Construção da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol), que ligará o porto de Ilhéus, na Bahia, à BR-153 (Rodovia Belém-Brasília), ganhou novo fôlego com o leilão vencido pela empresa que opera a maior mina de ferro da região.
Além de escoar 18 milhões de toneladas de minério, a ferrovia terá capacidade para transportar outros 42 milhões de carga – potencialmente os grãos produzidos na região do Matopiba, principal fronteira agrícola do Cerrado brasileiro.
No município de Caetité, sede da mina Pedra de Ferro e ponto de partida do trecho da ferrovia a ser operado pela mineradora, moradores relatam casas avariadas por explosões, danos ao meio ambiente e descumprimento dos compromissos com a comunidade.
Moradores temem a invasão do agronegócio em terras ainda não tituladas e também os riscos decorrentes da construção de uma barragem de rejeitos de mineração que terá o dobro da capacidade da que se rompeu em Mariana (MG); por pressão das comunidades, a mineradora está revendo o projeto.
Faz oito anos que aconteceu: Elicarlos Ferreira da Silva e sua família voltavam de uma visita à cidade de Caetité, no meio da tarde, quando foram abordados pelos trabalhadores responsáveis pelas obras da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol) nas proximidades da comunidade onde ele nasceu e vive até hoje. Aconteceria mais uma detonação de explosivos, para o “desmonte das rochas”, como se diz no jargão técnico, e, por isso, a família deveria esperar ali.
Autorizados a seguir para sua casa, no povoado de Serragem, distrito de Brejinho das Ametistas, tiveram uma enorme surpresa ao chegar. “Quando a gente chegou aqui foi muito terrível, pessoal ficou todo chorando. A gente ficou sem saber o que fazer. Quebrou essa parede, o telhado [também ficou] todo quebrado, tinha bastante pedra que caiu dentro da casa também, a gente ficou bem constrangido”, conta ele.
Para completar o susto, no meio da sala, estava uma enorme pedra, que atravessara a parede, deixando um buraco de tamanho semelhante ao da janela. Até hoje a família mantém a rocha no lugar, como um lembrete para os cinco moradores da dívida que a companhia estatal Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. nunca saldou com a família. “Está com sete anos que eu coloquei o caso na Justiça e até hoje não resolveram”, lamenta Elicarlos.
Não era a primeira vez que a família vivia algo assim. Dez meses antes, segundo ele conta, outra detonação havia danificado o telhado. A empresa contratada pela Valec para realizar as obras encarregou-se de realizar os reparos na casa de Elicarlos, segundo ele. “No dia da [nova] detonação eles falaram que a firma ia indenizar a casa, dar outra casa pra gente. Oito dias depois falaram que iam reformar, só que eu não aceitei”, relata o agricultor. “Eles falaram que a estrutura da casa estava ruim”, explica. “A casa foi muito abalada.”
O caso de Elicarlos não é único – por toda a região sudoeste da Bahia, entre os municípios de Bom Jesus da Lapa e Caetité, são constantes as queixas sobre as obras da Fiol entre moradores dos pequenos povoados de agricultores e comunidades remanescentes de quilombos. Os trabalhos de construção da ferrovia que ligará o porto de llhéus, na Bahia, à BR-153 (Rodovia Belém-Brasília), na altura de Tocantins, começaram em 2011 e seguiram a passos lentos nos anos seguintes. Mesmo assim, deixaram um rastro de reclamações.
“A Fiol seguiu destruindo áreas de importância em vegetação e de recarga hídrica, destruindo as áreas de produção econômica camponesa, provocando transtornos na vida cotidiana das comunidades a partir de interrupção de vias, deslocamentos e outras contradições. Não houve processo de consultas, debates públicos que levassem ao conhecimento da população os seus inúmeros impactos e contradições”, sintetiza José Beniezio da Silva, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão da Igreja Católica que dá assistência aos agricultores da região. “Apesar das denúncias e provas concretas do conjunto de violações, as populações seguem desamparadas pelo Estado e sem nenhuma perspectiva de ressarcimento para os inúmeros crimes praticados. Em síntese, o desenvolvimento das obras da Fiol é um traçado de injustiça e desumanidade.”
Lucidalva Silveira Nascimento, da comunidade de Fazenda Invernada, também na zona rural de Caetité, resume as queixas dos moradores da região: “Nós não somos contra [as obras]. O que nós somos contra, do que a empresa já fez e está fazendo com a gente, é o descaso, o desrespeito com os moradores desse lugar”. “Na época que a empresa chegou aqui foi muito sofrimento. Era muito barulho, muita poeira, muita ignorância do lado dos funcionários”, prossegue ela, cuja casa, até hoje, segue com o telhado danificado pelas pedras lançadas com as detonações. “Quando é época dos ventos, a gente tem medo até de a casa cair em cima da gente, porque as paredes estremecem. Na época da chuva, minha casa molha toda.”
60 milhões de toneladas de minério e grãos
A apreensão nas comunidades da região de Caetité tem se renovado nos últimos meses. Em abril, a multinacional Bahia Mineração (Bamin) venceu leilão promovido pelo governo federal e, até 2025, promete concluir o trecho da Fiol de 537 quilômetros que ligará o município a Ilhéus, onde ela se integrará com o Porto Sul, empreendimento no qual a Bamin é parceira do governo da Bahia e cujas obras se iniciaram no final de 2020.
A estimativa é que ferrovia e porto envolvam investimentos totais de R$ 7,3 bilhões. Segundo a assessoria de imprensa da Bamin, a empresa está aguardando a assinatura do contrato para a concessão da ferrovia antes de se manifestar sobre como lidará com o passivo social e ambiental deixado pela Valec, responsável pela construção da ferrovia. Procurada, a assessoria da estatal não deu retorno à reportagem.
Para que se tenha uma ideia do grau das transformações que poderão ser trazidas à região sudoeste da Bahia pela ampliação das atividades de mineração em Caetité e pela aceleração das obras da ferrovia, vale atentar aos números associados aos empreendimentos: segundo a Bamin, quando concluída, a Fiol deverá ser capaz de transportar anualmente 60 milhões de toneladas de carga, dos quais 18 milhões de toneladas deverão ser do minério extraído da mina Pedra de Ferro, em Caetité – projeto da própria Bamin que começou as operações em janeiro e teve suas primeiras exportações em julho.
A ferrovia terá capacidade, portanto, para escoar outros 42 milhões de toneladas – possivelmente, grãos produzidos na região do chamado Matopiba, área de expansão do agronegócio que ocupa porções do Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia, ou minério extraído por outras empresas, a serem atraídas para a região em função das facilidades logísticas.
A produção prevista pela Bamin transformará o estado da Bahia no terceiro maior exportador brasileiro de minério de ferro. Segundo a Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM), no primeiro semestre de 2021, o estado já se tornou o terceiro maior produtor mineral do país, atrás apenas de Minas Gerais e Pará. Enquanto não estão prontas as obras da Fiol, a mina de Caetité tem produzido perto de 1 milhão de toneladas anuais, segundo dados da empresa.
A Bamin é atualmente subsidiária de uma empresa do Cazaquistão, a Eurasian Group Resources (ERG), e vem construindo o projeto da mina Pedra de Ferro desde 2007 – mesma época em que o governo federal, então a cargo de Luiz Inácio Lula da Silva, lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que incluía obras como a Fiol.
Situada a meio caminho entre as jazidas da Chapada Diamantina e as de Minas Gerais, exploradas desde tempos coloniais, a região de Caetité, inicialmente habitada por diversos grupos indígenas e, depois, pelos colonos dedicados à pecuária, é conhecida por suas riquezas minerais desde o século 19, quando as pedras preciosas encontradas no entorno do distrito hoje conhecido como Brejinho das Ametistas ganharam reconhecimento nas cortes europeias, por sua extrema beleza, segundo os historiadores.
Em 1999, a estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) passou a explorar o urânio existente no município, tornando o Brasil um dos quatro seletos membros do grupo de países que possuem reservas do mineral e também a tecnologia para enriquecê-lo, junto com China, EUA e Rússia. Ainda segundo a INB, a mina de urânio de Caetité é a única em operação atualmente em toda a América Latina.
O medo do mar de lama
A apreensão em torno da mina Pedra de Ferro inclui não só os impactos da ferrovia, mas também as incertezas sobre a barragem que será construída para abrigar os resíduos resultantes da atividade de mineração.
Para que se tenha uma ideia, segundo o Relatório de Impacto Ambiental associado ao projeto, a Bamin previa construir uma barragem com capacidade de 128 milhões de metros cúbicos de rejeito. Isso é mais que o dobro da quantidade de rejeitos (60 milhões de metros cúbicos) que se estima que havia na barragem de Fundão, em Mariana (MG), rompida em novembro de 2015, e dez vezes o que haveria na barragem do Córrego do Feijão, onde aconteceu nova tragédia, em janeiro de 2019. Os dois acidentes mataram quase 300 pessoas e deixaram desabrigadas centenas de famílias.
Se construída da forma originalmente prevista, a barragem afetaria, especialmente, o município de Guanambi, de 85 mil habitantes. A cidade ficaria a jusante da barragem, sendo, em caso de um hipotético rompimento, atingida em poucas horas por um mar de lama. Em função do temor causado pelos acidentes em Minas Gerais, emergiu nos últimos anos um movimento local de luta contra a construção da barragem.
O dentista Evilásio Pereira Bonfim foi um dos moradores da cidade que se engajaram nas mobilizações em torno do slogan “Vida sim, barragem não”. “Esse projeto vem na contramão do que tem sido feito no mundo inteiro na questão da preservação de vida e do meio ambiente quanto à exploração mineral. Nós temos aqui um completo desrespeito à nossa comunidade”, critica ele. “Todos os países civilizados do mundo estão impedindo que barragens de rejeitos sejam feitas voltadas para qualquer tipo de habitação. Se houver qualquer pessoa na frente da barragem, tem que trocar de lugar.”
Não existe comunicado da Bamin confirmando que a mobilização local tenha sido o motivo, mas, recentemente, a mineradora anunciou, em seu site oficial, que apresentará, em breve, um novo projeto para a barragem, utilizando as tecnologias de filtragem da água que transformam a barragem na chamada “pilha seca”. Ou seja, segundo a empresa, até 90% da água que seria acumulada na barragem seria filtrada e reaproveitada, impedindo o acúmulo da temida lama.
O local previsto para a instalação da barragem também vem sendo alvo de questionamentos: desde 2017 o Ministério Público do Estado da Bahia vem recomendando mudança de local para a barragem, a fim de preservar áreas de preservação permanente ligadas à rede hidrográfica.Além do meio ambiente, o MP-BA alerta para possíveis danos a áreas de ocupação das comunidades de fundo e fecho de pasto – um tipo de comunidade tradicional existente na região oeste da Bahia, que mantém territórios de uso comum para criação de animais.
A promotora de Justiça Luciana Khoury, do MP-BA, afirma que já há denúncias das comunidades de que o local da barragem vem recebendo rejeitos, resultado da mineração em fase de pesquisa que vem ocorrendo, e que danos ao meio ambiente já estariam acontecendo. “É preciso entender que, nesse lugar, a barragem não pode ficar mesmo”, diz a promotora. “Por mais que se tenha segurança, todos esses problemas que têm ocorrido mostram que não existe risco zero.”
Segundo a assessoria da Bamin informou à reportagem, “a conclusão da engenharia básica” do novo projeto será apresentada “nos próximos meses” aos órgãos responsáveis pela análise técnica do plano – o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), órgão estadual, e a Agência Nacional de Mineração (ANM).
Descaso e desrespeito com as comunidades
Enquanto a Bamin não define o novo projeto da barragem, bem como seu plano de ação para a construção da ferrovia Caetité-Ilheus, comunidades já atingidas pelas obras da Fiol conduzidas pela estatal Valec cobram na Justiça o cumprimento de compromissos estabelecidos como condicionantes para a obra.
Na região da comunidade quilombola de Araçá Volta, em Bom Jesus da Lapa, as obras da ferrovia estão paralisadas por força de uma decisão do Ibama desde 2019. “Essa obra mostra o descaso do governo e o desrespeito dos órgãos fiscalizadores”, afirma Lucas Marcolino, coordenador da Associação Quilombola Agropastoril Cultural de Araçá Volta. A comunidade que ele representa fica próxima ao exato local onde a ferrovia cruza o Rio São Francisco.
As obras da ponte já estão praticamente concluídas. “A ponte está terminada e não houve uma consulta com a população. O que fizeram foi judicializar o processo e preferem brigar na Justiça com as comunidades, infelizmente. Essa ferrovia vem sendo empurrada com a barriga ao longo desses anos, desde 2009”, diz Marcolino.
A pressão das comunidades gerou um documento específico no processo de licenciamento das obras, os Estudos Complementares sobre as Populações Quilombolas. Nesse processo, elas tiveram a oportunidade de indicar algumas propostas para o enfrentamento dos impactos trazidos pela ferrovia. O principal pedido, sem resposta efetiva há mais de dez anos, é pela titulação das terras das comunidades tradicionais na região.
“Daqui a pouco, com estrutura de transporte, essas terras serão ocupadas por fazendeiros, pelo agronegócio. Então é necessário, sim, que nós estejamos com o título dessa terra na mão, para termos o mínimo de segurança”, explica Lucas Marcolino. “Nós não estamos aqui para impedir o chamado desenvolvimento, mas uma coisa é clara: as populações têm que ser respeitadas, têm que ser ouvidas. Aqui ninguém ouve ninguém, é feito de todo jeito. É no empurrão, é na barriga, como a gente costuma dizer, que a obra vai sendo tocada. Eu tenho até vergonha.”
O Ministério Público Federal, responsável por defender os direitos de populações tradicionais, acompanha a disputa entre a Valec e as comunidades quilombolas da região. “Minha avaliação acerca do saldo dessa postura [da estatal Valec] é a de que não foi positiva, resultando numa desconfiança e numa postura refratária das comunidades em relação à construção da ferrovia”, afirma o procurador Robert Rigobert Lucht, do MPF em Bom Jesus da Lapa. “É premente que a empresa reestabeleça o diálogo e as consultas com as comunidades afetadas.”
“No tocante ao meio ambiente, espera-se que a Valec atenda a todas as condicionantes ambientais elencadas pelo Ibama, de modo a compatibilizar o necessário desenvolvimento econômico com a obrigatória preservação e a redução de danos ao meio ambiente”, complementa Lucht. Ao longo dos anos, os quilombolas de Araçá Volta também já fizeram diversas denúncias sobre o desrespeito ao meio ambiente durante as obras, como o aterro de dois braços do Rio São Francisco em 2016. A situação se repete em outros locais, como em Curral Velho, na zona rural de Caetité, onde as obras não foram interrompidas.
O agricultor Adailson Meira dos Santos, um dos moradores com os quais a reportagem dialogou, enviou à Mongabay um vídeo que gravou ao lado de um canteiro de obras, na beira de um dos riachos próximos a sua comunidade, num bom exemplo do choque que toma as comunidades com a falta de atenção das empresas responsáveis pela construção da ferrovia. As imagens mostram a mata ciliar em torno de um riacho que deságua em Ceraíma, represa que abastece toda a região, repletas de fezes humanas espalhadas pelo chão e papel higiênico. “Não põem um banheiro para esses pobres pais de famílias, para esses trabalhadores”, critica ele no vídeo. “Aí você pergunta: cadê a fiscalização, cadê o Ministério Público, cadê o meio ambiente, tá onde?”
Santos é exemplo de uma postura comum na região: como vários dos entrevistados pela reportagem, ele não se considera “contrário” aos projetos da Fiol, da Bamin. “Que façam a obra, eu sei que a ferrovia é uma coisa que vai trazer benefício para o mundo, mas tem que ver também as comunidades que eram felizes, e essa felicidade estão tirando da nossa comunidade”, comenta ele.
O agricultor conta que, antes da chegada das obras da Fiol, vivia uma situação confortável, uma vez que sua comunidade e a região, de forma geral, receberam diversos investimentos de apoio à produção agrícola familiar ao longo das duas últimas décadas, como pequenas barragens e apoio ao cooperativismo. Em Curral Velho, conta Santos, produzia-se uma variedade de alimentos, como tomate, pepino, milho, feijão, mandioca, cenoura e beterraba. Segundo ele, as plantações têm sido comprometidas em função da intensa poeira trazida pelas obras.
O discurso padrão de que o progresso trará “empregos” não faz muito sentido para gente como ele. “Pra mim não tem muito interesse”, diz Santos. “Eu sei hoje, graças a Deus, produzir mais de um salário [mínimo] pra cada um dos meus quatro filhos. Pra mim, um salário [pago por uma empresa] não vale a pena.”
Lucas Marcolino, da comunidade de Araçá Volta, sintetiza: “Muitas vezes a sociedade só olha desenvolvimento – mas desenvolvimento pra quem? Essa é a verdade. É dever da sociedade zelar pelo meio ambiente para que as gerações futuras tenham o mínimo disso. Mas infelizmente não tem acontecido isso”.
Imagem do banner: obras de viaduto da Fiol. Foto: Rafael Martins.