm acesso a rede de esgoto, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS); o restante da população tem como única opção a destinação de seus resíduos em hidrovias que desembocam no rio. Durante a seca, a concentração de poluentes aumenta, disse Santos. No Acre, a situação é ainda pior: 90% da população não tem acesso à coleta de esgoto e menos da metade, a água tratada.
Embora a situação no estado seja especialmente crítica, a falta de acesso a saneamento adequado é um problema generalizado no Brasil: apenas metade da população total tem acesso a coleta de esgoto e cerca de 35 milhões de pessoas não têm acesso a água potável, segundo o SNIS.
Apesar desses problemas, as operações de abastecimento de água do governo do estado do Acre não foram afetadas pela queda do nível do rio, disse Alan Ferraz, diretor de operações do Departamento Estadual de Água e Saneamento (Depasa). Para evitar a escassez, diz ele, o governo opera sistemas de coleta flutuantes em todo o rio. Mas esse serviço não chega aos bairros urbanos que vivem à montante nem às vilas rurais, que obtêm água por meio de poços artesianos.
Para ajudar essas comunidades, a prefeitura de Rio Branco envia caminhões-pipa duas vezes por semana para atender 12 comunidades rurais da periferia da capital. Outros cinco estão na previsão para também serem atendidos em breve, segundo a Defesa Civil.
Em Manoel Marques, a prefeitura entrega 5 mil litros de água todas as terças e sextas-feiras. “É uma água boa, graças a Deus”, diz Taylane. Mas ela diz que não é o suficiente e as famílias acabam ficando sem água ainda antes da próxima entrega.
Para suprir a demanda das muitas famílias que vivem na comunidade, Taylane destaca a necessidade do envio de mais caminhões-pipa e a instalação de mais caixas d’água. “A gente queria muito e quer essa ajuda do prefeito para melhorar mais ainda essa questão da água, porque o nosso problema principal aqui é ela, né?”.
Imagem do banner: Para ajudar comunidades durante as estiagens, a prefeitura de Rio Branco envia caminhões-pipa duas vezes por semana para atender 12 comunidades rurais da periferia da cidade. Foto: Alexandre Noronha para a Mongabay.