Da onça-pintada aos quebrachos vermelhos, das antas e queixadas às alfarrobeiras, toda a biodiversidade do Chaco está presente em 130 mil hectares.
Desmatamento, caça predatória e isolamento são os grandes perigos que ameaçam uma reserva governada pela hostilidade climática.
Um casal de nandu-de-darwin (Rhea pennata) corre a toda velocidade entre os arbustos espinhosos e a relva alta que cobrem um paleomeandro — um daqueles antigos leitos que o Rio Bermejo inundou em um tempo perdido na memória. Eles freiam em uníssono por alguns segundos, como se estivessem convidando o motorista do 4×4 a acelerar e desaparecer de seu território. Eles repetem a cena mais algumas vezes como se estivessem brincando de gato e rato até ficarem cansados, então viram à direita e se perdem na floresta.
O calor aperta na manhã do Parque Nacional El Impenetrable, no extremo norte da Argentina. O termômetro marca 41°C, o sol cai sem piedade e, nesse momento, os nandus-de-darwin são os únicos que ousam desafiá-lo. A dureza climática do Chaco expressa sua magnitude apenas em parte — em pleno verão, as temperaturas costumam superar os 50 °C —, mas é suficiente para fazer com que seus efeitos sejam sentidos no corpo de um citadino desacostumado. O tereré (chimarrão frio) que o guia Gabriel Borsini serve em sua posição de copiloto ajuda a saciar a sede: “O calor nesta área é traiçoeiro”, diz ele, mostrando experiência, “porque está seco. E, embora não se note que transpiramos, desidratamos do mesmo jeito”.
Impenetrable é o nome histórico dado às terras semiáridas que ocupam uma vasta área do norte argentino. Trata-se de uma denominação que revela dois aspectos da região: o emaranhado de galhos e caules que formam os arbustos da vegetação rasteira e limita a possibilidade de se mover com alguma liberdade; e a escassez ou ausência de cursos de água, que impede a permanência na floresta por longos períodos de tempo.
O nome se tornou sinônimo da província do Chaco e, quando a Administração dos Parques Nacionais obteve a propriedade da antiga fazenda La Fidelidad para transformá-la em área protegida, as autoridades locais decidiram dar-lhe um nome reconhecível. É verdade que seus 130 mil hectares não estão localizados no que sempre foi conhecido como “Impenetrável”, e sim em uma faixa de território que corre entre os rios Teuco, Bermejo e Bermejito, uma área denominada de interflúvio, na qual é possível encontrar características do Chaco semiárido e do Chaco úmido.
Desde o momento de sua criação, a reserva está no centro do debate. Enquanto as obras de implementação avançam em ritmo lento, o interesse científico e os esforços conservacionistas se entrelaçam com as expectativas turísticas e de desenvolvimento econômico da região. El Impenetrable já é considerada a joia natural da ecorregião, e a sensação predominante é que de que a tensão entre os vários interesses apenas começou. A esse cenário devemos acrescentar as ameaças causadas pelo avanço da fronteira agrícola e pecuária, bem como o desmatamento que continua ao redor do parque.
Um parque ainda pela metade
Uma gigantesca paineira (Ceiba speciosa) surpreende em uma curva do único caminho aberto ao público no parque; uma pequena floresta de itines (Prozopis kuntzei) oferece um refúgio ao sol; as alfarrobeiras, os quebrachos brancos e vermelhos se sucedem diante dos olhos. A vegetação toma conta da paisagem e, exceto pela terra e a poeira que se acumulam nas laterais do caminho, parece não haver lugar sem um arbusto, uma acácia ou uma árvore.
O fato da fazenda ter mantido boa parte de sua riqueza natural pode ser considerado quase um milagre. Na década de 1970, os irmãos Luis e Manuel Roseo haviam comprado a propriedade da família Born, dona de uma das maiores fortunas do país. Mas, em 1984, Luis morreu e Manuel nunca teve capital suficiente para iniciar um empreendimento de grandes dimensões. A fazenda, que por décadas foi usada para criação de gado e silvicultura, teve assim a oportunidade e o tempo suficiente para se recuperar até chegar a um estado próximo ao original.
De qualquer forma, a ociosidade não era completa. O gado de corte, a apicultura e algumas tentativas de plantio agrícola ocupavam diferentes lotes que, à época, alcançavam 250 mil hectares, distribuídos em ambas as margens do Rio Bermejo, entre as províncias de Chaco e Formosa. Ao mesmo tempo, alguns moradores e visitantes ocasionais aproveitavam o descuido ou “desapego” de Don Manuel para extrair madeira ou praticar a caça predatória; outros usavam o pasto para criar suas próprias vacas, que assim ficavam em um local mais controlado, onde o risco de roubo de gado era menor. Naquela época, ninguém poderia imaginar que uma mudança trágica fosse definir o destino da propriedade.
O futuro de La Fidelidad mudou abruptamente na madrugada do dia 13 de janeiro de 2011. Naquela noite, três homens entraram na casa onde o último dos proprietários da fazenda, Manuel Roseo, morava. A cidade era Juan José Castelli, localizada a cerca de 100 quilômetros da fazenda. Depois de torturá-lo, os três homens o assassinaram. O motivo foi uma tentativa fracassada de golpe através de uma compra fraudulenta da enorme propriedade.
A morte de Roseo, literalmente, dividiu as águas. Embora as organizações ambientais tenham apresentado imediatamente propostas para transformar o local em área protegida, conseguiram implementar o plano apenas no lado do Chaco. A busca por financiamento para a aquisição da terra, apoiada pelo governo da província, encontrou na organização The Conservation Land Trust (CLT)um primeiro interlocutor válido. Mais tarde, quando o aparecimento de herdeiros exigindo mais dinheiro pela transferência de seus direitos ameaçou fazer com que os acordos fracassassem, a contribuição da fundação do bilionário suíço Hansjörg Wyss completou o orçamento necessário para que a Administração do Parque Nacional pudesse concluir a compra de 130 mil hectares ao sul do rio.
Enquanto caminhamos por La Fidelidad, vemos em alguns pontos uma fila de postes a meia altura que sustentava a cerca da fazenda: “Estamos removendo-os aos poucos, é um trabalho que levará tempo”, esclarece Gabriel Borsini, que está cumprindo seus últimos anos de trabalho como guarda florestal no Parque Nacional El Impenetrable. Fica evidente que o desenvolvimento e a implementação do parque ainda estão incompletos. Criado em outubro de 2014, El Impenetrable só pôde ser inaugurado três anos depois e aberto ao público, de maneira parcial, no início de 2018.
“Estamos trabalhando ao mesmo tempo na montagem da estrutura básica de controle e vigilância e na adaptação das áreas para uso público”, explica Leonardo Juber, diretor do parque nacional. Atualmente, existe apenas um ponto de entrada e falta infraestrutura básica para os guardas florestais, como moradias para que possam viver permanentemente no lugar e postos de vigilância na encosta do Bermejo. Também não existe nenhum tipo de serviço disponível para as pessoas que desejam conhecer um local que os ambientalistas da região já consideravam ideal para transformar em reserva na década de 1980. Os passeios que podem ser feitos no momento, a pé ou de carro, não demoram mais de duas horas e sua abertura total depende do clima, pois em dias de chuva precisam fechados por segurança. Mesmo assim, o número de visitantes não para de crescer. E é compreensível, pois a exuberância da paisagem é garantida, mesmo que seja uma exuberância “mais sofisticada”, segundo a definição de Luciano Olivares, subsecretário de Recursos Naturais da província do Chaco.
“Em relação à flora e fauna, o espaço tem quase tudo que deve ter uma área protegida na região”, afirma Juber com total convicção. “El Impenetrable não conta com grandes cartões postais, como as Cataratas do Iguaçu ou a geleira Perito Moreno, mas possui outras atrações, como a observação de pássaros ou o interesse científico”, diz o funcionário.
Onça-pintada, o mais novo habitante do parque
As longas distâncias garantem a presença de uma fauna de riqueza incalculável. “Já catalogamos mais de 500 espécies de vertebrados e achamos que vamos passar de 600 quando concluirmos o trabalho com morcegos”, comenta o biólogo Gerardo Cerón, responsável pela estação de campo El Teuco, que fica às margens da lagoa El Breal e pertence ao The Conservation Land Trust (CLT).
Uma parte importante dessa fauna aparece ao entardecer no Impenetrable, quando o sol já não está mais tão forte e a temperatura começa a cair. Nesse momento, a vida animal toma conta do parque. Os pássaros que sobrevoam os espelhos d’água, como os savacus, as caraúnas e os jaburus, ainda não se recolheram. E antas, tatus, tamanduás, cervos, pumas, raposas, macacos de diversas espécies e as três espécies de pecarídeos (cateto, queixada e taguá) saem de suas tocas. Alguns lobos-guará também podem ser vistos a essa hora.
O Breal, a lagoa dos Corrales, o poço do Yacaré, o distante Zorro Bayo ou qualquer uma das superfícies aquosas derivadas do Rio Bermejo servem como ponto de encontro. Lá os animais vêm para beber água após o longo dia de sol, e ainda há muito do que se alimentar nos arredores.
E agora eles têm um companheiro ilustre; o que neste caso também significa um perigo para a vida deles, porque é predador por excelência. A joia da fauna do Chaco, a onça-pintada (Panthera onca), acaba de entrar na lista de habitantes do parque. Em setembro passado, uma armadilha fotográfica da Conservation Land Trust conseguiu capturar a imagem de um indivíduo cuja presença na área foi acompanhada por meses por pesquisadores do Parque Nacional El Impenetrable e do projeto Yaguareté, uma rede de organizações que lutam contra a extinção do maior felino das Américas na região do Chaco. “Sua presença é a demonstração de que ainda existem áreas para o desenvolvimento da biodiversidade no Chaco”, enfatiza Luciano Olivares. “Foi um grande alívio ver que o parque funciona como uma área importante para as espécies. Queremos acreditar que foi identificado como um lugar calmo e seguro”, enfatiza a bióloga Verónica Quiroga, a especialista de maior renome do projeto Yaguareté.
Algumas semanas depois, o indivíduo foi capturado e recebeu uma coleira com um rastreador por satélite para que os pesquisadores pudessem acompanhar seus movimentos. Para isso, contou-se com a colaboração involuntária de Tobuna, uma fêmea nascida em cativeiro a 500 quilômetros ao sul, nos estuários distantes do Iberá, que foi levada ao Impenetrable para incentivar o animal a permanecer na área. “Graças a esse colar, sabemos que ele ficou em um espaço de 5 a 6 quilômetros quadrados e que não voltou a atravessar o rio”, relata Cerón.
O Bermejo é um rio de fluxo médio que, exceto nas temporadas de grandes cheias, não representa nenhum obstáculo para a travessia da onça. De fato, antes da descoberta, foram encontradas pegadas que não deixaram dúvidas de sua presença na margem oposta, o que na verdade é um problema, pois a margem pertencente à fazenda Formosa é desprotegida do ponto de vista ambiental.
Nos 100 mil hectares da fazenda não há nenhum tipo de proteção. “É uma propriedade privada em processo de sucessão”, explica Franco Del Rosso, coordenador do Programa de Biodiversidade, Áreas Protegidas e Mudanças Climáticas da província de Formosa. “Nós, do Ministério da Produção e Recursos Naturais, promovemos a criação de uma reserva privada. Entendemos que grande parte da propriedade já foi vendida, mas ainda se tem a escritura”, aponta ele como explicação para a situação atual.
A presença de uma onça-pintada no Parque Nacional El Impenetrable, cuja população é estimada entre 15 e 20 espécimes no Chaco, acentuou o problema das diferenças no manejo da terra às margens do Bermejo. O que poderia acontecer se o animal atravessasse o rio novamente? A princípio, ele entraria em um terreno desabitado e ficaria exposto às espingardas de caçadores. “A polícia e a guarda florestal protegem a fazenda o suficiente para controlar a extração ilegal de madeira”, afirma Del Rosso. “Além disso, estamos conectados aos responsáveis pelo monitoramento dos movimentos da onça, para que nos notifiquem caso detectem que o animal atravesse o rio, apesar de eu achar que não vá acontecer. A presença da fêmea o manterá do outro lado”.
Caça, desmatamento, fronteira produtiva e isolamento
A caça, sem dúvida, é uma das grandes ameaças à fauna do parque El Impenetrable. “É uma característica cultural, não de subsistência”, aponta o prefeito Juber. Os caçadores costumam entrar pela margem de Formosa, cruzam o rio e caçam por prazer, sem nenhum objetivo comercial. “É um lazer, as pessoas disparam em qualquer coisa que se mexa”, acrescenta o biólogo Gerardo Cerón. “Ser mais rigoroso no controle da caça predatória é uma das tarefas que a presença da onça no parque nacional nos impõe a partir de agora. Acredito que nosso trabalho, em todos os sentidos, começa mesmo a partir de agora”, comenta o subsecretário de Recursos Naturais da província do Chaco, Luciano Olivares.
Contudo, os maiores riscos não vêm do cano das espingardas, mas do avanço da fronteira agropecuária e do desmatamento contínuo que continuam ocorrendo ao redor do parque. Denúncias de desmatamento são constantes. As imagens de satélite identificam periodicamente manchas de perda de floresta nos arredores, que mudam de aparência em apenas alguns dias.
Toda a área ao redor da reserva, incluindo a faixa da fazenda La Fidelidad em Formosa, está pintada de vermelho ou amarelo, de acordo com as diretrizes estabelecidas pela Lei Florestal aprovada em 2007. Ou seja, varia entre uma proibição total ou parcial para corte e extração de madeira. Mas a regra não é rigorosamente aplicada. “A presença da onça é um sinal que gera mais obrigações para nós”, enfatiza Olivares. “Devemos ficar mais atentos do que estávamos até agora, integrar os esforços, ser muito mais meticulosos e eficientes no monitoramento do avanço das fronteiras agrícola e pecuária, e promover uma mudança de consciência: a produção, a biodiversidade, o meio ambiente e o homem precisam conviver”.
A extração madeireira, a agricultura e a pecuária são fenômenos diferentes mas que coincidem em um ponto: isolam o espaço natural, retirando sua conectividade com as outras áreas protegidas da região. A criação de uma rede de corredores biológicos é um projeto antigo que foi colocado no papel em 2012, e que agora parece estar finalmente andando. “Estamos na fase de implementação do corredor do Chaco úmido, que começa no Parque Nacional do Chaco e se estende por todo o interflúvio entre o Bermejo e o Bermejito”, relata Paula Soneira, coordenadora do Programa de Corredores do Chaco.
“Muitas das espécies que habitam a ecorregião precisam de grandes extensões de terra para sobreviver. Por exemplo, cada grupo de queixada (Tayassu pecari) precisa de 11 mil ou 12 mil hectares para se movimentar”, explica a bióloga Micaela Camino, membro do coletivo Somos Monte, e acrescenta:” Se você não trabalha direito nas zonas buffer [de amortecimento] ao redor do parque, ele acaba de tornando uma ilha dentro do sistema e seus efeitos de conservação perdem eficácia”.
Esse problema fica evidente no cinturão do Parque Nacional El Impenetrable. Alertas de desmatamento recentes da plataforma Global Forest Watch mostram o impacto gerado pelo avanço da fronteira agrícola entre os meses de abril e outubro deste ano.
Imagens de satélite mostram como o desmatamento está progredindo rapidamente, chegando até mesmo à beira do rio.
O compromisso com o turismo gera debate
Ali, ao lado da rio, fica a estação de campo da Conservation Land Trust, um espaço que hoje oferece todo o conforto, “embora tenhamos passado muito tempo dormindo em barracas e cozinhando no chão”, conta Gerardo Cerón. Uma dezena de pessoas compõe a equipe de apoio profissional e logístico que está realizando a tarefa de “descrição geral” — um catálogo com todas as espécies existentes na região — para mapear as linhas de base da biodiversidade do parque. Sua tarefa também inclui preparar o terreno para a reintrodução de espécies extintas ou com taxas populacionais muito baixas. O cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus), proveniente da população que vive em Iberá, será o primeiro animal a ser reintroduzido na nova área protegida.
As instalações da estação de campo, com suas barracas com vista para a lagoa, luz elétrica gerada por painéis solares, banheiros com água quente e comunicação via Internet, lembram os hotéis cinco estrelas instalados em alguns parques africanos, embora sirva apenas de alojamento para cientistas e não para visitantes ocasionais. No entanto, seu design inspirou a ideia de apostar no glamping (um camping de alto padrão, com glamour) como ímã turístico, embora a mera menção ao projeto gere controvérsias.
“É complicado, mas se for bem regulamentado e não for deixado ao livre arbítrio da concessionária, poderia ser feito”, comenta Gerardo Cerón. “O local não está preparado para receber esse tipo de investimento. As pessoas que vivem aqui muitas vezes não têm nem água, e dentro do parque a diária seria de 5 mil dólares. Pode até ser até perigoso”, discorda Micaela Camino, da organização Somos Monte. “O Parque Nacional não é minha jurisdição, mas no orçamento de 2020 para as reservas provinciais de Fuerte Esperanza e Loro Hablador, incluí um montante para criar alojamentos aos moldes de glampings“, confirma Luciano Olivares.
De qualquer forma, o impulso econômico que a região poderia receber graças ao interesse em visitar o parque já é perceptível. “Um centro de interpretação está sendo construído em Miraflores (a última cidade antes de se adentrar a floresta). Isso trará melhoras ao estado das estradas, estruturas estão sendo desenvolvidas para abrigar o visitante…”, lista Leonardo Juber, e esclarecer que “o turismo não é o objetivo de um parque, embora incentive o desenvolvimento local”.
Enquanto as novidades não chegam, tudo continua igual na solidão de El Impenetrable. O calor, a escassez de água, a sensação de afastamento, o tempo que passa preguiçoso… e também os fantasmas que cada vez mais assombram todo o Chaco argentino.
Imagem do banner: Tamanduá-bandeira no Parque Nacional El Impenetrable. Foto: Parques Nacionales.
Artigo original: https://es-mongabay-com.mongabay.com/2019/11/parque-nacional-el-impenetrable-gran-chaco-argentina/